O Estado Nacional e o colonizador derrotado

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Manifestação em pesar a Soleimani (foto Presidência do Irã)
Manifestação em pesar a Soleimani (foto Presidência do Irã)

‘Populista’ ou ‘autoritário’: adjetivos que variam conforme os interesses

 

Certamente nossos leitores já se defrontaram com a qualificação de “Estado Autoritário” ou “Ditatorial” e até “Populista”. Não que eles não sejam possibilidades, mas, talvez, se trate de um Estado Nacional com características próprias, que o colonizador derrotado optou pela alcunha despropositada, onde aquele Estado Colonial desejado por seu poder imperial, seja de algum país ou de alguma fortuna, ou até ideológico, como neoliberal ou marxista, não possa ser adotado.

Vejamos dois exemplos: Arábia Saudita e Irã.

A Lei Básica da Arábia Saudita, sua constituição de 1992, é dividida em nove capítulos, com 83 artigos, e os adendos “Lei do Conselho Shura” e “Lei das Províncias”. Seu Sistema de Governo é objeto do artigo 5º, com cinco itens, que dispõe:

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“a. O sistema de governo na Arábia Saudita será monárquico.

b. O direito da dinastia será confinado aos filhos do Fundador, Rei Abdul Aziz bin Abdul Rahman Al Saud (Ibn Saud), e os filhos dos filhos. O mais elegível entre eles será convidado, pelo processo de “bai’ah”, para governar de acordo com o Livro de Deus e a Sunnah do Profeta. [“bai’ah” é uma prática islâmica de declarar sob juramento a lealdade de alguém a um determinado líder. “Sunnah” é o termo árabe para o modo de vida e precedente legal do profeta Maomé].

c. O rei nomeia o príncipe herdeiro e pode dispensá-lo de suas funções por Ordem Real.

d. O Príncipe Herdeiro deve dedicar tempo integral ao seu cargo e a quaisquer outras funções que podem lhe ser atribuídas pelo rei.

e. O príncipe herdeiro assumirá os poderes do rei na morte deste último enquanto se aguarda o resultado do “bai’ah”.

O artigo 6º desta Constituição define o conceito de liberdade e democracia sauditas: “Os cidadãos devem jurar fidelidade ao Rei com base no Livro de Deus e no Sunnah do Profeta, bem como no princípio de ‘ouvir para obedecer’, em prosperidade e adversidade, em situações agradáveis e desagradáveis”.

Mas, sendo a Arábia Saudita um país submisso à geopolítica sionista-anglo-estadunidense-financeira, não se lê, ouve ou vê na imprensa ocidental, nas produções acadêmicas, nos discursos em organismos internacionais a menção à colônia saudita.

A Constituição da República Islâmica do Irã aprovada em 1979 dispõe em 14 capítulos e 177 artigos sobre a estrutura de organização do poder nacional e traz em seu preâmbulo:

“A Constituição da República Islâmica do Irã estabelece os aspectos culturais, sociais, instituições políticas e econômicas da sociedade iraniana com base na religião islâmica, princípios e normas que representam a aspiração sincera da Ummah islâmica.

“Esta aspiração básica foi explicitada pela própria natureza da grande islâmica Revolução do Irã, bem como o curso da luta do povo muçulmano, desde seu início até a vitória, conforme refletido nos slogans decisivos e contundentes levantados por todos os segmentos das populações. Agora, no limiar desta grande vitória, nossa nação, com todo o seu ser, busca sua realização.”

Ummah, “nação” ou “comunidade”, se refere à comunidade constituída por todos os muçulmanos do mundo, unida pela crença em Alá, no profeta Maomé, nos profetas que o antecederam, nos anjos, na chegada do dia do Juízo Final e na predestinação divina.

É altamente significativo destacar, do preâmbulo da Constituição, a concepção islâmica iraniana da forma de governo:

“Na visão do Islã, o governo não deriva dos interesses de uma classe, nem serve à dominação de um indivíduo ou de um grupo. Ele representa mais a cristalização do ideal político de um povo que tem fé e visão comuns, assumindo uma forma organizada a fim de iniciar o processo de evolução intelectual e ideológica em direção ao objetivo final, ou seja, o movimento em direção a Alá. A nação, no curso de seus desenvolvimentos revolucionários, purificou-se da poeira e impurezas, que se acumularam durante o passado ‘taghut’, e se libertou de influências ideológicas estrangeiras, retornando a pontos de vista intelectuais autênticos e a visão de mundo do Islã. Agora pretende estabelecer uma sociedade ideal e modelo com base nas normas islâmicas. A missão da Constituição é realizar o objetivo ideológico do movimento e criar condições propícias ao desenvolvimento do homem de acordo com os valores nobres e universais do Islã.”

[taghut, “ir além da medida”, também é aplicado ao poder tirânico terreno, nestes últimos tempos o termo se refere a qualquer pessoa ou grupo acusado de ser anti-islâmico ou agente do imperialismo cultural ocidental. O termo foi introduzido no discurso político pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini, durante a Revolução Iraniana de 1979.]

O artigo 57 dispõe que “os poderes do governo na República Islâmica são investidos, na legislatura, funcionando sob a supervisão do ‘wilayat al-’amr’ absoluto e a Liderança da Ummah, de acordo com os artigos da Constituição. Esses poderes são independentes uns dos outros”.

Há um aspecto absolutamente cultural religioso e nacional, difícil de tradução para uma cultura bem distinta como a brasileira, que é a função de jurista: um misto de lei e de religião, onde a qualidade do julgador é fundamental. Apenas os “juristas” têm o direito de governar os que são especialistas; íntegros, piedosos e comprometidos com o Islã. Também estão informados das demandas dos tempos e destemidos e qualificados para a liderança. Estes “juristas” devem ocupar o cargo religioso e ter permissão para fazer julgamentos independentes, sobre os princípios gerais.

O primeiro capítulo da constituição, onde os princípios fundamentais são expressos, afirma que a ejtehad contínua por juristas qualificados é um princípio do governo islâmico. Da mesma forma, o Artigo 5 expressa que um jurista individual dotado de todas as qualidades necessárias, ou um conselho de juristas, tem o direito de governar na república islâmica enquanto o Décimo Segundo Imam permanecer na ocultação.

Também os artigos 57 e 110 mostram o significado exato do poder do jurista dirigente. De acordo com o artigo 57, o jurista tem supervisão sobre três outros ramos. De acordo com o artigo 110, esses poderes de supervisão são os seguintes: O jurista nomeia os juristas para o conselho guardião, que nomeia a maior autoridade judicial do país. Ele detém o comando supremo das forças armadas, exercendo algumas funções; assina o certificado de nomeação do presidente, e, no interesse nacional, ele pode demitir o presidente e, por recomendação das cortes supremas, concede anistia. Esses poderes pertencem ao Líder Supremo como um “Vali-e-faqih”, “guardião da justiça”.

Neste confronto de dois governos islâmicos deve ficar evidente que um aceita a sujeição colonial, outro busca a autonomia. Mas como são tratados?

O saudita como fosse um governo “democrático”, posto ser capitalista, embora seja pré-revolução francesa e industrial. A Arábia Saudita é Estado Absolutista, sem eleições e congresso, onde o monarca tem plenos poderes para tomar decisões e emitir ordens, de acordo com sua conveniência, sem precisar dar satisfação a qualquer órgão do Estado, e muito menos para a sociedade.

Já o iraniano, até apodado de terrorista pois não aceita a submissão aos interesses econômicos e culturais do sistema financeiro sionista-anglo-estadunidense, é uma república moderna, onde a população tem a mesma identidade religiosa, com poderes executivo, legislativo e judiciário, eleições previstas constitucionalmente, e as responsabilidades legais dos atos públicos.

Assim, caros leitores, vamos nos preparando para as incompreensões daqueles que desejam e lucram com o Estado Colonial que nos impede a independência, a inclusão da população brasileira no Estado Nacional, soberania e cidadania.

 

Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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