O desafio histórico da Frente Ampla

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Quando se avizinham as eleições de 2020, os partidos que integram o campo da oposição, siglas de esquerda e de centro-esquerda, se aprestam em anunciar candidaturas próprias nas disputas majoritárias – “para serem vistos e fazer o seu discurso”, ou “sua defesa”, como é o caso do PT (é o que se depreende da recente entrevista de Lula ao UOL) – sem considerarem as implicações do resultado do pleito na correlação de forças políticas que presidirá o segundo biênio do atual governo, e, inevitavelmente, sugerirá novos alinhamentos.

Pouco se pode esperar, portanto, seja da união eleitoral das esquerdas stricto sensu, seja mesmo da concertação dos partidos que, de forma diferenciada, fazem oposição ao bolsonarismo.

Por enquanto, a perspectiva é cada um por si, quando o desafio sugere que as forças progressistas latu sensu deveriam perseguir o diálogo sem preconceitos para além de seu círculo de influência mais próximo, para assim caminharem na busca da construção comum de projetos de resistência e avanço.

O processo político em curso exige de todos os segmentos do que podemos chamar de partidos progressistas a formulação de propostas alternativas ao projeto bolsonarista, com vistas a impedir a destruição do Estado e a desorganização nacional. A tal propósito parece consensual a retomada do desenvolvimento, vista como a única forma de fazer face ao desemprego e à ignominiosa concentração de renda que o neoliberalismo ensandecido da Pauta Guedes forceja por agravar.

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A oposição – jungida pela ausência

de estratégia do PT – permanece amofinada

 

Descartada a contingência eleitoral, e independentemente dela, que nos sobre, porém, esperança para ainda crer na expectativa de uma Frente Ampla multipartidária e multissocial. Reiteramos sua necessidade e sua urgência, pois se trata do instrumento adequado para quebrar o imobilismo das forças partidárias e levar a cabo a oposição que as táticas míopes de hoje não veem como imprescindível para salvar o país da desagregação neoliberal, e defender a democracia ante o avanço autoritário do bolsonarismo, processo que pode consolidar-se sem a necessidade de recurso às fraturas tradicionais.

O projeto desconstituinte da nação avança, no governo e no Congresso, neste comandado por Rodrigo Maia, competente operador da Pauta Guedes, ambos, o ministro todo poderoso e o deputado, a serviço do “mercado” e do rentismo, desinteressados do desenvolvimento do país e sem olhos para ver a desagregação social implícita no neoliberalismo que aqui se implanta após seu rotundo fracasso onde foi tentado, de que, para um só exemplo, testemunham a tragédia de nossa vizinha Argentina e as insurgências no Equador e no Chile, onde denunciam a desigualdade e a precariedade dos sistemas de saúde, previdência e educação, o grande legado da ditadura Pinochet que o bolsonarismo, revivendo um ultraliberalismo arcaico, tenta impor a um Brasil na fronteira da recessão, mas ainda sob regime democrático.

No Chile, as grandes massas, principalmente trabalhadores e jovens, tomam as ruas para exigir a retirada da pauta do Congresso das reformas previdenciária e tributária. Enquanto isso, entre nós, a aprovação da reforma da Previdência é o outro lado do silêncio e da imobilidade popular, e sobre uma e outra se espera a reflexão dos partidos. O governo e o Congresso, aliados na pauta Guedes, recolhem assim o estímulo para cuidar da segunda etapa da reforma brasileira – a capitalização, batizada pelo Posto Ipiranga como Nova Previdência.

O projeto reacionário em implantação no Brasil é um repeteco da Pauta Pinochet, e seus resultados não serão diversos, senão a alienação de tudo, aqui como lá, da água e do saneamento básico, do gás, do petróleo, da educação, da saúde, das aposentadorias, dos direitos trabalhistas, dos transportes, do meio ambiente. O capitão já anunciou não haver limites para “afastar o Estado” e de Tóquio avisa que as Forças Armadas estão preparadas “para manter a ordem”.

O Chile de hoje é o Brasil com o qual nos ameaça o bolsonarismo. Lá, os trabalhadores, e eis porque lutam, são obrigados a depositar 2% de seus salários em contas gerenciadas por entidades privadas (é a capitalização de Guedes), os aposentados recebem muito menos do que ganhavam quando na ativa, e, como também se pretende aqui, os militares e os policiais pertencem a outro sistema previdenciário que lhes oferece aposentadorias mais altas; o ensino, que já foi majoritariamente público e gratuito, submergiu sob o peso das empresas privadas de ensino de qualidade duvidosa e mensalidades exorbitantes. É este o projeto do MEC de Bolsonaro.

 

Combate à concentração de renda deve

ser o azimute de ampla mobilização popular

 

As insurgências no Equador e no Chile são a denúncia do fracasso do neoliberalismo, mas também podem ser o preâmbulo de uma reação continental se, além do voluntarismo das massas, surgirem elementos de organização.

O Congresso é um espaço dessa luta, certamente um lócus privilegiado e indispensável, mas não encerra todos os campos do enfrentamento, pois a desfavorável correlação de forças de hoje impõe a prioridade da mobilização social (até para pressionar o Parlamento) que reclama organização em todas os escaninhos da sociedade, até falar às grandes massas, a grande vítima do experimento capitalista, denunciado em números contundentes pela recente Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios Contínua, do IBGE, denúncia que até aqui não mereceu a devida atenção de nossos quadros e de nossas organizações (muito menos da imprensa mais preocupada com os destinos do PSL e outros valhacoutos) e assim tende a cair no vazio, o que nos cabe evitar.

O Brasil não é apenas um país pobre, é uma sociedade crescentemente iníqua, e o projeto de sua revisão – o combate à concentração de renda – deve ser o azimute de uma ampla mobilização popular que as forças progressistas podem concertar, a caminho de uma Frente Ampla de reconstrução nacional, o que, em outras palavras, significa combate sem quartel ao projeto neoliberal, a travar-se permanentemente, agudamente, e, repete-se, independentemente do calendário eleitoral.

É simplesmente imoral a sociedade na qual a renda média do 1% mais rico é 33 vezes superior à da metade mais pobre. Esta desigualdade, que cresceu no último ano, quando estabeleceu seu recorde, deverá aprofundar-se se o projeto neoliberal não for contido, e sua contenção está a depender de um amplo movimento popular nacional, enquanto a Pauta Guedes–Bolsonaro asfixia os investimentos, paralisa as obras de infraestrutura, desarticula o Estado, leva a economia à estagnação, aumenta a pobreza e estimula a concentração de renda.

Com a economia em banho-maria e quando mais grave é a concentração de renda, o neoliberalismo investe contra a empresa nacional, promove a tragédia ambiental, estimula o rentismo, abandona a indústria de transformação, geradora de emprego e riqueza, investe na precarização do trabalho e já anuncia avanços sobre os servidores públicos, o que, ao fim e ao cabo, é o mesmo que procurar acentuar a recessão e o desemprego, com sua dolorosa carga social.

A oposição – jungida pela ausência de estratégia do PT – permanece amofinada, no geral cingida a uma resistência parlamentar sem possibilidade de conquistas objetivas, e não consegue denunciar com eficiência o processo de regressão politico-ideológica e econômica a que o país está submetido, porque não reencontrou o diálogo com as grandes massas e desaprendeu o ofício da organização de base, seja no campo sindical, seja no movimento social.

Seu papel, até aqui – insisto: longe da mobilização popular – tem sido o de responder aos diários desacertos do capitão e sua grei. Esse máximo possível, é, porém, um mínimo para a necessidade do enfrentamento ao governo – um novo regime em construção – pois isto requer a apresentação, à sociedade, em linguagem compreensível pelas grandes massas e atendendo ao seu sentimento – de uma plataforma progressista em oposição ao bolsonarismo, o que exige organização e trabalho de base e, em muitos casos, a revisão de projetos partidários, incluindo mesmo o processo interno de decisão.

Quem não tem estratégia própria termina por submeter-se à estratégia do adversário.

Roberto Amaral

Escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.

ramaral.org

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