Aproximadamente há um semestre surgiu a notícia de um vírus letal que, se expandindo num país, previa abranger todo planeta. O que se poderia pensar como ação mais imediata das autoridades e lideranças nacionais? Buscar conter geograficamente a epidemia e com outras lideranças regionais estabelecerem harmonicamente as condições de defesa preventiva de suas populações.
E, na medida em que o vírus mostrasse grande facilidade de difusão e alta mortalidade, as lideranças nacionais e regionais promoveriam encontros para traçar políticas continentais e mundial. Ou seja, desde que identificada a epidemia e sua gravidade, a ação passaria ao universo da política, pois se tratava da saúde e da vida das populações.
Por que não foi o que aconteceu? Para entendermos a tragédia humana deste momento, precisamos retroceder a meados do século passado.
Com o fim da II Grande Guerra, ficou marcante o êxito da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Este êxito não foi apenas militar, expulsando a bem treinada e bem armada força alemã, tecnologicamente melhor preparada do que qualquer outra combatente. Surpreendeu a mobilização de todo um povo, capaz de se sacrificar para defender a Pátria, quando muitas ainda eram suas carências. Havia alguma coisa diferente do ganho material que, desde o início da Idade Moderna, era difundido no Ocidente como o motor impulsionador da vida e da prosperidade.
Isto levou à mudança de políticas na Europa e à busca pela liberdade e soberania face à colonização em muitos países da Ásia e da África. E, o que foi mais notável, o mundo conheceu um período de desenvolvimento econômico, social e político que se designou os “Trinta Gloriosos”. Este período vai do fim da II Grande Guerra até os choques do petróleo.
A grande maioria das análises deste período de indiscutível desenvolvimento coloca destaque no fator econômico e/ou no fator ideológico. Preferimos observar esta época sob a ótica do poder e sua expressão política, tanto mais porque a elevação substantiva do padrão de vida nas sociedades industriais ou em industrialização não se deveu à sorte, mas a decisões políticas, em nível de Estado, que sustentaram o planejamento econômico e social como expressão do poder nacional desses países.
Mas há um fator inarredável: a existência de amplas áreas sob o domínio do socialismo, majoritariamente marxista. Este mundo socialista obrigava o capitalismo a dar atenção aos trabalhadores e à população mais carente. Surgiram modalidades de capitalismo mitigado com questões sociais, principalmente oriundos da Igreja Católica, que, desde a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, em 15 de maio de 1891, levantara a questão das condições das classes trabalhadoras, com ideias distributivistas.
Contudo, o êxito do distributivismo esteve associado à existência e ao desenvolvimento de uma sólida base industrial nacional associada aos seus respectivos Estados, gerando empregos e divisas em proporção crescente.
Em torno dos grupos sociais típicos da indústria, como industriais e trabalhadores, formaram-se partidos políticos de base capitalista, imbuídos dessas ideias, sendo os mais bem sucedidos os Democratas Cristãos, os Sociais Democratas e os Trabalhistas.
Em 15 de maio de 1931, o Papa Pio XI divulga nova encíclica, Quadragesimo Anno, que reafirma as preocupações sociais e aperfeiçoa soluções anteriormente apontadas. Ainda nos “Trinta Gloriosos”, o Vaticano faz conhecer sua preocupação social com a Mater et Magistra (1961), do Papa João XXIII, e a Populorum Progressio (1967), do Papa Paulo VI. A legitimação moral e religiosa da distribuição encontrava amparo material na indústria, eixo dos processos econômicos.
Nos anos 1970, tem início uma série de “crises”, construídas pelo capitalismo financeiro, buscando redirecionar a sociedade para outro rumo, desvinculado da produção e antagônico às questões sociais e à discussão política.
Desde os anos 1950, novas e diversas questões permeavam a sociedade, que a presença cada vez mais dominante da indústria cultural estadunidense buscava homogeneizar. Com distância de mais de seis décadas fica fácil identificar as semelhanças e as diferenças no tratamento dos conflitos de classe, de gênero, de raça, de sexo, existenciais e religiosos na cinematografia dos Estados Unidos da América (EUA), da França, da Itália e do Japão.
Mas Hollywood e toda a grande mídia – que a população enriquecida pelas ações dos Estados sociais podia ter acesso: televisão, discos, revistas, sessões de cinema – trabalhavam para impor uma ideologia e desejos padronizados. O individualismo em ascensão minava os vínculos de solidariedade que, ao longo dos 100 anos anteriores, articularam-se no mundo industrial. Os interesses privados, e não mais o trabalho coletivo, tornou-se o critério de avaliação e julgamento das políticas e do consumo. Preparava-se, assim, o caminho psicossocial para o neoliberalismo, constituído dos pressupostos egoístas e antissociais subjacentes à ideia de mercado.
Hoje, com a predominância das comunicações digitais, virtuais, bloqueiam-se e se distorcem, quer nas transmissões quer nos conteúdos, as mensagens que já encontram as pessoas vitimadas pela pedagogia colonial, com ideias arraigadas, dogmatizadas pela intensa propaganda neoliberal.
Neste aspecto da ação psicossocial, que veremos articulada com a econômica, a política e a militar, devemos destacar, além da comunicação social, a religiosa.
Como mostramos, a Igreja Católica assumia uma postura de preocupação e de busca de solução para as diferenças sociais e econômicas. Surge naquela época a Teologia da Libertação, que será atacada pelos capitais industriais e financistas como infiltração marxista no catolicismo. Mas não ficam apenas no discurso, criam-se novas seitas religiosas, os neopentecostais, dirigidas a populações de baixa renda e percepção, conquistadas pela magia das sessões e pela Teologia da Prosperidade.
Estas igrejas, com as facilidades tributárias e das legislações financeiras para templos religiosos, passam a colaborar também com a lavagem de dinheiro. Lembrem-se que as desregulações financeiras dos anos 1980 trouxeram os capitais ilícitos para o sistema financeiro internacional (a banca).
O capitalismo financeiro conhecera tempos dourados na expansão colonial inglesa e fora desalojado do poder capitalista com as duas grandes guerras. Estas entronizaram o capitalismo industrial. E a industrialização, que tem no trabalho coletivo o seu dínamo, promoveu alguma distribuição de renda e elevação do padrão de vida, propiciando maior produção e distribuição de riquezas bem como o aumento das oportunidades de emprego e realização pessoal para um número crescente de cidadãos.
Mas as finanças buscavam as brechas no industrialismo que lhes possibilitassem a retomada do poder. A primeira oportunidade, ainda no pré-guerra, surgiu com a questão ambiental, a poluição das fábricas que vai evoluindo até as ridículas, mas financeiramente bem estruturadas, campanhas do bilionário Georges Soros e da midiática ativista sueca Greta Thunberg.
Não bastava a crítica, havia necessidade de se dispor de uma filosofia acobertando toda a construção desse poder rejuvenescido. O neoliberalismo, uma releitura bastante parcial e incorreta dos filósofos setecentistas, pode ter sua certidão de batismo em 10 de abril de 1947, com a criação em Chardonne, na Suíça, da Sociedade Mont Pèlerin.
São seus fundadores: o politicólogo e jurista francês Bertrand de Jouvenel, o economista e fundador da Escola de Chicago estadunidense Frank Knight, o economista austríaco Friedrich Hayek, o economista estadunidense George Stigler, o professor austríaco-britânico Karl Popper, o economista austríaco Ludwig von Mises e o estadunidense Milton Friedman. Também pertenceu posteriormente à sociedade o diplomata brasileiro José Osvaldo de Meira Penna.
Para articular ações e dar operacionalidade aos seus projetos, os financistas neoliberais e os capitalistas financeiros constituíram, em maio de 1954, o Clube ou Grupo Bilderberg; em abril de 1968, o Clube de Roma; em janeiro de 1971, o Fórum Econômico Mundial; e, em julho de 1973, a Comissão Trilateral (Washington, Paris e Tóquio).
Felipe Quintas
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.
Gustavo Galvão
Doutor em Economia.
Pedro Augusto Pinho
Administrador aposentado.