Conversamos com Roberto Dumas Damas, professor de economia chinesa do Insper, sobre o novo governo Trump e a China.
Como Trump está enxergando a China?
Desde o seu primeiro mandato, Trump considera a China um país perigoso. Isso por causa do seu expansionismo geopolítico, que não é a maior verve que move Trump, que é motivada, principalmente, pelos acordos comerciais e pelas transações comerciais da China com os Estados Unidos. É por isso que desde antes da eleição, Trump já dizia que ia colocar tarifas de 20% a 60% sobre as importações americanas de produtos chineses.
Muito provavelmente, nós temos um cenário onde vamos ter o início de uma nova guerra comercial, assim como aconteceu no primeiro mandato de Trump. Se pegarmos o gráfico das tarifas que Trump colocou nos produtos chineses, e que a China replicou, nós temos, praticamente, uma correlação positiva quase igual a um. Ou seja, quando os Estados Unidos colocavam a sua tarifa, a China colocava a dela. É por isso que a guerra comercial é quase uma certeza nos próximos anos de Trump.
Existe diferença entre a forma como republicanos e democratas estão enxergando a China?
Se pensarmos pelo lado da presidência de Joe Biden, bem “en passant”, não, pois Biden manteve as mesmas tarifas que Trump havia colocado no primeiro mandato. Contudo, a explicação de Biden para essas tarifas era muito mais pela segurança nacional, Inteligência Artificial e Tecnologia da Informação, do que por uma preocupação sobre as transações comerciais, ou seja, do déficit comercial que os Estados Unidos têm com a China. No caso de Trump, ele vai aumentar as tarifas com o verve muito mais tocado pelo lado das transações comerciais.
Isso não significa que Trump vai abandonar o espectro da segurança nacional, mas a sua maior preocupação são as transações comerciais e a diminuição do déficit comercial com a China através da imposição de tarifas. Contudo, é importante colocar que isso, dificilmente, vai melhorar o déficit comercial dos Estados Unidos.
Isso porque não é claro se Trump tem um problema com a China ou se ele tem um problema com déficits nas contas comerciais. Por exemplo, se um país quiser diminuir o seu déficit com a China, isso é fácil. Ele pode simplesmente falar que é proibido comprar produtos da China. Claro que isso não vai acontecer, mas essa solução poderia endereçar a questão. O problema é que se Trump fizer uma política fiscal expansionista, isso vai aumentar o déficit primário em, aproximadamente, US$ 4 trilhões em 10 anos, o que significa que a população norte-americana, tanto do lado público, quanto do lado privado, vai poupar menos, e, por identidade macroeconômica, quando a poupança doméstica cai, os déficits nas contas externas aumentam.
Se o problema é a China, eu entendo, mas se o problema são as transações correntes, Trump está indo pelo lado errado, pois ele vai diminuir a poupança da população norte-americana, e por identidade contábil, quando isso acontece, passa-se a importar a poupança do estrangeiro, quer da China, do Vietnã, do México, da Malásia ou da Índia.
Quais são os perigos econômicos que a China oferece aos Estados Unidos?
Eu sempre digo que é preciso dois para dançar tango. Quando os Estados Unidos reclamam da China, dizendo que ela destruiu empregos, em parte isso é verdade. Contudo, na década de 1980, uma empresa do Rust Belt precisava de 10 homens/hora para produzir uma tonelada de aço. Hoje, uma empresa precisa de apenas dois homens/hora. Assim, é preciso também culpar, em parte, a produtividade, já que nem tudo foi a China. Outro ponto: nos anos 2000, a China inundou os Walmart da vida com produtos muito mais baratos, o que permitiu aos Estados Unidos navegarem por uma década de inflação baixíssima, o que possibilitou prosperidade apesar da perda de empregos.
Nesse processo, os Estados Unidos tiveram ganhadores e perdedores. Quando a China invadiu os Estados Unidos com os seus produtos, o ganhador foi a população, que acabou comprando produtos mais baratos. Os perdedores foram as pessoas que perderam seus empregos, e que, obviamente, reclamaram a plenos pulmões. No entanto, a maioria da população norte-americana se beneficiou de uma inflação e de uma taxa de juros baixa nos anos 2000.
Com os Estados Unidos colocando, provavelmente, novas tarifas de até 60%, sendo que para carros elétricos elas devem ser de 200%, as importações norte-americanas provenientes da China vão ficar mais caras. Isso acontecendo, vai haver mais inflação, o que vai fazer com que as taxas de juros praticada pelo Fed tendam a ficar higher for longer, ou seja, mais altas por mais tempo. Com isso, a inflação deve recuar, mas dificilmente ela vai voltar para os patamares dos anos 2000.
Esse é um ponto nevrálgico, não só por causa de Trump, mas também por causa da reformatação da globalização no pós-pandemia. Como muitos países perceberam que é um absurdo ficar sujeito a um único país, eles estão diversificando as suas cadeias de suprimento, fazendo um pouco onshore (no próprio país), nearshore (em países próximos) ou friend-shore (em países amigos e de confiança). Contudo, ao se fazer onshore, nearshore e friend-shore, eventualmente não se está comprando do país mais barato, o que profana as vantagens comparativas. Isso coloca mais lenha na fogueira de uma inflação mais pegajosa nos próximos anos Trump.
Caso Trump aplique tarifas contra os produtos chineses, como a China deve responder os Estados Unidos?
No seu primeiro mandato, toda vez que Trump colocava uma tarifa sobre algum produto chinês, a China tomava a mesma ação de forma imediata. No final das contas, ninguém ganhava com isso, pois tanto os Estados Unidos quanto a China acabavam importando inflação. Tanto isso é verdade que o receio de que os produtos chineses fiquem mais caros fez com que a China batesse recorde de exportações, com uma balança comercial de US$ 1 trilhão, já que muitos compradores, ao redor do mundo, principalmente dos Estados Unidos, anteciparam suas compras com a China porque sabem que as tarifas serão pesadas e que os produtos chineses vão ficar mais caros.
Como a China vai replicar os Estados Unidos, nós vamos ter ganhadores e perdedores nesse processo. Esse processo pode ajudar alguns empregos, mas vai gerar inflação e fazer com que a taxa de juros fique mais alta por mais tempo, o que vai prejudicar as moedas dos países emergentes. Se a curva de juros dos Estados Unidos continuar subindo, vai ficar mais interessante investir nos Estados Unidos do que em países emergentes, principalmente no Brasil, dado o nosso risco fiscal. Em parte, a atual taxa de câmbio no Brasil se deve ao Efeito Trump.
Aproveitando a oportunidade, como você viu as declarações recentes de Trump sobre a Groenlândia, o Canadá e o Canal do Panamá, e seus impactos na geopolítica?
Quando Trump falou que queria anexar a Groenlândia, mesmo que a força, ele estava colocando um cravo no caixão da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), já que a Groenlândia faz parte do Reino da Dinamarca, que faz parte da Otan desde 1949. Com isso, Trump deu força para países autocráticos, como a Rússia de Putin, que, provavelmente, vai dominar totalmente as regiões de Donetsk, Luhansk, Zaporíjia, Donbass e Odessa na Ucrânia, e pode dar, eventualmente, um passe livre para a China anexar Taiwan. Quando Trump diz “America First”, ele não fala dos demais países, pois ele não está preocupado com eles.
Em meados do seu primeiro mandato, Trump disse que não sabia se enviaria tropas americanas para Montenegro, que faz parte da Otan, caso o país fosse invadido. Isso porque, como Montenegro era muito pequeno, não compensaria enviar tropas para entrar em uma terceira guerra mundial.
Quando Trump diz que quer a Groenlândia e que não hesitaria em usar a força para anexá-la, isso pode fazer com que Putin pense, eventualmente, em buscar os países bálticos (Letônia, Lituânia e Estônia), a Moldávia e a Bielorússia, que não deixa de ser um puppet da Rússia com Luckashenco, para formar a Grande Rússia.
Como Trump vai fazer a “America Great Again” se com essa atitude de buscar a Groenlândia ele está desmantelando a Otan e dando poderes para os autocratas fazerem os seus expansionismos? No caso da Rússia, esse expansionismo seria czarista e revisionista. Isso porque quando Trump fala do Canadá e do Panamá, ele está sendo revisionista.
Veja que há muita coisa para acontecer, tanto do lado comercial, quanto do lado geopolítico. Quando Trump diz “Make America Great Again”, isso significa ter superávits comerciais ou ter um poder de influência maior na Eurásia e na Ásia? Quando Trump coloca um cravo no caixão da Otan, ele mostra que, de fato, os Estados Unidos estão abandonando os seus aliados na Europa.
Isso também vale para os aliados dos Estados Unidos na Ásia. O que a Coreia do Sul poderia pensar se os Estados Unidos parassem de mandar armas para Taiwan ou não mandassem tropas caso Taiwan fosse invadida pela China? Isso quando a Coreia do Sul tem Kim Jong-un logo acima, louco para anexá-la. Nesse cenário, se os Estados Unidos roessem a corda com Taiwan, será que eles não roeriam a corda com a Coreia do Sul? É possível, mas não provável. Outro exemplo: se os Estados Unidos abandonarem o Japão, que é o principal inimigo dos chineses, os japoneses vão se aliar, de alguma maneira, à China.
Novamente: quando Trump usa o discurso de “Make America Great Again”, ele está falando em termos comerciais ou na influência norte-americana ao redor do mundo? Se a retórica for comercial, ela faz sentido, mas se retórica for de influência, no momento em que ele busca acabar com a Otan, fica uma dicotomia entre o discurso e a geopolítica.
Como o Brasil deveria se posicionar na disputa entre Estados Unidos e a China?
Absolutamente equidistante, já que dessa maneira o Brasil poderia aproveitar a briga comercial entre os dois países. Por exemplo, no primeiro mandato de Trump, quando os Estados Unidos colocaram tarifas sobre os produtos chineses, os chineses retaliaram comprando mais do agronegócio brasileiro. Só que Trump foi bem mais esperto, pois assumiu o compromisso de que não aumentaria tanto as tarifas desde que os chineses comprassem cotas da soja americana.
O Brasil tem que estar preparado para essa briga, pois os chineses podem diminuir suas compras do agronegócio americano e aumentar suas compras do agronegócio brasileiro, da mesma forma como aconteceu no primeiro mandato de Trump. Agora, se Trump colocar cotas, o Brasil será prejudicado.
É importante que o Itamaraty esteja absolutamente atento a essa guerra comercial de forma a trazer benefícios para o agronegócio e o aço brasileiro. Para isso, é preciso estar em uma posição equidistante, mas a partir do momento em que o país entrou no Brics, ele mostrou que a sua posição não era equidistante. Mesmo assim, seria importante o Brasil ter essa posição, pois países não têm amigos, e sim interesses.