O amanhã da China: a paz

Por Pedro Pinho e Felipe Maruf

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Bandeiras dos EUA e China (foto de Bao Dandan, Xinhua)
Bandeiras dos EUA e China (foto de Bao Dandan, Xinhua)

A história contada por economistas sempre procura associar fenômenos econômicos às transformações políticas, sendo a inflação fator encontrado. Porém, mais do que os carrinhos contendo notas e moedas, que ilustra a emergência nazista na Alemanha, são a liderança política e a comunicação de massa que verdadeiramente condicionam as reações populares. O ronco estomacal nada diz aos famélicos se não for simbolicamente mediado e interpretado de modo a produzir ideias e sentimentos de revolta e de indignação contra o status quo.

Na China, os ciclos dinásticos se associavam à ligação com os deuses, os “mandatos do céu”, o que é complicado para o país onde metade da população é materialista, não acredita em Deus nem deuses, e outra grande parcela honra os ancestrais, levando a dois terços da população a se declarar não teísta.

O amanhã tem muito mais valor na perspectiva do povo chinês do que dos europeus, cuja decadência os leva a se imobilizar no passado, cuja indefinição reflete a dissonância de valores e de perspectivas em que jaz toda civilização da qual poucos podem de fato se sentir representados.

A milenar história da China registra quatro dinastias da Idade Média à Contemporânea, no cômputo europeu: Song (960-1279), mongol (1206-1368), Ming (1368-1644) e Qing (1644-1912). Antes havia a fragmentação de poderes que começa a se integrar com o renascimento confuciano a partir do século X, com a visão antropocósmica da dinastia Zhou, consolidada nas dinastias Song.

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Os mongóis foram unificadores territoriais formando o maior império de terras contíguas na história do mundo e o segundo em área, menor apenas do que o Império Britânico, em seu apogeu.

Em grande parte de sua história, inclusive a mais recente, antes da Revolução Maoísta, a China teve, em estrangeiros, efetivos governantes, que apenas a exploravam e humilhavam a população nativa. O período do século 19 ao 20, que antecede a Revolução de 1949, é denominado de século da humilhação.

A história da China nos mostra população resiliente, agindo com sabedoria e tranquilidade, preocupada na sobrevivência, no seu amanhã. Como demonstram as muralhas defensivas e a única expansão ter ocorrido no período de governança mongol; os chineses sempre foram um povo pacífico.

A história é ciência complexa. Não tem para todos, necessariamente, os mesmos fundamentos. Para a cultura europeia, para o ocidente, a história é a aplicação de teorias explicando realidades. Para a China, o profundo entendimento da realidade evita estar aprisionado numa teoria, e mais, os chineses entendem que a realidade é formada do encontro de diversos fatores, muitas vezes fortuito, em determinados momentos. A realidade cambiante exige mudanças nas estratégias, nos planejamentos, que são evidenciadas pelos participantes de toda China, nos Congressos Nacionais do Partido Comunista da China (PCCh).

Daí a necessidade de acompanhar as resoluções do PCCh e as decisões do Politburo para compreender o que está acontecendo na China.

Sintetizemos, sucintamente, o que se vem passando na China desde a vitoriosa Grande Marcha. Mao e seus companheiros encontraram um país destruído pelos séculos de dominação estrangeira, espoliadora dos recursos e do trabalho chinês. Era premente atuar em duas direções, no reerguimento e orgulho da cultura milenar e na produção de bens indispensáveis à vida e ao desenvolvimento do País.

Entendemos que foram as razões de não prosseguir na derrocada de Chiang Kai Shek, em Taiwan, e na libertação imediata de Hong Kong e Macau. A China voltou-se para dentro, para instrução e para produção de e para seu povo.

Porém os dirigentes não deixaram de observar o que ocorria no mundo pós II Grande Guerra, como se exemplifica na participação de Chu En Lai, primeiro-ministro da China, na Conferência de Bandung, entre 18 e 24 de abril de 1955, na Indonésia. E observou que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) encaminhava-se para um poder burocrático de uma casta de funcionários públicos.

Ora, conhecedores da evolução do pensamento chinês, via-se, na URSS, a “lógica dos discursos”, ao tempo dos Reinos Combatentes (entre os séculos 4 ao 3 a.C.), levando os “letrados” ao poder e a burocracia imobilista que então se formou. Ousamos supor que a divergência sino-soviética, que teve início no final da década de 1950, possa ter sido consequência dessa percepção pela cúpula do PCCh.

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Afirmação nacional e revolução permanente

A Revolução Cultural pode ter sua origem no combate ao imobilismo, quiçá à regressão socialista, observada na URSS. Sem dúvida houve excessos, e as perdas humanas, culturais e materiais verificadas são amplamente conhecidas pelos dirigentes chineses, que, desde 1978, esforçam-se para superá-las, buscando canalizar o impulso dinamizador e inovador na busca pelo desenvolvimento econômico e social. Porém, o fato de o “arranco” chinês ter se dado após a Revolução Cultural indica certa fertilização do País durante a vigência desta, o que também é reconhecido pelos dirigentes chineses. Relembramos que a China trabalha sobre a realidade e não sobre ideologias.

A Revolução Permanente era a oposição à acomodação, não se satisfazer com o já obtido em um mundo de permanentes mutações.

O que ocorria na década de 1970 no mundo ocidental?

O ataque das finanças à industrialização, sintetizada pelas crises do petróleo de 1973 e 1979. Recordemos a evolução das produções, preços e consumo do petróleo.

A formação do cartel petroleiro ocorre no encontro, em 27 de agosto de 1928, no castelo escocês de Achnacarry, dos dirigentes da Royal Dutch-Shell (Shell), da Anglo-Persian Oil Company, depois British Petroleum (BP), e da Standard Oil of New Jersey (Exxon), aos quais se agregam as empresas Mobil, Texaco, Gulf e Chevron, formando as Sete Irmãs. Este acordo evitará o aumento de preço e o manterá estável, no mesmo valor, em moeda constante, até 1970.

Muitos eventos ocorrem neste período como a II Grande Guerra, a reconstrução da Europa, o golpe da estadunidense agência de inteligência CIA, em articulação com o governo Inglês, no ministro iraniano, Mohammed Mossadegh, em 19 de agosto de 1953, causando falha no suprimento ocidental, a crise da nacionalização do Canal de Suez (1956) e a árabe-israelita Guerra dos Seis Dias (1967).

Na década de 1970, ocorrem a Guerra do Yom Kippur (1973) e a Revolução Iraniana (1979), datas dos dois choques do petróleo. Quais suas reais motivações?

A produção estava razoavelmente estabilizada na ordem de 15 milhões de barris/dia. E a variação das produções Opep e não Opep não passavam de três pontos percentuais. Pode-se então entender que não havia crise nem de produção nem de consumo. Os aumentos de preço, em 1973, nem mesmo traziam o preço do barril aos valores ajustados do dólar estadunidense de 1928 para 1973. Apenas em 1979 houve significativo aumento real que, não suportando a demanda, gerou o “oil glut”, de 1980. Porém as finanças haviam desfechado forte golpe na industrialização e nas governanças de seus representantes na Europa e nos EUA. A vitória das finanças resultou nas desregulações financeiras na década de 1980, tendo início em duas grandes praças: Nova Iorque e Londres.

Voltemos para entender as respostas da China a esta significativa troca de poder no mundo ocidental que teve consequências globais.

A Revolução Cultural ocorre durante os choques do petróleo, mas não era a China importante comprador nem fornecedor de petróleo. A riqueza energética da China estava e está no carvão mineral e na capacidade de gerar hidroeletricidade.

Também os chineses não são infalíveis nem deuses, que não cometam erros e não sofram de equívocos, principalmente por serem acossados pelo Ocidente (onde incluímos o Japão, uma Grã-Bretanha no Pacífico) que jamais se conformam de perder tão imenso país e mercado.

Assim, a Revolução Cultural teve disfunções que foram atribuídas ao Bando dos Quatro, grupo de membros do PCCh composto por: Jiang Qing (esposa de Mao Tse Tung), Zhang Chun Qiao, Wang Hong Wen e Yao Wen Yuan.

Desta situação se aproveitou Deng Xiao Ping, líder nacional entre 1978 e 1992, que pôs em prática reformas econômicas que fariam da China o país com maior crescimento econômico do planeta no final do século 20. Estas reformas constituíram no que se denominou “Quatro Modernizações”, agindo nos setores da agricultura, indústria, comércio, ciência, tecnologia e na área militar, com princípios da competitividade capitalista. Xiao Ping foi o primeiro líder chinês a visitar os EUA, em 1979.

No Ocidente, a desnaturação do racionalismo de matriz cartesiana levou aos extremos de formalismo e binarismo, em que ideias abstratas e até mesmo fantasmagóricas são tomadas como realidades absolutas e monolíticas, de modo a não se conceber quaisquer nuances e matizes que, a toda hora, despontam na história, sem que os ocidentais consigam se aperceber delas. O mercado é contraposto ao planejamento, o nacionalismo à globalização…

Assim não pensam os dirigentes chineses, que, à luz dos preceitos tradicionais da sua própria civilização, encontram complementaridades onde os ocidentais só enxergam dicotomias e vislumbram oportunidades onde aqueles só veem crises.

A liberalização econômica na China se deu mais no sentido de destravar as forças empresariais privadas do que diminuir a capacidade de direção estatal. Mais mercado não significava menos Estado, porém um tipo diferente de Estado, a ser incrementado nos pontos críticos para a consecução dos objetivos nacionais.

Como exemplo prático tem-se que, criando as Zonas Econômicas Especiais onde empresas estrangeiras podem se instalar, sempre houve e há o controle do Estado Nacional e as empresas estrangeiras necessitam de parceria com empresas chinesas.

Mas promoveu mudanças que poderíamos atribuir ao princípio maoísta da Revolução Permanente. Jiang Ze Min e Hu Jin Tao, que assumiram o Secretariado do PCCh após a Deng Xiao Ping, foram adequando as mudanças aos condicionamentos da China. Xiao Ping morreu em 1997 defendendo a economia de mercado socialista.


China quer paz e progresso mundial

País territorialmente imenso e populoso, para arrogantes e autorreferentes potências europeias e estadunidenses, é inimigo natural.

O Consenso de Washington (1989) fez mal a todos. Levou a Europa ao desastre econômico e social em que se encontra nesta terceira década do século 21, fez dos EUA apenas um exército em ação no mundo, que nem tem capacitação tecnológica de enfrentar a Federação Russa, como está evidente nesta guerra travada na Ucrânia. E, nas áreas coloniais, já não sufoca com brutalidade as rebeldias africanas e se curva à extrema direita nas Américas.

Desde o 18º Congresso do PCCh, aberto em 2008 por Hu Jin Tao, desenvolve-se uma nova prática de governança que é denominada socialismo com características chinesas. O sucesso tem sido imenso: a China não é apenas uma potência econômica, mas também tecnológica e de ampla influência política, como se observa nos empreendimentos: Iniciativa do Cinturão e Rota ou Nova Rota da Seda, envolvendo 147 países; Organização para Cooperação de Xangai (OCX), composta por nove membros, nove parceiros de diálogo, três observadores e três organizações; Conferência sobre Medidas de Interação e Construção de Confiança na Ásia (CMICCA), com 27 estados-membros, oito estados observadores e 19 estados não membros participantes; e Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (CEAP), com 21 países-membros localizados no Círculo do Pacífico, além de liderar os Brics, cuja fila à porta para ingresso no grupo aumentou de cinco para 11 membros.

O 20º Congresso Nacional do PCCh, em 2022, estabeleceu que não mais seria o Produto Interno Bruto (PIB), mas sim a integração regional para desenvolvimento tecnológico e maior nível de bem-estar para toda a população, suas principais metas.

O que faz o Ocidente? Em relatório conjunto, o Credit Suisse e o UBS, grandes bancos daquele antigo paraíso fiscal, afirmam que o mundo perdeu US$ 454,4 trilhões, e entre os grandes perdedores estão os EUA, Japão, China, Canadá e Austrália. Deve ser porque nenhum valor tem mais a Alemanha para perder, o que dirá da França e do Reino Unido!

Escrevendo sobre as questões que envolvem a Ásia Central, o jornalista Pepe Escobar afirmou:

Por mais que a Rússia seja – e continuará a ser – uma moeda conhecida em todo o “Heartland”, o modelo chinês é insuperável como exemplo de desenvolvimento sustentável, capaz de inspirar uma série de soluções nativas da Ásia Central.

É este país que quer a guerra anunciada pelos EUA e pelo Japão? Escreve Mike Whitney (Global Research):

Os Estados Unidos precisam ter um inimigo. Nos últimos sete anos, o inimigo tem sido a Rússia. Agora o foco mudou para a China.

E enumera:

  • Washington Examiner: “A América demorou muito para acordar para a ameaça da China”;
  • The Hill: “Os EUA estão prontos para enfrentar as ameaças da China a tempo de fazer a diferença?”;
  • Newsweek: “Xi Jinping está preparando a China para a guerra”.
  • E conclui: “De acordo com os gênios da grande mídia – a China é o problema, a China é a ameaça e a China é o país que está empurrando o mundo para a guerra”.

Com passado e presente estadunidenses, quem pode acreditar em tal sandice?

A guerra está no cerne da estratégia internacional do Ocidente binário e excludente. Não da China, que, buscando liderança na capacidade de definição da ordem mundial, sabe que precisa criar alianças que facilitem seus negócios.

Onde a Otan enxerga inimigos a serem rendidos, a China enxerga aliados a serem atraídos; onde a primeira vê oposições irredutíveis, a segunda vê complementaridades disponíveis. A grande aspiração do ser humano enquanto ser social sempre foi a paz. A estratégia chinesa é verdadeiramente humanista, ao contrário da estadunidense-norte-atlântica.

Felipe Maruf Quintas é doutor em Ciência Política.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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