O mundo à beira de uma guerra nuclear

Bem-vindos à nova corrida armamentista - só que desta vez o mundo tem armas nucleares. Por Fabio Reis Vianna

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Protesto contra financiamento militar dos EUA à Ucrânia (foto de Liu Jie, Xinhua)
Protesto contra financiamento militar dos EUA à Ucrânia (foto de Liu Jie, Xinhua)

“Estamos nos aproximando de um momento inevitável na Europa, não devemos ter medo. A guerra voltou às nossas terras”.

Com estas palavras o presidente francês, Emmanuel Macron, reafirma, mesmo que num intuito meramente retórico e para um público interno, o novo paradigma que se avizinha para os próximos anos no contexto geopolítico mundial, e particularmente, europeu.

Em tom similar, o chanceler alemão, Olaf Scholz, disse em recente inauguração de uma fábrica de armas no norte da Alemanha – local onde se concentra o maior complexo industrial de defesa do país – que “não vivemos tempos de paz”, defendendo a produção em “grande escala” de armamento na Europa.

Explosão Nord Stream (foto do Ministério da Defesa da Dinamarca)
Explosão Nord Stream (foto do Ministério da Defesa da Dinamarca)

Vamos ser claros: o veto americano ao Nord Stream II, e a consequente implosão da histórica relação estratégica com a Rússia, tornou insustentável o complexo industrial civil que mantinha a hegemonia econômica da Alemanha sobre a Europa.

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Boa desculpa para a Alemanha voltar-se ao modus operandi “bismarckiano”, redirecionando sua indústria para o desenvolvimento de tecnologia bélica. Ou seja, a velha Alemanha está apenas voltando a fazer o que historicamente sempre fez. Como nenhum país europeu confia numa Alemanha armada até os dentes, bem-vindos à nova corrida armamentista europeia!

Neste momento, o gasto militar global já atinge níveis comparáveis aos da Segunda Guerra Mundial, resultado do aumento de pressão competitiva global, que por sua vez tem relação direta com a explosão expansiva do sistema interestatal a partir da entrada da China, da Índia e outros atores emergentes, bem como, do ressurgimento militar da Rússia. Em suma, aparentemente quanto mais multipolar for o sistema, mais instável será.

A competição interestatal, mesmo que não assumida explicitamente pelos atores envolvidos, é que está a dar tônica de algo inerente ao próprio sistema, e isto se torna mais claro em momentos de crise hegemônica.

Esqueçamos a ladainha de países aliados ou inimigos: as grandes e médias potências se aproveitam da fragilidade de países menores para manipular seus jogos de guerra. Nesta perspectiva, o jogo das guerras é o alimento do sistema, e isto se torna mais sério em um momento de acirrada disputa sistêmica, tal qual o momento atual.

Só para citar um exemplo, observemos que, neste momento, Rússia, Irã ou Índia não necessariamente estão do mesmo lado nas disputas territoriais do Cáucaso, mais especificamente no que diz respeito à situação da Armênia. Por mais que se fale em mundo multipolar, ou Sul Global, a realidade da política internacional é bem mais complexa e cheia de nuances.

Neste sentido, as contradições entre membros do chamado Sul Global se aplicam muito bem à lógica de formação de algumas alianças supostamente improváveis, como no caso da disputa que ocorre entre Armênia e Azerbaijão.

Neste panorama geopolítico, podemos constatar que membros do Brics como Rússia, Índia, Irã e China não necessariamente estão do mesmo lado. Enquanto o Azerbaijão é sustentado por Rússia, Israel e Turquia, a Armênia é apoiada por França, Irã – inimigo de Israel e Azerbaijão – e Índia.

Em meio a esta dinâmica, o Paquistão entra na história como saída para o mar conveniente a China, que em contraposição obriga a Índia – adversária estratégica de China e Paquistão – a estreitar laços com o Irã por uma saída ao mar análoga.

Em suma, o Sul Global e o mundo multipolar não são tão harmônicos quanto algumas análises que mais se assemelham a propaganda tentam passar.

Prédio destruído em Mariupol, Ucrânia (foto de Victor, Xinhua)
Prédio destruído em Mariupol, Ucrânia (foto de Victor, Xinhua)

No caso específico da Europa, e a despeito do que disse recentemente o presidente Macron sobre envio de tropas à Ucrânia, sendo ou não mera retórica para o público interno, o fato concreto é que a dinâmica de um estado de guerra crônico está levando o Velho Continente a adaptar a sua lógica estrutural à economia de guerra. Obviamente estas coisas não ocorrem da noite para o dia, mas esta é a tendência no longo prazo.

Em uma série de palcos de guerra, como já mencionado anteriormente, o teatro das alianças explícitas e implícitas se faz de acordo com o interesse nacional de cada ator. Rússia e Israel, por exemplo, que publicamente mantêm um distanciamento cordial, nos bastidores forjam alianças ocasionais em nome de interesses em comum. Ou alguém duvida que a ânsia israelense em escalar a guerra no Oriente Médio não convém aos interesses imediatos russos em expor o Ocidente a mais uma frente?

Enquanto isso, no dia 5 de março, a União Europeia propôs um ambicioso e inédito plano que na prática pretende transformar toda a cadeia produtiva-industrial do Velho Continente em um imenso complexo industrial militar.

Segundo matéria do jornal espanhol El País, em uma mensagem forte, o alto representante para a Política Externa e de Segurança da UE, Josep Borrell, apresentou a estratégia europeia para fortalecer a indústria de defesa contra a ameaça russa: “Quando apresentamos a bússola estratégica da UE [algumas semanas após a invasão russa], eu disse que a Europa estava em perigo, agora está ainda mais.”

Neste contexto, a Comissão Europeia apresentou a Estratégia Europeia de Defesa, tendo a Ucrânia como um dos principais focos, e onde a Europa pretende promover compras conjuntas de material bélico fabricado na própria Europa. A ideia é alcançar a cifra de € 143 bilhões e assim superar os gastos russos, aproximando-se do que os Estados Unidos investem em sua indústria bélica.

Em meio a toda esta escalada militar global, o presidente russo, Vladimir Putin, já emitiu um alerta nada simpático sobre os riscos reais de uma guerra nuclear em caso de agravamento do conflito na Ucrânia. O recado foi claro: “Trágicas consequências” virão caso algum país ocidental envie soldados ao front de batalha ucraniano. Nas palavras de Putin: “Não haverá vencedores. E vocês serão arrastados para este conflito contra a vontade de vocês”; e completou: “Vocês nem terão tempo de piscar quando executarem o artigo 5º.”

Mesmo preferindo acreditar que as intenções da Rússia não passem do território ucraniano, existem precedentes históricos que legitimam a preocupação europeia a respeito de um avanço militar russo para além da Ucrânia. Além do ressentimento cultivado pela perda de uma porção imensa de seu território após a humilhante derrota na Guerra Fria (algo que inegavelmente remeteria ao ressentimento alemão após a humilhante derrota na Primeira Guerra Mundial), a Rússia, assim como todo o espectro interestatal europeu, forjou o seu expansionismo histórico através do jogo das guerras.

Parafraseando Norbert Elias, no jogo das guerras “quem não sobe cai”, ou seja, quem não mantém a sina expansionista será derrubado por seus competidores-adversários.

Neste cenário, a escalada de uma guerra aparentemente hegemônica é tão clara que as pessoas se recusam a aceitar o óbvio, tamanho é o absurdo. Não custa lembrar que a Segunda Guerra Mundial também foi resultado de uma escalada gradual ao longo de décadas.

Levando em consideração que a Segunda Guerra foi uma continuidade da Primeira, estaríamos falando de um processo que se inicia na década de 1870, quando a Prússia de Bismarck (hoje Alemanha) fomenta uma insana corrida armamentista perante seus adversários europeus, em particular França e Inglaterra. Ao mesmo tempo, radicais mudanças tecnológicas e nas relações sociais-laborais formavam o caldo de cultura deletério dos nacionalismos chauvinistas que, ao lado do aumento da competição interestatal, levaram o mundo a uma situação de não retorno.

A ideia do congelamento do conflito, já aventado muitas vezes como uma saída realista, parece a cada dia mais distante na medida em que, reitero, há um impasse insolúvel que é a não hipótese de aceitação da derrota por parte dos euro-americanos.

Levando em consideração que a incorporação da Suécia à Otan foi uma linha vermelha aos olhos russos, a histórica e tóxica relação entre Rússia e Europa (e é preciso lembrar que a Rússia é um país europeu e segue a mesma lógica belicista) muito remete ao pensamento teórico de Charles Tilly e sua visão sobre as unidades territoriais expansionistas, que sempre atuaram pela lógica da provocação da guerra, o que, paradoxalmente, seria uma forma de se proteger de um eventual invasor.

Um círculo vicioso que parece funcionar até hoje neste sistema interestatal inventado pelo europeus e onde a busca por uma zona segura, ou tampão, levaria sempre a unidade territorial expansionista a tentar adquirir por meio da coerção “uma nova zona tampão em volta da antiga. Quando as potências adjacentes estavam perseguindo a mesma lógica, o resultado era a guerra.” (TILLY, 1996, p.127).

Ocorre que, diferentemente das crises hegemônicas anteriores, ao longo de 500 anos de sistema interestatal, o mundo talvez nunca tenha estado tão próximo de um confronto bélico nuclear.

Fabio Reis Vianna é mestre em Relações Internacionais e Estudos Europeus pela Universidade de Évora, Portugal, professor e analista político internacional.

Referências:

ELIAS, Norbert (1990) – O processo civilizacional, Vol. 2. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

TILLY, Charles (1996) – Coercion, capital, and european states, AD 990-1990. Massachussets: Blackwell.

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