O necessário debate sobre a equidade de gênero na indústria cultural

Equidade de gênero na indústria cultural: desafios, dados e soluções para a desigualdade no setor audiovisual. Por Carol Bassin

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Carolina Bassin

Com a saída da rede X do Brasil e todas as circunstâncias que permearam esse processo, muito se falou da tão multifacetada “liberdade de expressão”. Esse é um direito cujo exercício tem se tornado cada vez mais limítrofe em relação a uma série de outros direitos, sobretudo através das redes sociais, que, ao potencializarem o alcance de uma simples “opinião”, tornam-se palco diário para incontáveis polêmicas. Bem aproveitadas, podem ser um excelente ponto de partida para reflexões necessárias e debates urgentes.

E aqui estamos nós, diante de mais uma dessas oportunidades. Sem querer focar na conduta em si de um único indivíduo, mas no pensamento estrutural sintomático que ali foi cristalizado, a declaração “Deus me livre de mulher CEO”, proferida recentemente por um empresário brasileiro em suas redes sociais, ainda ressoa, pois manifesta um problema paradoxalmente antigo e recorrente.

Ainda que se trate de uma fala solta, em um contexto específico, e que já tenha sido publicamente retratada pelo seu autor, essa mensagem chega às mentes de centenas de mulheres brasileiras que hoje lideram e sustentam negócios nos mais variados setores da economia deste país, como mais um peso colocado no calcanhar de quem só quer caminhar em igualdade de condições. A certeza de que o valor da competência feminina é mensurado em uma balança antiga e já quebrada pode, e vai, colocar em risco toda a engrenagem.

E aqui me reporto imediatamente à minha área de atuação profissional, que identifico como um potencial vetor dessa transformação: a indústria cultural. Um mercado que combina criatividade com arte e que carrega em si uma potente ferramenta de transformação de uma nova realidade poderia ser um solo fértil para germinar essa mudança.

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Fazendo um recorte, para ilustrar, do audiovisual brasileiro. De acordo com um estudo realizado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), em parceria com o Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2020, as profissionais mulheres representavam cerca de 42,7% da força de trabalho do setor audiovisual e, ainda assim, eram minoria em cargos de liderança.

Apenas 25% dos filmes lançados no Brasil entre 2017 e 2019 tinham mulheres como diretoras; 19% das produções tinham roteiristas mulheres e apenas 35% tinham mulheres na produção executiva. Em 2019, apenas 19% dos filmes brasileiros lançados comercialmente foram dirigidos por mulheres, e nenhuma delas era negra. Isso nos leva a um patamar ainda mais crítico dessa desigualdade quando pensamos em mulheres negras, indígenas e trans, cuja disparidade é ainda mais gritante.

Outra publicação que também traz dados relevantes e alarmantes é o Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro, publicado pela Ancine em conjunto com o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA. Em sua edição de 2023 , em uma seção que trata especificamente da participação feminina a partir de dados estatísticos, a conclusão foi de que “Os dados mais recentes revelam que a desigualdade entre os sexos na distribuição do emprego no setor audiovisual se acentuou em 2022, com a participação feminina caindo para menos de 40%, atingindo o menor nível desde o início da série histórica”.

Segundo dados desse anuário, em 2023, 175 filmes foram dirigidos exclusivamente por homens (64,6%) e 64 exclusivamente por mulheres (23,6%); os roteiros também seguem dominados por homens: 134 contra 49. Na fotografia, a diferença é ainda maior: 188 homens e 37 mulheres. Por outro lado, as mulheres continuam maioria na direção de arte (80 contra 52) e na produção executiva (101 contra 69). O público dos filmes dirigidos por mulheres seguiu a proporção da respectiva participação na direção, representando 24,2% do público total no ano (894.150 espectadores).

Vale também apontar a disparidade de remuneração entre mulheres e homens, traço marcante não só no setor do entretenimento, mas em todo o mercado de trabalho em geral, e que representa mais um reflexo dessa desigualdade. Basta analisarmos os dados comparativos desse mesmo anuário da remuneração mensal média por gênero e atividade econômica, e verificaremos que a desarmonia, para algumas atividades, como a de exibição cinematográfica, no ano de 2022, chegou a dois dígitos, com uma diferença média de 29,2% a menos para as profissionais mulheres.

O caminho para consertar essa balança contempla, em um nível macro, a própria transformação estrutural de toda uma sociedade atravessada por um patriarcado milenar. Sim, parece um horizonte inalcançável, cuja busca nem sempre sabemos por onde começar. Mas, se pensarmos no recorte de um setor como o cultural, pode ser exequível pensar em um passo de cada vez. Reivindicar a criação e implementação de políticas públicas diretamente direcionadas ao fomento e ao incentivo de projetos e iniciativas que preconizem a atuação de mulheres, certificar-se quanto à adoção de tais medidas em seu próprio âmbito de poder de atuação (com contratações e indicações direcionadas), assim como promover coletivamente uma fiscalização dos critérios de remuneração de cada classe, podem ser alguns dos caminhos a serem percorridos.

Todo esse processo é uma construção que passa pela conscientização, fiscalização, organização coletiva e afirmação recíproca, com indicação e apoio mútuo.

Como profissional do Direito atuante na área cultural e sócia fundadora de um escritório formado só por advogadas, torna-se, por vezes, difícil, diante da realidade estrutural de variadas organizações, compreender como essa engrenagem toda funcionaria sem o incontável empenho e atuação de inúmeras mulheres nos mais diversos segmentos. Dar nome e voz a cada uma dessas e de tantas empresas que se integram ao reconhecimento da necessária equidade faz parte da edificação dessa transformação.

Já que a expressão é livre, que seja também para libertar.

Carol Bassin, sócia fundadora do escritório Bassin Advocacia Cultural, especializado em propriedade intelectual, legislação de incentivo e proteção autoral, com experiência de atuação no suporte jurídico e estratégico ao mercado de produção cultural, mídias digitais e negociações envolvendo licenciamento de direitos. Atua como consultora jurídica e Business Affair junto ao agenciamento de talentos e é Membro Efetivo da Comissão de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ.

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