Se considerarmos as “crises” do petróleo dos anos 1970 como o emergir internacional do neoliberalismo financeiro, este ganhou a disputa pelo poder contra as demais forças atuantes – industrialista e socialista – em duas décadas, fazendo-se viajante sem passaporte pelas instituições financeiras em todo planeta e impondo seu decálogo (Consenso de Washington) acima de todas Constituições nacionais.
No entanto, esta vitória nem passados outros vinte anos se vê diante de fortes inimigos que transformam em batalhas militares o que poderiam ser apenas manipulações financeiras.
O mundo pré-neoliberal financeiro foi o mundo dos Estados Nacionais por 500 anos, ou seja, pós-renascentista. A exportação de conceitos e avaliações financeiras para os Estados Nacionais – o domínio do “mercado” – fez retroceder não só a economia como as referências das sociedades. Afirma-se sem receio que houve o retrocesso civilizacional com o domínio da ideologia neoliberal financeira. As guerras são fatos comprovadores.
Os “gestores de ativos” são habitualmente apresentados pela quantidade de recursos aplicados. Ativos sob gestão (AUM), também denominados “fundos sob gestão”, referem-se ao valor total, a preço de mercado, de todos os ativos financeiros que a instituição financeira gerencia e investe — como fundos mútuos, empresas de capital de risco ou instituições depositárias. Mas a quantidade de gestores de ativos estima-se superior a 500 empresas.
O que estamos vendo neste século 21 é a nova Idade Média, onde os feudos não mais são territoriais, são os receptores e aplicadores de recursos financeiros, “gestores de ativos”. O ex-ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, criou o termo “tecnofeudalismo” que dá título a seu livro “Tecnofeudalism what killed capitalism” (2023), para discorrer sobre o que considera nova Era da sociedade humana.
A Idade Média é um fenômeno europeu, poder-se-ia entendê-la culturalmente como Ocidental. Na Ásia, a China já chega à Era Cristã como Estado centralizado, o período dos Reinos Combatentes ou Guerreiros ficou para o Antes de Cristo (a.C.). O historiador Jacques Gernet (“Le Monde Chinois”, 1972) estabelece que as características que constituem este “novo estado” já vigoravam em IV a.C.
E será exatamente a China quem se oporá ao sistema unipolar das finanças com o modelo da multipolaridade. Esta guerra, nem sempre em surdina, com novas e antigas instituições combatentes, que vai caracterizar o século 21.
Façamos rápida revisão de seu desenvolvimento.
Do prisma financeiro, os excessos cometidos desde 1990 vão gerar a dívida maior do que o patrimônio dos gestores de ativos, que levam à crise de 2008/2010, socorridos pelos tão atacados Estados Nacionais.
Tentou-se, como habitual no Ocidente, a guerra criando nos islâmicos (árabes e/ou muçulmanos) o inimigo, e promovendo o embuste do 11 de setembro. A propósito, o jornalista Thierry Meyssan escreveu “11 septembre 2001. L’effroyable imposture”, 2002 (traduzido por Khristine Renata da Cruz Guimarães para Usina do Livro, SP, 2003, com título “11 de setembro de 2001, uma terrível farsa”), o libelo bem fundamentado do que ocorreu efetivamente nos Estados Unidos da América (EUA).
Mas tal qual na Idade Média, tinham-se constituídos feudos para os “gestores de ativos” administrarem conforme os segmentos de interesses, num conjunto econômico, as rendas. Porém, não se observou apenas um retrocesso na manifestação política do poder. Ele se expandiu pelo conhecimento; nunca a ignorância ganhou tão forte aliado como no neoliberalismo financeiro. Comparem-se os argumentos das disputas entre os “doutores da Igreja Católica” no período medieval (Agostinho, Tomás de Aquino, Papa Gregório I, Ambrósio e mulheres, como Teresa D’Ávila e Catarina de Sena), com os “bispos” Edir Macedo, Nilson Fanini, Valdemiro Santiago, Romildo Ribeiro Soares, Silas Malafaia e outros divulgadores da “Teologia da Prosperidade”.
Como na Idade Média tem-se o feudo, sendo o senhor feudal a BlackRock, J.P. Morgan, Vanguard, Hargreaves Lansdown, Fidelity, State Street, Millenium, Amundi, Lone Pine, em grupo ou isoladamente, e a fé, quase restrita àquela divulgada pelos “teólogos” da prosperidade.
Duas tecnologias imperam no século 21: da informação e da energia. No campo da informação tem-se a decorrente da “matemática da comunicação” de Claude Shannon (1916-2001) e Warren Weaver (1894-1978) e a dos “conteúdos da mensagem”, entre outros: Abraham Moles (1920-1992), Edmund Carpenter (1922-2011), Gilles-Gaston Granger (1920-2016), Helmar G. Frank (1933-2013), Lucien Goldmann (1913-1970), Marshall McLuhan (1911-1980), Umberto Eco (1932-2016). Transitando entre a “matemática” e os “conteúdos” tem-se o criador da cibernética, Norbert Wiener (1894-1964), Kurt Gödel (1906-1978) e John Robinson Pierce (1910-2002). Vê-se a extraordinária importância do que se designará simplesmente por “informação”, que produz “drones” para infindável linha de aplicações, para guerras, colocar homens no espaço e em planetas e satélites, e “fazer a cabeça” de cientistas, escritores, jornalistas e pensadores, principalmente, mas igualmente, do povo em geral. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis (1961) tem trazido importantes contribuições para o aprofundamento da comunicação que se exemplifica no seu livro “O Verdadeiro Criador de Tudo; como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos” (Editora Planeta, SP, 2020).
Outro vetor é a energia, não foram acaso, mas parte do projeto financeiro, as “crises” do petróleo de 1973, 1979 e 1980. O domínio da energia é o domínio da sociedade desde a apropriação do fogo, na Era Paleolítica. Os primeiros registros de cozimento de alimentos com fogo são atribuídos ao gênero “Homo”, ainda residente no continente africano, há cerca de 2,6 milhões de anos. A civilização atual é escrava da energia, como estão sentindo os países da Europa, dominados pelos EUA, sem dispor do gás importado da Rússia.
A ideologia neoliberal financeira, para consolidar seu poder, criou a farsa das questões ambientais e a “transição energética” para energias do passado, coerente com a regressão civilizacional à Idade Média.
A multipolaridade
Trataremos do Brasil, que é nossa maior preocupação, e da busca por respostas às recentes agressões neoliberais financeiras.
O “Projeto Idade Média” (PIM) é global, busca a uniformidade de gestão e máximo rendimento por todas as áreas do Planeta. O Modelo dispensa países, e faz toda pressão para que ele exista simplesmente como arrecadador, onde o custo for menor. Exemplificando com o Brasil, o PIM facilmente desmembraria o Brasil em sete ou oito grandes feudos, com fins específicos, entregando-os a grupo de “gestores de ativos”.
Nem sempre o feudo é territorial, exemplificando, o Brasil poderia, pelos seus recursos em terra e mar, ter o feudo “energias”. Esta configuração facilita a receita e dificulta a compreensão de povos ainda habituados a tratar com Estados Nacionais. É só acompanhar, na imprensa e redes de convivência, as referências críticas ou apoiadoras aos EUA, ou à União Europeia (UE), ou ao “mundo árabe”, esta constituindo expressão mais próxima a dos “feudos”.
A República Popular da China (China) teve histórico diferente da Europa, dos EUA e do Brasil. Mas se pode estabelecer um paralelo com o Brasil, facilitando a compreensão.
O início ocorreu com a Revolução Cultural (1966), promovida por Mao Tse Tung, cujo similar brasileiro foi o Golpe de 1967, aplicado no Golpe de 1964, pelos generais tenentistas de 1930.
Mao pretendeu reestruturar a administração e o poder na China, atribuindo maior importância ao Partido Comunista Chinês (PCCh). Os militares de 1967 procuraram renacionalizar o Brasil, após o entreguismo do Marechal Castelo Branco. Este período durou até 1976, na China, com a morte de Mao, e até 1979, no Brasil, com a sucessão do presidente Ernesto Geisel.
A segunda etapa foi o governo de Deng Xiao Ping (1978-1992) que no Brasil correspondeu à “redemocratização”, do governo do General Figueiredo até a eleição para presidente, em 1989, e a posse de Fernando Collor (1990).
Seguiu-se um período de acomodação, na China, com Zhao Zi Yang (1980-1989) e, principalmente, com Jiang Zi Min (1989-2003). Deve-se compreender que Xiao Ping incorporou o capitalismo no país marxista. No Brasil deu-se o fortalecimento do neoliberalismo e as revisões na Constituição de 1988, colocando-a mais no padrão do Consenso de Washington. Foram os governos de Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, encerrando em dezembro de 2002.
Temos na China permanente e aprofundado retorno às mais entranhadas percepções e entrosamento social desde Hu Jin Tao a Xi Jin Ping, isto é, desde 2002 até hoje. No Brasil tem ocorrido novo patamar de lutas pelo poder, com golpes, contragolpes e mobilizações populares desde 2003, com primeiro governo Lula, até seu retorno à presidência em 2022.
O que coloca compatível a comparação Brasil-China? A questão da multipolaridade.
Nos quase 30 anos de disputa entre o marxismo maoísta e o capitalismo xiaopinguiano surge na década de 1990 a compatibilização, a harmonização de interesses em prol da China, para que não se repetisse o “século de humilhações”. E vem da milenar cultura, com o confucionismo, e com a participação mais ampla e consistente de toda sociedade. Mas se isso era questão interna, a China precisava assegurar sua presença na sociedade mundial.
A oportunidade foi identificada na criação dos BRIC (2006), depois BRICS, com ingresso da África do Sul, em 2011. E a China, naquele olhar cultural do passado para projetar o futuro, cria a Iniciativa do Cinturão e Rota (2013), a Nova “Rota da Seda” (130 a.C. a 1453 d.C.). Hoje a China está entre as maiores potências mundiais a caminho de se tornar a maior.
Lamentavelmente o Brasil não aproveitou o tenentismo de 1967 a 1979. Deixou-se convencer pela falácia neoliberal financeira da “redemocratização”. Ao invés de eleger verdadeiro sucessor de Vargas, capaz de corrigir os erros do autoritarismo militar, de quem fora vítima, e, como fez a China, buscar no melhor do seu passado, o pensamento nitidamente nacional trabalhista, da soberania e da cidadania, segregou Leonel Brizola (1922-2004). O Brasil efetivamente errou isolando Brizola por todos os lados, da esquerda dos comunistas aos herdeiros fascistas da ditadura militar. E, ainda perpetrou a farsa do apagão, na contagem de votos em Minas Gerais, para tirá-lo da disputa presidencial de 1989.
Naquele momento, as forças políticas do Brasil, da esquerda à direita, optaram pela neocolonização financeira, que domina até hoje o País.
A China do século 21 aproveita a criação do mundo multipolar; cresce mais do que qualquer país, com população de quase um bilhão e meio de pessoas. O Brasil, que esteve na criação dos BRIC, hesita em aprofundar a indispensável multipolaridade para ter soberania política. Com pouco mais de 220 milhões, tem a perspectiva, de acordo com o Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de redução populacional entre 2030 e 2040. E é bem acolhida pelos governantes, pois não há projetos de desenvolvimento econômico, social, cultural, civilizacional para o País.
Perdido na luta insana entre os corruptos das emendas e orçamentos “secretos”, dos revanchistas militares golpistas, do povo sem efetiva educação, regredindo ao feudalismo dos capitais apátridas, e sem qualquer força nacionalista e trabalhista estruturada para lutar pelo Brasil.
Não é com desesperança que se conclui esta série “O NACIONAL TRABALHISMO”. Ao contrário. A sigla histórica do pensamento varguista, o PTB, pode ficar enfim em mãos nacionais trabalhistas.
Ela foi tirada por manobra do “General de Pijama” Golbery do Couto e Silva (1911-1987), entre tantas outras, para impedir que Leonel Brizola chegasse à presidência do Brasil. Golbery presidiu até 1973 a empresa estadunidense Dow Chemical, obviamente colocando os interesses de seus patrões acima do nacional brasileiro. E note-se que, desde 1967 até 1979, o Brasil esteve nas mãos dos tenentistas de 1930. Também esteve a favor dos EUA na formulação doutrinária da Escola Superior de Guerra (ESG), quando já havia copiosa produção de pensamento nacional, inclusive com discursos de Getúlio Vargas.
Golbery foi contra posse de Juscelino Kubitschek, apoiando os golpistas, contra a posse de Jango, vice-presidente eleito, quando da renúncia de Jânio Quadros e apoiou o Golpe de 1964. A menção “General de Pijama”, que usamos para lhe dar profissão, era usual para os coronéis que pediam passagem para reserva e ganhavam com isso dois postos, ou seja, chegavam a general não para comandar mas para usar pijama.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.