O bacharelismo jurídico contra a República

O espírito do ‘dotô’: só é bom quem passou pelo curso de Direito Por Gustavo Biscaia de Lacerda

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Magistrado (foto Conselho Nacional de Justiça)
Magistrado (foto Conselho Nacional de Justiça)

Há talvez uma década, assistimos no Brasil a uma crise dura e sistemática da República, em que os poderes Executivo e Legislativo têm sido utilizados para degradar e assaltar o Estado e as instituições. De maneira frágil, em 2022–2023, resistimos a esses ataques, embora permaneça a chantagem contra as instituições republicanas, como se vê na cínica avidez com que se mantêm as “emendas ao orçamento”.

Isso não é casual. Misturam-se aí a oportunidade de assaltar o Estado com a mais completa confusão a respeito de quais são os princípios que devem regular a conduta republicana, sem deixar de lado alguns dos piores costumes da vida em comum. Em outras palavras: oportunidades, confusão intelectual e péssimos costumes.

As próprias instituições que deveriam resguardar o conjunto da República atentam contra ela. As críticas geralmente vão contra o Poder Executivo – que, bem vistas as coisas, é o governo e o principal ramo do Estado – e contra o Legislativo – que consiste no fiscal do orçamento –, mas, cada vez mais, o Judiciário, que em outros períodos manteve uma atuação discreta, apresenta-se como disfuncional.

Na verdade, o problema não é só o Poder Judiciário em si, embora ele, por si só, seja um crescente problema. No Brasil, repetimos a teoria dos “três” Poderes, mas, desde 1988, temos quatro Poderes, na medida em que o Ministério Público é autônomo em relação aos demais. Ora, o próprio Ministério Público é extremamente problemático, como ilustram com clareza as atuações estranhamente conjuntas e conflitantes da Lava Jato, de Rodrigo Janot e de Augusto Aras.

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Deixando de lado os graves problemas institucionais, culturais e políticos do Judiciário e do Ministério Público – irresponsabilidade e ausência total de prestação de contas, sem contar a atuação conjunta para aumentarem cada vez mais seus salários –, um traço muito claro de ambos é o espírito bacharelesco do Direito, ou, simplesmente, o bacharelismo jurídico.

Certamente outras pessoas já definiram o bacharelismo. Para o que nos interessa, o bacharelismo jurídico é o conjunto de hábitos mentais e concretos, ou melhor, de preconceitos compartilhados por estudantes e profissionais formados no curso de Direito, segundo os quais quem tem “formação jurídica” é melhor do que quem não tem essa formação.

Essa mentalidade implica um respeito automático por quem possui essa formação e – mais importante – implica também um desrespeito, uma desvalorização, uma desconsideração igualmente automática por quem não tem a formação jurídica.

É uma das formas mais grotescas e degradantes de academicismo, mas não apresenta o aspecto intelectualista de quem acha que o universo se resume às universidades; ao contrário, o bacharelismo jurídico considera que só é bom, só presta, só pensa, só tem direito à dignidade humana, só é cidadão quem passou pelo curso de Direito.

Mais importante ainda: a relação inversa também é verdadeira. Para o bacharelismo jurídico, quem não tem formação jurídica simplesmente não presta, não merece respeito, não é cidadão. A quem tem o título de bacharel, paciência, boa vontade, sorrisos abertos; a quem não tem o título, má vontade, irritação, ligeireza, caretas. Consciente e intencional ou, ainda mais, inconsciente e involuntário, trata-se do espírito de abjeta subserviência a quem é chamado de “dotô”.

É claro que, em face de uma acusação desse tipo, a resposta-padrão será negar os traços indicados acima. Mas é no dia a dia que percebemos que essa negativa é vazia, e o bacharelismo é real e entranhado. De modo geral, o Judiciário é caro, complicado e, de propósito, muito distante da vida dos cidadãos, e o Ministério Público segue a mesma trilha – claro, a despeito de todos os rios de tinta que juízes, desembargadores, ministros, procuradores e “membros do Ministério Público” gastam para justificarem-se em discursos autocongratulatórios.

Há algumas instituições que deveriam ser mais próximas e acessíveis aos cidadãos, como os juizados especiais (um ramo do Judiciário) e até a Fundação Procon (que é privada); mesmo essas instituições são contaminadas pelo bacharelismo jurídico. (A Defensoria Pública é relativamente nova no Brasil e não temos como argumentar a respeito dela; mas não duvidamos de que, se apostássemos contra ela no caso do bacharelismo, provavelmente ganharíamos.)

Procon, juizados especiais, ramos não penais do Ministério Público: em todos eles, os funcionários têm uma especial deferência para com quem é bacharel em Direito ou está estudando para sê-lo. Essa deferência é manifestada por profissionais de carreira e por estagiários, sejam ou não vinculados ao curso de Direito.

Além disso, como indicamos, o respeito bacharelesco tem o seu reverso, em que todos os demais cidadãos são alvo de um tratamento impositivo, que faz questão de indicar que não ser bacharel implica uma condição social e moral inferior. O bacharel é tratado com um respeitoso “senhô dotô” (ou “senhora dotôra”); os demais são tratados por um reles “você”.

Os estagiários são subservientes aos “dotores”, mas, por sua vez, exigem a subserviência calada dos demais cidadãos – e, claro, tal exigência é sempre feita sob a ameaça de penalidades, processos, atrasos, multas, decisões desfavoráveis etc. (Prática habitual do Ministério Público, aliás.)

Os cidadãos podem estar certos em suas demandas e são ouvidos com displicência e rapidez; mas, quando o “dotô” fala, os funcionários do Procon, dos juizados especiais e do Ministério Público dão-lhe toda a atenção e o tempo do mundo.

O “dotô” pode falar o que quiser – os maiores sofismas, as maiores mentiras, as maiores degradações. Como é “dotô”, pode falar o que quiser; ao espetáculo de sofismas e erros, o cidadão comum tem que ouvir calado, satisfeito, fingindo que as mentiras são a verdade, que a degradação não rebaixa o ser humano. Caso o cidadão reclame, ache ruim ou, no limite, exalte-se, será ameaçado ou exemplarmente punido. É isso o bacharelismo.

A Justiça brasileira, sabe-se, é cara e feita com viés de classe. Ou melhor, tem viés de casta, com um aspecto medieval. Ela é cara não apenas porque juízes, desembargadores, promotores e “membros do Ministério Público” exigem salários e penduricalhos cada vez maiores e injustificáveis, sem que se responsabilizem de verdade por suas atuações.

Mais importante ainda, a Justiça é cara porque o acesso a ela é caro, porque é estruturada de maneira que apenas quem tem dinheiro – ou melhor, muito dinheiro – pode pagar as altíssimas taxas cobradas por advogados e pelo sistema judiciário (incluindo aí os cartórios). Esses custos não existem apenas para saciar a avidez pecuniária dos envolvidos; representam o aspecto material de preconceitos de casta, contrários ao povo e à noção republicana de cidadania. São a face material do espírito bacharelesco.

Em suma, para recuperar a República e valorizar a cidadania, o caminho passa necessariamente pelo combate ao bacharelismo jurídico.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

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