O Brasil e a Guerra na Ucrânia

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Prédio destruído em Mariupol, Ucrânia (foto de Victor, Xinhua)
Prédio destruído em Mariupol, Ucrânia (foto de Victor, Xinhua)

País corre o risco de ser arrastado, despreparado, para dentro do imbróglio

 

Recentemente, o presidente Lula tem feito movimentos diplomáticos objetando a construção de um caminho para a paz no atual conflito na Ucrânia. De antemão cabe mencionar que suas ações estão pautadas por um objetivo sincero de tentar ajudar um povo que está sofrendo os efeitos avassaladores de uma guerra. Todavia, por uma série de fatores – tais como isolamento geográfico, histórico de país colonizado, reduzido papel militar global – um conjunto de aspectos não estão sendo pesados nesta política, que, em que pese as boas intenções, tende ao voluntarismo. Neste artigo serão tratadas a seguir algumas destas dimensões.

 

Capitalismo x feudalismo

O modelo de globalização norte-americano é excludente, com enorme concentração de renda nas mãos de poucos e voltado para os interesses dos ditos países ricos. Por outro lado, permite uma agenda multilateral, estabelece regras claras para quase todos, quase todo o tempo, e possibilita que nações como a brasileira formem coalizões políticas ou comerciais para a disputa de seus interesses.

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Esse modelo, como se sabe, dá claros sinais de esgarçamento, mas pode e deve ser melhorado, avançando na construção da inserção soberana das nações e na distribuição de renda, para além da promoção das liberdades democráticas.

A antítese da globalização, em tempos nucleares, é a barbárie. O que na prática é justamente as consequências da política de Putin. Como é notoriamente sabido, o principal objetivo estratégico russo neste conflito, para além da submissão ucraniana, é colocar em xeque a arquitetura do sistema construído pelos EUA depois de 1945.

O que se quer colocar no lugar é justamente onde reside o problema, pois se trata do retorno da multipolaridade clássica característicos do século 19 e da metade do século 20. Neste novo contexto, o Leste Europeu estaria na esfera de influência russa, o sul da Ásia e o Mar da China sobre controle chinês, a América do Norte e a Central sob o mando dos EUA, e vários dos demais locais, em disputa.

Neste cenário, acordos comerciais, disputas de fronteira e políticas globais, como as voltadas para o combate ao aquecimento do planeta, seriam resolvidos nos gabinetes de cinco ou seis nações. Ou seja, o Brasil, para ter suas posições ouvidas e seus direitos nacionais minimamente preservados, se veria compelido a ser o potentado da América do Sul, tendo ainda que lidar com diversas ameaças globais. Na prática a antítese do caminho nacional percorrido dos dias do Império até a atualidade.

As implicações em termos de potencialização de conflitos são enormes, até difíceis de calcular. Certamente, os gastos militares e em inteligência se veriam ampliados exponencialmente, ou a opção seria se tornar um protetorado militar de outrem. Em síntese, o capitalismo atual é um sistema com múltiplas falhas. Alguns reivindicam sua reforma, outros, sua superação, mas ninguém politicamente relevante reivindica o retorno ao feudalismo.

 

Imperialismo russo

A Rússia, em sua história, foi invadida por mongóis, poloneses, suecos, franceses e alemães. Em todas estas invasões o país foi devastado, e em algumas vezes sua capital destruída. Alega-se que essas provações geraram no subconsciente de seu povo uma constante necessidade de expansão das fronteiras nacionais, vez que não existem grandes obstáculos naturais separando Moscou do restante da Europa.

As enormes extensões de terra seriam, portanto, a base da defesa nacional, em que o invasor veria suas linhas de suprimento retesadas, seu efetivo espalhado, e assim exporia suas fragilidades e seria derrotado.

Sob este imperativo da necessidade de expansão, a Polônia foi dividida várias vezes e em parte ocupada, o mesmo valendo para a Finlândia no século 19 e os países bálticos. Mesmo com o fim da União Soviética, o experimento de algumas nações em se separarem da esfera russa não foi muito bem recebido. Por conseguinte, a tentativa da Chechênia se tornar independente resultou na quase completa destruição de Grózni, posteriormente a Geórgia foi invadida e desmembrada, e por fim a Ucrânia teve parte de seu território invadido em 2014, e em 2022 ocorre esta última tentativa de ocupação completa.

As nações se rebelam, tentam ou se tornam independentes, a Rússia ataca e ocupa ou tenta fazê-lo. Todavia, é interessante notar que esse discurso do terror coletivo das invasões não justificaria atualmente um comportamento análogo por parte da Alemanha, mesmo que esta tenha perdido um quarto de sua população durante a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648), ou tenha sido palco de vários dos principais conflitos europeus. O mesmo valeria para a Polônia, que pouco conseguiu existir de maneira independente nos últimos 500 anos.

De fato, se todas as nações que foram pilhadas, invadidas, ocupadas e divididas tiverem a necessidade de expansão territorial dos russos, somente um planeta terra não será o bastante. A Rússia já possui a maior dimensão territorial do mundo. Para além disso, essa nação é uma potência nuclear, cujas ogivas estão espalhadas por bases secretas em seu território, bombardeiros estratégicos no ar e submarinos espalhados por diversos mares. Se o país viesse a ser ameaçado por qualquer invasor em suas fronteiras, teria capacidade de retaliar um primeiro ataque de forma devastadora. Para além de que, em tempos de satélites, qualquer preparação de invasão sobre seu território seria detectada muito antes, como a própria tentativa de conquista da Ucrânia demonstrou.

Certamente, a constante expansão da Otan não ajudou a pacificar os ânimos, mas a pergunta a ser feita é: qual o porquê do desespero de tantas nações que circundam esse país em estabelecer pactos militares de defesa? Por que o receio de quase toda a Europa?

Aproximando o debate e tomando como exemplo o entorno próximo, o Brasil teve conflitos com a Bolívia e Paraguai em que ganhou território, e vivenciou várias guerras na Bacia do Prata, envolvendo Argentina e Uruguai. É um país gigantesco, com maior território, maior população, maior economia e maiores Forças Armadas em relação aos vizinhos. Tem como peculiaridade ser uma nação de língua portuguesa com todas as demais nações da região de colonização hispânica.

Todavia inexistem coalizões regionais contra uma pretensa ameaça brasileira. Isto não se dá porque todo brasileiro sabe que o país não possui qualquer pretensão nacional sobre a tomada de territórios de outrem. Seja na imprensa marrom, em devaneios políticos de esquerda ou direita, em bancos acadêmicos messiânicos ou de maneira mais ampla, no subconsciente coletivo. E essa ausência de pretensões é facilmente constatada por estas nações e se traduzem por sua vez em diversas políticas e acordos buscando aprimorar segurança regional.

 

Poder informacional e conservadorismo

Como se observa, com o advento dos armamentos atômicos, as potências nucleares passaram a se enfrentar entre si em diversas dimensões, menos via guerra convencional. Um dos modelos de exercício do poder privilegiado pelos EUA foi explorar a dimensão cognitiva, executando operações informacionais em diversos pontos do globo, com o óbice de derrubar governantes, gerar conflagrações internas paralisantes ou dilapidar economias rivais.

A derrubada do governo de Mohammed Mossadegh, no Irã, em 1953, de Salvador Allende, no Chile, em 1973, ou de Slobodan Milošević, na Sérvia, em 2000, são apenas alguns casos emblemáticos e extensamente documentados deste tipo de ação. As revoluções árabes e o “Euromaidan” da Ucrânia em 2014 são (possíveis) exemplos recentes da atualidade dessa política.

Paralelamente, a Rússia, por motivos distintos, chegou à conclusão semelhante, de que o terreno onde os norte-americanos poderiam ser desafiados seria o informacional, já que na dimensão militar convencional possuem ampla prevalência, e na atômica seria o fim do planeta. Eventos como o ataque cibernético a Estônia, Georgia, Ucrânia e as medidas de desinformação no Brexit britânico ou nas eleições presidenciais dos EUA de 2016 são casos emblemáticos da intervenção russa a partir dessa esfera, operadas por seus serviços secretos.

Aliás, em mais um exemplo das contendas dessa dimensão, atualmente o governo russo vem se tornando o campeão de parte do conservadorismo mundial, assumindo essa narrativa com o óbvio propósito de pôr em xeque justamente a globalização patrocinada pelos norte-americanos, criando divisões internas dentro deste país e no conjunto do Ocidente.

Justamente neste contexto, é factível presumir que sempre que o governo brasileiro assumir protagonismo global, colocando em jogo algum dos blocos em disputa, correrá o enorme risco de se tornar alvo de operações psicológicas e desinformação, como já ocorreram diversas vezes na história.

Claro que o país não deve se intimidar com isso, nunca será um protagonista global se o fizer. Mas, por outro lado, não pode ser leviano. A estrutura nacional de inteligência ainda sofre forte herança da Guerra Fria, operações de informação são quase uma abstração para o Estado e a Universidade, e sequer existe uma agência de inteligência de sinais para lidar com a espionagem digital e retaliar quando necessário. A arquitetura de defesa informacional brasileira está na infância. Atrair mais um conflito sem um alicerce e em meio à polarização que já se vive atualmente não deveria ser uma prioridade.

A construção de espaços de poder alternativos passa mais por caminhos onde o protagonismo brasileiro está escancarado, como a agenda ambiental, alimentar ou de integração logística da América do Sul. A economia tem que se fortalecer, e a nação tem que aprender a se defender tanto na dimensão física quanto cognitiva. Se posicionar em um conflito que pouco se entende, e em que nenhum dos envolvidos lhe considera um mediador legítimo, muitas vezes fortalece, mesmo que involuntariamente, o lado do invasor. Isso para além de se correr o risco de ser arrastado, despreparado, para dentro do imbróglio, ainda que nas dimensões econômicas ou informacionais.

 

Vladimir de Paula Brito é doutor em Ciência da Informação.

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