O futuro da apuração dos haveres

Por Paulo Bardella Caparelli e Camila Cortez Cazetta

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Estátua representando a justiça (foto de Ezequiel Octaviano, Pixabay)
Estátua representando a justiça (foto de Ezequiel Octaviano, Pixabay)

A dissolução parcial de sociedade e a subsequente apuração de haveres são temas que geram debates intermináveis e acalorados. Nos tribunais brasileiros, o valor patrimonial, calculado com base no balanço de determinação, tem sido amplamente aceito como o critério mais adequado para refletir o valor dos haveres em caso de saída.

Balanço de determinação pode ser definido como o valor de mercado dos ativos e passivos, inclusive intangíveis, da sociedade, no momento da dissolução parcial. Não se trata, portanto, do valor contábil dos ativos e passivos da sociedade, mas do valor real mercadológico na data da dissolução parcial.

O referido método busca garantir uma avaliação justa e precisa, refletindo a realidade patrimonial da sociedade no momento da dissolução parcial, conforme se verifica nas mais recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a matéria.

O operador do direito atento, contudo, se recordará que os artigos 1.031 do Código Civil e 606 do Código de Processo Civil dispõem claramente sobre a possibilidade de as partes contratantes estabelecerem método próprio de avaliação da sociedade:

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Artigo 1.031 do CC: Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado. (…)

Artigo 606 do CPC: Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo, também a ser apurado de igual forma. (…)

O STJ, contudo, interpreta tal dispositivo com importantes ressalvas, verificando-se nos julgados recentes uma tendência para que tal ajuste entre as partes somente prevaleça se: (i) existir consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado; (ii) observados os limites legais e os princípios gerais do direito; (iii) não resultar em uma avaliação meramente contábil; e (iv) não representar valor diverso (nem maior nem menor) do que seria devido como partilha no caso de dissolução total da sociedade.

Em outras palavras, o contrato social será prestigiado somente se observadas as diversas condições acima listadas. Condições estas exigidas mesmo sabendo que as regras previstas no contrato social já eram de conhecimento de todos, incluindo o sócio retirante.

No entanto, no âmbito das relações empresariais, os sócios, maiores conhecedores do negócio em que pretendem investir (seja em relação ao tipo de atividade, características do negócio, interesse em prestigiar aqueles que continuam no quadro societário, preservação da empresa e demais razões que justificam o estabelecimento de determinado ajuste), são as pessoas mais competentes para definir o critério de apuração de haveres — desde que dentro dos limites legais.

Com a Lei nº 13.874/2019 (que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica), as relações contratuais privadas, em particular as relações empresariais, passaram a ter mais força em razão da criação da regra de intervenção mínima do Estado e da excepcionalidade da revisão contratual, estatuídas no parágrafo único do art. 421 e no art. 421-A do Código Civil.

E outro regulamento não poderia ser conferido, visto que não faz sentido que determinada regra, definida quando do estabelecimento de uma relação empresarial, seja prejudicada no futuro em razão de interesses que passaram a ser antagônicos (como no caso do sócio retirante e sócios remanescentes).

Para acrescentar às discussões acima (ou para solucionar parte dos impasses que ainda pairam sobre o tema do presente artigo), o Anteprojeto do Novo Código Civil reforça a preponderância daquilo que vier a ser convencionado contratualmente entre os sócios, prevendo, expressamente, que “o critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação.”

Essa nova regulamentação reforçaria, portanto, o princípio da força obrigatória dos contratos, o princípio da autonomia da vontade, o princípio da liberdade contratual, entre outros princípios e normas do direito comercial, prestigiando os ajustes definidos pelos sócios e as regras de apuração de haveres que melhor convenham às características do negócio e de cada relação societária estabelecida.

O Anteprojeto do Código Civil trará importante evolução para a dissolução parcial de sociedade, ao nosso ver, pacificando a intervenção do Judiciário na vontade entre as partes, como uma consequência da evolução histórica da matéria, conforme descrevemos neste breve artigo.

Para facilitar a comparação, veja a alteração do referido artigo 1.031 do Código Civil:

Redação atual do Código CivilRedação Proposta no Anteprojeto
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.






§ 1º O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota.
 
§ 2º A quota liquidada será paga em dinheiro, no prazo de noventa dias, a partir da liquidação, salvo acordo, ou estipulação contratual em contrário.
Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á conforme determinado no contrato social.
 
 
 
§ 1º. Os haveres serão calculados, em regra, de acordo com os critérios fixados no contrato social.
 
§ 2º. Em caso de omissão do contrato social, o juiz observará, como critério de apuração de haveres, o valor apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se, a preço de saída, os bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, inclusive os gerados internamente, além do passivo, a ser apurado de igual forma.
 
§3º. O critério de determinação do valor das quotas para fins de apuração de haveres estabelecidos no contrato social será observado, mesmo que resulte em valor inferior ao apurado em qualquer outro método de avaliação.
 
§ 4 º. A data da resolução da sociedade será:
I – no caso de falecimento do sócio, a do óbito;
II – no caso de divórcio ou de dissolução de união estável, a data da separação de fato;
III – na retirada imotivada, o sexagésimo dia seguinte ao do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio retirante;
IV – no caso de recesso, o dia do recebimento, pela sociedade, da notificação do sócio dissidente;
V – na retirada por justa causa de sociedade por tempo determinado e na exclusão judicial de sócio, a do trânsito em julgado da decisão que dissolver a sociedade; e
VI – na exclusão extrajudicial, a data da reunião de sócios que a tiver deliberado.
 
§ 5º. O capital social sofrerá a correspondente redução, salvo se os demais sócios suprirem o valor da quota.
 
§ 6º A quota liquidada será paga em conformidade com o disposto no contrato social e, sendo ele omisso, o pagamento será feito em dinheiro, no prazo de noventa dias contados a partir da liquidação.

Paulo Bardella Caparelli e Camila Cortez Cazetta são advogados em São Paulo e sócios do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados


Nota:

[1] REsp nº 1.483.333/DF, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 21/05/2019, DJe de 06/06/2019:

EMENTA: “(…) 1. A forma da apuração de haveres, em caso da exclusão prevista no art. 1.030 do Código Civil, está disposta no art. 1.031 do mesmo diploma legal, caso não haja uma previsão específica no contrato social. Nesta hipótese, a apuração de haveres deve ocorrer na forma de perícia que avalie a situação patrimonial da sociedade no momento em que se efetuou, no plano fático, a exclusão do sócio, mediante um balanço especialmente levantado, que considere a situação patrimonial da empresa e não meramente contábil, justamente o que foi efetuado pelas instâncias ordinárias. (…)”

AgInt nos EDcl no AREsp 639.591/RJ, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 29/06/2020, DJe de 03/08/2020:

EMENTA: “(…) 4. A apuração de haveres se processa da forma prevista no contrato social, uma vez que, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade, desde que observados os limites legais e os princípios gerais do direito. Precedentes. (…)”

AgInt no AREsp 1.663.721/MS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 28/09/2020, DJe de 07/10/2020:

EMENTA: “(…) 3. O entendimento firmado pelo Colegiado local está em harmonia com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que, na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado, sendo que, em caso de discordância, deverá ser adotado o balanço de determinação, por melhor refletir o valor patrimonial da empresa. (…)”

AgInt no AREsp nº 1.736.426/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 25/10/2021, DJe de 28/10/2021:

EMENTA: “(…) 2. A jurisprudência desta Corte Superior tem orientação no sentido de ‘a apuração de haveres – levantamento dos valores referentes à participação do sócio que se retira ou que é excluído da sociedade se processa da forma prevista no contrato social, uma vez que, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade, desde que observados os limites legais e os princípios gerais do direito’ (AgInt no AREsp 1534975/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 19/04/2021, DJe 26/04/2021); e ‘na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa (REsp 1335619/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 27/03/2015)’ (AgInt no AREsp 1626253/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 26/08/2020).

2.1. Outrossim, esta Casa de Justiça considera que ‘a apuração de haveres de sócios dissidentes deve observar, o quanto possível, o patrimônio societário como um todo, e não apenas sua dimensão contábil ou fiscal (REsp 1483333/DF, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/05/2019, DJe 06/06/2019), bem como, entende que, na hipótese de não haver ‘uma previsão específica no contrato social (…) a apuração de haveres deve ocorrer na forma de perícia que avalie a situação patrimonial da sociedade no momento em que se efetuou, no plano fático, a exclusão do sócio, mediante um balanço especialmente levantado, que considere a situação patrimonial da empresa e não meramente contábil, justamente o que foi efetuado pelas instâncias ordinárias’ (AgInt no AREsp 492.491/RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 23/08/2018, DJe 11/09/2018). (…)”

REsp nº 1.904.252 – RS (2020/0291023-0), Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 22/08/2023, DJe de 01/09/2023:

DECISÃO: “(…) Dessa forma, apesar de o contrato social poder dispor de forma diversa à previsão legal, a jurisprudência tem se firmado no sentido de não se admitir um mero levantamento contábil para apuração de haveres, devendo-se proceder a um balanço real, físico e econômico, mas não necessariamente que projete os lucros futuros da sociedade. (…) Assim, omisso o contrato social relativamente à quantificação do reembolso (se abarca o lucro futuro da sociedade ou não), observa-se a regra geral de apuração de haveres segundo a qual o sócio não pode, na dissolução parcial da sociedade, receber valor diverso (nem maior nem menor) do que receberia, como partilha, na dissolução total, verificada tão somente naquele momento. (…)”

REsp nº 2020490 – SP (2022/0260028-0), Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 21/05/2024, DJe de 24/05/2024:

EMENTA: “(…) 3. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, a apuração de haveres se processa da forma prevista no contrato social porque, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade, desde que observados os limites legais e os princípios gerais do direito.

4. Inexistindo previsão contratual específica ou havendo, como no caso, a mera reprodução do comando legal na cláusula do contrato, deve ser adotado o balanço de determinação como critério da apuração de haveres por ser aquele que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. (…)”

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