O Encontro de Lisboa e o mulato baiano

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Marighella filme (divulgação)
Marighella filme (divulgação)

O que pode ter em comum entre (i) a resposta de Carlos Marighella quando perguntado “quem é você” por Ana Montenegro – disse: “sou apenas um mulato baiano” –, líder revolucionário durante a ditadura militar brasileira, considerado inimigo público nº 1 de seus dirigentes, e (ii) a proposta de Brizola e Darcy Ribeiro de se buscar uma via de conquistas sociais genuinamente brasileira, o chamado “socialismo moreno”?

Ambas retratam a profunda brasilidade desses homens que encarnaram e entenderam a morenice e a grandeza do povo brasileiro e não vacilaram em doar as suas vidas em defesa das liberdades, da democracia e das conquistas sociais do seu povo. Tais líderes mesclavam os conceitos de nação, dando uma outra dimensão às possibilidades e urgência de aplicar as incomensuráveis riquezas naturais e de capital humano do país para eliminar a enorme desigualdade social através do desenvolvimento nacional, apostando na mobilização e no protagonismo do povo organizado.

Tive a sorte de conviver e me engajar nas batalhas destes ícones da história brasileira e, neste artigo, compartilho com vocês impressões e reflexões que espero não apenas servir para recuperar um pouco de nossa História, por vezes esquecida, mas também fomentar o engajamento cívico das atuais e futuras gerações, tão necessário no atual cenário de polarização, globalização e do poder das mídias sociais.

Afinal, foi com essa convicção que Brizola garantiu a posse do então vice-presidente João Goulart em 1961 após a renúncia do presidente Jânio Quadros, durante a Campanha da Legalidade, mantendo-se a frágil ordem democrática brasileira por mais alguns anos – de intensa agitação política e cultural – e que (ii) Marighella, após ser baleado e preso em 1964, criou a Ação Libertadora Nacional (ALN) na clandestinidade, movimento de resistência que atuava através de grupos guerrilheiros urbanos para conseguir recursos e infraestrutura para o desenvolvimento da guerrilha rural.

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Naquela época, em face da dura e impiedosa repressão, viu-se na resistência armada a única possibilidade de se enfrentar a ditadura. O povo brasileiro deveria ser o protagonista para restaurar suas liberdades, expulsar o imperialismo que financiava a repressão e realizar as reformas de base – as mesmas ainda hoje debatidas nos Três Poderes – necessárias para desenvolver o Brasil de modo a gerar a sua própria prosperidade e assim construir uma sociedade mais justa e solidária. Isso tudo sem a interferência das grandes potências internacionais.

Dando um passo atrás, não há como falar de nacional-trabalhismo sem falar de Getúlio Vargas, sobre o qual muito já se falou nesta sequência de artigos sobre o tema, de modo que serei sucinto. Vargas entendeu a necessidade de se colocar o trabalhador brasileiro e os mais necessitados como protagonistas das discussões sociais, conclamando em 1º de maio de 1954:

“Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo. (…) Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade. Trabalhadores, meus amigos! Com consciência da vossa força, com a união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter.”

A reação das elites antinacionalistas, com apoio norte-americano, foi implacável, levando o presidente ao suicídio, após escrever sua Carta Testamento – leitura obrigatória para o bom entendimento daquela época. Sua atitude extrema foi um grito de denúncia da intervenção internacional e da cumplicidade de seus agentes internos, e uma conclamação à luta numa demonstração de fé inabalável no povo e na nação brasileira. João Goulart foi ministro de Getúlio e seu herdeiro político, passando a ser a figura mais importante do trabalhismo após seu falecimento.

Em meados da década de 70, quando muitos banidos e outros refugiados estavam no exílio, além da luta pela anistia e a denúncia da ditadura, existia a convicção de que o regime autoritário não duraria muito, e prosperava a discussão sobre a necessidade de se propor um projeto político progressista e popular capaz de sensibilizar os brasileiros e acelerar o processo de redemocratização. A diáspora brasileira havia dispersado esses patriotas por vários países como Estados Unidos, México, França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Suécia e Portugal. Estes dois últimos países iriam concentrar o maior número de ex-guerrilheiros no exílio.

Nesse contexto, entrava Leonel Brizola como a liderança capaz, por seu passado e evolução política, de dar a força e significado necessário às teses e a esperança daqueles brasileiros por uma pátria livre e justa. A Suécia era governada a décadas pela social-democracia e tinha como primeiro-ministro Olof Palme, que logo se entusiasmou por Brizola e a ideia do novo trabalhismo brasileiro. Neste próspero país escandinavo, onde eu e muitos brasileiros conseguiram asilo após o golpe de Pinochet no Chile, seriam realizados relevantes debates e eventos, com a presença do ilustre convidado Leonel Brizola, nos quais iriam se consolidar a ideia da elaboração de um projeto político que considerasse o legado do trabalhismo de Getúlio, a experiência de Jango, as lutas de resistência à ditadura e liderança carismática de Brizola.

Foi, portanto, a história do nacional trabalhismo, da luta pela libertação nacional, e pela emancipação do povo em direção ao progresso e a prosperidade que inspirou a ação destas lideranças no passado e que naquele momento era revivida por Brizola, Darcy, intelectuais de esquerda e a “turma do gatilho”, como Brizola se referia fraternalmente aos ex-guerrilheiros agora engajados com a proposta do novo trabalhismo, democrático e socialista moreno. Todo o processo se desenvolveria em um clima de otimismo e alegria, alto-astral que muito se devia à Revolução dos Cravos, de abril de 1975, que pôs fim a 48 anos de fascismo em Portugal.

E foi justamente na capital portuguesa que ocorreu o Encontro de Lisboa, realizado entre os dias 15 e 17 de junho de 1979, que, além dos Trabalhistas do Exílio referido acima, contou com a participação dos trabalhistas brizolistas, parlamentares e sindicalistas que estavam no Brasil e ainda enfrentavam os esforços de uma ditadura decadente. Para a realização desta histórica reunião, foi decisivo o apoio do partido socialista português, do seu líder e primeiro-ministro Mário Soares e de um grupo articulado e eficiente de exilados brasileiros, oriundos da resistência armada, que moravam em Portugal.

A Carta de Lisboa, fruto do Encontro, resgata a Carta Testamento de Getúlio, as reformas de base de Jango, o legado de Brizola como governador do Rio Grande do Sul, sua evolução nos campos da educação, reforma agrária e nacionalizações, bem como o legado de Marighella. A Carta, de forma pioneira e explícita, coloca em pauta a importância de se salvar milhões de crianças abandonadas e famintas e condenadas à delinquência, a luta do negro, do índio e das mulheres para que conquistem seus plenos direitos e se construa uma sociedade livre de qualquer discriminação.

42 anos depois, urge que o exemplo do Encontro de Lisboa, inspirado nas lutas do povo brasileiro, nas conquistas concretas do nacional trabalhismo e no sangue derramado de e por patriotas pela liberdade e a democracia, inspire a unidade das forças progressistas, agregando a experiência e o legado positivo dos recentes governos democráticos e progressistas, aprendendo com as falhas ocorridas no caminho e, finalmente, incentivando o diálogo entre diferentes pontos de vista em busca de pontos de convergência e soluções programáticas.

É preciso aceitar com grandeza e sacrifício o desafio da construção de uma ampla aliança, capaz de se contrapor e vencer as forças extremistas e reacionárias que levaram, através das próprias vias democráticas, um ser despreparado de declarado pensamento ditatorial, que despreza a vida, agride as minorias, destrói os valores democráticos, desrespeita a constituição e as leis, sucateia o meio ambiente.

Mas para tanto, é preciso que as novas gerações conheçam e se inspirem em acontecimentos históricos como os ora relatados. Em um mundo em que o tempo é escasso e algoritmos nos direcionam, faço um apelo para que novas frentes de disseminação do conhecimento sejam estimuladas, incentivando-se a produção e divulgação de mais artigos como este, mais documentários como os de Vargas, Jango e Marighella – disponíveis no Youtube – e mais filmes como o Marighella, dirigido por Wagner Moura, com estreia prevista para abril, bem como vídeos e podcasts com conteúdo visando o engajamento cívico.

Carlos Fayal (divulgação)
Carlos Fayal é cirurgião-dentista, militou com Marighella, foi coordenador político-militar da ALN, signatário da Carta de Lisboa e deputado estadual pelo PDT(83/87).

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