Tendo sido criança na década de 90, assumo ter a audácia de falar, em nome da parcela mais jovem da minha geração, que já presenciamos oportunidades imaginárias suficientes de o mundo acabar, assombrados pelo fim desde que o mundo é mundo. Mas posso dizer também que os nossos mundos já acabaram um punhado de vezes, porque o que convencionamos chamar de “mundo” não é exatamente o planeta Terra. Enfim, estamos a viver o mal do século.
Lembro-me muito nitidamente de não entender bem o que era o “bug” do milênio, mas também lembro da certeza abismal de que algo terrível estava para acontecer. A cena da prima andando de bicicleta na chuva, gritando que o mundo ia acabar, é uma daquelas lembranças cinematográficas que retornam como uma memória imaginada: minha versão criança fazendo as sobrancelhas deslizarem uma contra a outra, siamesas. Tendo passado pouco mais de um terço da vida estudando cultura, entendi que o privilégio sobre a datação de qualquer fim é delírio coletivo geracional. Nesse calendário, não nos cabe decidir datas exatas, apesar de termos passado as últimas décadas nos empenhando fortemente para que ela chegue.
E a participação direta da minha geração nessa história toda é de dar pena, porque, quando a gente chegou, nada mais era mato! As possibilidades que nos foram dadas de existir nos levaram a incendiar mundos com a ideia inconsciente de que é possível comprar outros. Em algumas das ocasiões, até pensamos ter conseguido realizar essa transação. E o capitalismo nosso de cada dia deixa claro que, afinal, destruir algumas vezes mais não faz mal. Enfim, outro mal no mesmo século. O “bug” do milênio me parece ser Gregor Samsa metamorfoseado em um monstruoso inseto, acordando sob forte chuva de agrotóxico despejada por um drone. O passado nem bate na porta; entra como convidado de honra, se anuncia com nomes de exterminadores de mundos e entorna barris de leite na televisão. Enfim, males de todos os séculos, sobrepondo-se um a um, onde nossa ilusão schrödingeriana nos mantém mortos-vivos.
Cibele Alexandre Uchoa, Escritora e Pesquisadora. Doutoranda em Direito Constitucional pela UNIFOR, com bolsa Funcap. Sócia-fundadora do IBDCult.