A recente visita do presidente Lula à China selou a assinatura de vários acordos de cooperação em diferentes áreas, mas um deles desperta viva esperança na sociedade brasileira: aquele que anuncia a cooperação com a China para a construção de ferrovias no Brasil, entre as quais, informa-se, a que ligaria a cidade de Ilhéus, no litoral da Bahia, a Shancay, no litoral do Peru, onde o gigante asiático já construiu um porto de grande envergadura.
O contraste entre o modal ferroviário da China e do Brasil é humilhante para os brasileiros. Enquanto a China possui cerca de 162 mil km de ferrovias, com 77% eletrificadas e 47 mil km de alta velocidade, o Brasil, com apenas mil km² a menos que a nação asiática, tem apenas 30 mil km de ferrovias, com apenas mil km eletrificados, sendo que mais de 90% são dedicados ao transporte de carga.
Deve-se considerar que, ao final da Era Vargas — que os economistas, em sua maioria, concordam ter sido de 1930 a 1980 —, o Brasil registrava um PIB industrial maior que o da China e dos Tigres Asiáticos somados. Hoje, o PIB industrial brasileiro não alcança 30% do chinês, ao passo que a China é, atualmente, a segunda maior economia do mundo, certamente a maior fábrica do planeta, a caminho de superar, em breve, a economia dos EUA.
Em todo esse período pós-Era Vargas, o Brasil se desindustrializou vertiginosamente, declínio que foi acompanhado, também, pelo desmantelamento do Sistema Ferroviário Brasileiro, com o ápice em 1997, durante o governo FHC, responsável pela privatização da Rede Ferroviária Federal — um tremendo contrassenso num país de dimensões continentais.
O Brasil até registrou iniciativas em favor das ferrovias, por exemplo, com a criação da Mafersa (Materiais Ferroviários S/A) em 1944, mais tarde estatizada no governo Jango, em 1962. Porém, a prioridade dada ao rodoviarismo no governo JK foi esmagadora, e, mesmo com a criação da Rede Ferroviária Federal, aquela medida tinha por objetivo assumir e pagar a dívida com os investidores ingleses, ao tempo em que as ferrovias foram, gradativamente, sendo reduzidas, a começar pelo transporte de passageiros, com centralidade nos governos do período ditatorial conferida ao modal rodoviário — apesar de ser bem mais caro, menos eficiente e responsável por macabras estatísticas de acidentes automobilísticos, responsabilidade que deve ser atribuída, em grande parte, à precariedade das rodovias brasileiras.
A chiadeira da indústria ferroviária brasileira
A notícia de que o presidente Lula firmou acordos para uma cooperação de grande fôlego com a indústria ferroviária da China provocou ruidosa reclamação da indústria ferroviária instalada no Brasil — em esmagadora maioria composta por empresas estrangeiras —, que reclamam, basicamente, do baixo volume de encomendas por parte do Estado brasileiro ao longo de todo esse período, fazendo com que nem mesmo a capacidade instalada de produção de locomotivas por ano, cerca de 250, seja alcançada. A estatística mais recente é de 75 locomotivas por ano, no último período. Convenhamos: para um país com cerca de 215 milhões de habitantes e sendo o quinto país em extensão territorial, é realmente um número raquítico.
Com a extinção da Mafersa, o que se coloca agora é o formato desta anunciada parceria com a China para alavancar o modal ferroviário no país, inclusive face à intenção do governo Lula — ainda não alcançada — de sustar e inverter o processo de desindustrialização no Brasil, especialmente em função da escassez de investimentos estatais ou privados, como decorrência da prioridade dada às altas taxas de juros, que corroem quase metade do Orçamento Federal, drenando recursos públicos para a tirania financeira, comandante da política econômica hoje.
Além deste empecilho financeiro, que deve ser removido, economistas como Paulo Nogueira Batista Jr., ex-vice-presidente do Banco do Brics, alertam para um traço colonial na relação Brasil-China hoje, com o Brasil exportando, majoritariamente, produtos primários para a China e de lá recebendo produtos industrializados e com alto valor agregado. Esse traço, que tanto incomoda correntes progressistas — apesar de defenderem resolutamente a parceria sino-brasileira —, traz à tona a necessidade de o Brasil comparecer nesta relação com um grau superior de protagonismo e planejamento, para não dar continuidade ao desequilíbrio que nos mantém longe da meta de reindustrialização, que poderia sofrer forte impacto a partir de uma enérgica guinada brasileira por um ferroviarismo que o povo brasileiro merece.
Essa cooperação ferroviária anunciada, de algum modo, contrasta com a instalação crescente de indústrias automobilísticas chinesas no Brasil, trazendo à tona o questionamento sobre o fato de o Brasil ser o quarto maior mercado automobilístico do mundo, mas não possuir uma única marca nacional. Iniciativas como a do governo Getúlio Vargas, de instalar a Fábrica Nacional de Motores, foram logo sepultadas pela submissão ao rodoviarismo estadunidense dos governos posteriores.
Esta cooperação ferroviária pode aproveitar a capacidade instalada da Nuclep, indústria estatal de material pesado, hoje funcionando com capacidade ociosa, e que pode ser perfeitamente adaptada para a produção de locomotivas e demais materiais ferroviários, como vagões de carga e de passageiros, trilhos etc. E, com especial empenho para a transferência de tecnologia chinesa para o Brasil, já que a China é a vanguarda ferroviária mundial — venceu 8 das 10 mais importantes licitações ferroviárias nos últimos 10 anos —, e o modelo chinês de absorção de tecnologia estrangeira também pode ser implementado nesta parceria, para que, de fato, seja uma cooperação e não uma relação baseada na verticalidade e na dependência tecnológica.
Certamente, não é absurdo almejar a meta de uma triplicação da malha ferroviária brasileira em prazo relativamente curto, com capacidade para alavancar a industrialização a partir da Nuclep estatal, com os desdobramentos previsíveis na geração de empregos qualificados — há estatísticas apontando para o declínio no emprego em engenharia no país — e também nos setores de metalurgia, eletrificação e obras civis, conexos a uma expansão ferroviária capaz, também, de reduzir o custo Brasil, além de proporcionar mais economia de tempo e segurança no transporte de passageiros e cargas.
A anunciada parceria ferroviária Brasil-China é o tipo de cooperação ganha-ganha e, certamente, o Banco do Brics poderá proporcionar investimentos para esta empreitada rigorosamente sintonizada com a missão da entidade: um projeto produtivo, expansivo, industrializante, gerador de empregos intensamente e alcançando uma das metas do Brics sustentadas pelos dois países, a construção de um mundo multipolar, a partir do grande impulso que pode gerar na integração sul-americana.
Beto Almeida é jornalista, conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).