O aniversário do real

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O real, a moeda vigente no país, completa cinco anos, assim como o anúncio oficial do Plano Real pelo então presidente Itamar Franco – embora se possa localizar o início efetivo do plano nas discussões que deram lugar à criação do Fundo de Estabilização Fiscal, em novembro e dezembro de 1993, e nos passos preparatórios à introdução do plano de estabilização que se seguiram, como a criação da URV, já em fevereiro de 1994.
É provável que o Governo prepare um esquema de publicidade em torno desse aniversário que convença alguns brasileiros a colocar no gelo e abrir uma garrafa de champanhe. E ainda é provável que a primeira taça da bebida desça suave e provoque felicidade – o grande indicador que é alardeado aos quatro cantos, a taxa de inflação, corresponde exatamente ao maior sucesso do plano. Efetivamente, a inflação anual cai do patamar de quatro dígitos (mais de 2.500% ao ano em 1993, medida pelo ICV-Dieese), para menos de 1% cinco anos depois (em realidade, 0,5% em 1998, medida pelo mesmo ICV-Dieese). Mesmo com os impactos da desvalorização cambial do início desse ano, a menos de uma nova crise cambial, a taxa de inflação deve continuar no patamar de um dígito. Ou seja, visto estritamente no campo da estabilização dos preços, o Real poderia ser considerado um retumbante sucesso.
A partir daí, entretanto, as taças seguintes a serem sorvidas não terão mais sabor tão agradável, e provavelmente propiciarão uma grande ressaca no momento seguinte. O Plano Real, tal como foi lançado (e consta na exposição de motivos que o encaminha ao Congresso) objetivava ser não apenas um mero plano de estabilização, mas propiciar uma nova etapa de desenvolvimento sustentado com  distribuição de renda. Deste ponto de vista, o plano já não teria avaliação tão generosa, podendo mesmo ser caracterizado como um insucesso, como veremos a seguir. Além disso, à estabilização dos preços também correspondeu uma desestabilização de uma série de outros importantes indicadores do bom andamento da economia nacional.
O principal deles é o chamado “crescimento com distribuição de renda” anunciado em 1° de julho de 1994. As taxas de crescimento, que giraram em média em torno de 5,5% nos anos de 1993 e 1994, regridem para menos de 0,2% em 1998 – com uma discussão sobre algum número negativo entre 1% e 3% para esse ano. Quanto à distribuição da renda, o Plano Real representou relativa melhora na distribuição da renda no país no primeiro semestre de sua adoção, o que representa exatamente o efeito redistributivo do fim da inflação, que acontece uma só vez. A partir daí, a concentração de renda (a medição é feita com base no Índice de Gini para a Região Metropolitana de São Paulo) se estabiliza em um patamar suficiente para manter o Brasil como um dos países de maior concentração de renda no mundo. Dessa forma, vemos que o Real não representou nem crescimento sustentado nem distribuição da renda de forma sustentada.
Além disso, vale a pena levantar os números do desemprego, que mostram um dos mais perversos efeitos sociais do Plano Real. As taxas de desemprego, medidas para diversas regiões metropolitanas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), crescem de uma média de cerca de 15% em 94 para uma média estimada (a menos de novos pacotes recessivos que a ampliem) em torno de 20% em 99 – um aumento de cerca de 33%. Caso se utilize a Pesquisa Mensal de Emprego, apurada pelo IBGE, as taxas passam de em torno de 5% em 94 para uma estimativa de algo como 8% em 99 – um aumento estimado de 60%! Além de aumentar as taxas de desemprego, e o que é mais dramático, aumentou o tempo de procura por um novo emprego. O tempo médio, em Brasília por exemplo, chega a 52 semanas e para a Região Metropolitana de São Paulo a 39 semanas. O que quer dizer que, além de mais desempregados, temos uma população desempregada por mais tempo.
No plano das relações com o resto do mundo, nova desestabilização. A balança comercial brasileira se inverteu de 1994 para 1995, passando de um superávit de cerca de US$ 10 bilhões em 94 para um déficit de cerca de US$ 3 bilhões já em 95. Esse déficit chega a mais de US$ 8 bilhões em 97 e recua em 98 para cerca de US$ 6,5 bilhões a custa da contenção do crescimento econômico. Em 1999 o Governo, que já havia trabalhado com uma previsão otimista de um saldo de US$ 11 bilhões positivo, retrocedeu essa avaliação para US$ 4 bilhões antes da metade do ano, e o andar da carruagem mostra que já será lucro chegarmos ao final do ano com as contas zeradas, ou um pequeno saldo. O déficit em transações correntes do país, entretanto, apresentou comportamento explosivo – pulou de algo como US$ 1,7 bilhão em 1994 para quase US$ 35 bilhões em 1998. Além disso, a dívida externa do país cresceu US$ 75,5 bilhões entre 1994 e 1999, atingindo mais de US$ 220 bilhões. Esse déficit, que representa a soma da balança comercial com a de serviços, mede o montante que tem que ser financiado com a entrada de capitais, vem crescendo ano após ano e mostra claramente a constituição de um modelo dependente em relação à entrada de capitais externos.
Para atrair esses capitais que fecham a conta das relações com o exterior, adotou-se desde o início do Plano Real uma política de taxas de juros extremamente elevadas. As taxas de juros reais elevadas, praticadas durante todo o período, exercem o duplo papel de atrair recursos externos e conter o crescimento econômico, funcionando para tentar equilibrar o desequilíbrio das relações com o exterior. Além disso, no período posterior a desvalorização do real, as taxas de juros elevadas serviram para conter ainda mais a atividade econômica, tentando evitar um repasse a preços generalizado dos impactos da desvalorização cambial. A taxa de juros real média em 98 foi algo em torno de 26%. Mas além de se manterem elevadas, as taxas de juros no Brasil apresentaram-se também extremamente voláteis, subindo fortemente a cada crise financeira internacional, com o discurso de ser o mecanismo mais eficaz de defesa da moeda nacional. Como as crises financeiras internacionais se sucedem desde o início do Real (vale lembrar que a crise mexicana já é do final do próprio ano de 1994, e a esta se seguiram inúmeras turbulências no mercado financeiro internacional, culminando com a própria crise brasileira no início deste ano), as taxas de juros apresentam vários momentos de descontinuidade, variando fortemente – para cima. Como efeito das taxas de juros elevadas, inverte-se a situação fiscal do país, passando-se de um superávit nos anos de 1993 e 1994 para um déficit nos anos seguintes. Só em 1998, o setor público pagou cerca de R$ 72,5 bilhões de reais a título de juros sobre a sua dívida, enquanto a dívida pública do setor público passava de R$ 153 bilhões, ao final de 1994, para mais de R$ 500 bilhões em 1999. Essa política de geração de um enorme passivo público interno, enquanto permanecer administrável, tem como conseqüência a transferência brutal de renda do setor público para o setor financeiro da economia, e um permanente aperto orçamentário, apesar do déficit, complicando ainda  mais – senão impedindo – a capacidade do Estado brasileiro em promover alguma política pública consistente para a área social.
Como se pode perceber, apesar da estabilização da moeda, o Real vem produzindo uma enorme desestabilização da economia, ainda em curso, e que só poderemos avaliar na sua totalidade com o esgotamento do conjunto de políticas – como a de juros elevados e captação de recursos externos voláteis – que está nas raízes do plano.

Adhemar S. Mineiro
Técnico do Dieese-RJ, conselheiro do Conselho Federal de Economia e membro do Conselho Editorial do MONITOR MERCANTIL.

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