Conversamos sobre a guerra tarifária do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com Marcelo Calliari, head de comércio internacional e sócio do TozziniFreire. Marcelo foi Conselheiro do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), entre 1998 e 2000, e presidente do IBRAC (Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional), entre 2010 e 2011.
Qual a sua avaliação sobre a questão das tarifas entre Estados Unidos, Canadá e México?
O Nafta (North American Free Trade Agreement) existiu durante muito tempo, mas foi desfeito por Trump no seu primeiro mandato. Na época, como Trump dizia que o Nafta era contra os interesses dos Estados Unidos, ele foi rescindido, o que levou o México e o Canadá a um esforço muito intenso para negociar um novo acordo entre os três países, o que aconteceu em 2020, quando o USMCA (United States, Mexico and Canada Agreement), nome que Trump fez questão de dar, foi assinado. O mais irônico dessa história é que Trump está falando da relação com México e Canadá quando foi ele próprio que assinou esse acordo.
O que Trump já deixou claro é que ele não se importa com os compromissos internacionais, até porque a sanção normal de uma disputa comercial seria a permissão de retaliação dada pela OMC (Organização Mundial do Comércio). O problema é que os Estados Unidos travaram a OMC há muito tempo, o que tornou a organização cada vez mais irrelevante. Se os Estados Unidos desrespeitam um acordo com o México e o Canadá, eles estão mostrando que vão fazer isso com qualquer um.
Outro ponto é que havia um arcabouço jurídico que dava confiança para que as empresas americanas colocassem fábricas no México e no Canadá. Isso porque muitas empresas americanas, desde o Nafta, organizaram suas linhas de produção levando em conta os benefícios de cada país e a estabilidade do acordo. Por exemplo, se houver uma tarifa contra o México, muitas empresas americanas vão ter dificuldades de exportar para o seu próprio país, o que pode gerar falta de confiança e de previsibilidade em termos econômicos.
Trump ainda não impôs tarifas para os dois países, mas a ameaça em si já é uma mostra de que a política comercial vai ser usada como um tacape. Isso depois dos Estados Unidos terem dito por décadas, primeiro no GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), e depois na OMC, que o comércio tinha que seguir certas regras e que era preciso ter um mecanismo de resolução de disputas.
Nós estamos em um cenário novo onde a política comercial vai ser usada como um instrumento de política externa.
Qual a sua avaliação sobre a questão das tarifas entre Estados Unidos e China?
Ao contrário do México e do Canadá, cuja implantação de tarifas foi adiada por um mês, no caso da China elas já estão em vigor, sendo que a China já formulou o seu elenco de retaliações. Como os Estados Unidos já haviam imposto tarifas diferenciadas para a China, o que está sendo colocado é adicional ao que já era pago sobre os produtos chineses.
A China está aproveitando esse momento para ir à OMC e mostrar que está seguindo as regras. Ela vai brigar através do mecanismo que foi criado pelos americanos e pelos europeus. Isso não vai ter nenhuma consequência prática, mas a China vai mostrar que os Estados Unidos estão desrespeitando as regras que eles próprios criaram e que ela está tentando segui-las. Com isso, a China vai se colocar perante o mundo como um parceiro mais confiável.
A médio prazo, existe o risco dos Estados Unidos perderem espaço nas relações econômicas, seja de comércio, seja de investimentos, que possuem com boa parte do mundo, com o país deixando de ser visto como um parceiro confiável.
A China está com um discurso muito moderado, deixando claro que quer ter um diálogo construtivo com os Estados Unidos, mas ela já retaliou em coisas selecionadas. Contudo, em termos de volume de dinheiro, o que os Estados Unidos fizeram com a China é incomparavelmente mais grave do que o que a China fez com os Estados Unidos.
Como os Estados Unidos travaram a OMC?
Quando há uma investigação contra um dos membros da OMC, primeiro se faz uma acusação formal com um pedido de investigação, como a China fez agora com os Estados Unidos. Feito isso, cria-se um painel de especialistas para que o caso seja julgado. Isso está funcionando, mas os países não têm levado mais tantos casos, pois quando o painel toma uma decisão, existe o direito de se recorrer a um órgão de apelação. O problema é que o órgão de apelação da OMC parou há muitos anos.
Isso começou na primeira presidência de Trump, quando os Estados Unidos passaram a bloquear a indicação de novos juízes para este órgão. Isso teve continuidade no Governo Biden, que, em termos de política comercial, manteve muitas coisas que Trump havia feito no seu primeiro mandato, além de impor novas restrições.
Curiosamente, quem defendia o livre comércio nos Estados Unidos eram os republicanos, com os democratas defendendo uma política industrial que protegesse certos setores, mas Trump rompeu com toda a linha ideológica dos republicanos.
Como o Brasil pode ficar no meio desse processo?
O Brasil está em uma situação delicada, já que ele quer ficar bem com os Estados Unidos e com a Europa, mas também quer estar muito bem com a China. Essa era uma estratégia que já vinha ficando mais difícil, já que os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) estavam colocando muitas restrições à China.
Outro problema é a capacidade produtiva gigantesca que a China possui. O país investiu muito nos últimos anos pensando nas suas exportações e no seu mercado doméstico, sendo que eles estão com problemas nas duas frentes. Isso porque cada vez mais países estão colocando restrições às exportações chinesas e o próprio mercado doméstico chinês não cresceu tanto quanto se imaginava.
Como a China possui uma capacidade produtiva maior do que a necessária, muitos países estão preocupados com a possibilidade dos chineses desovarem produtos no mundo. No Brasil, muitas empresas estão reclamando disso, mas ainda são poucas as que estão pedindo a imposição de direitos antidumping contra a China.
O mesmo vale para o México, pois se os Estados Unidos impuserem tarifas contra os produtos mexicanos, o país vai ter, de repente, um monte de produtos para serem vendidos. Esses produtos não precisam ser, necessariamente, vendidos para o Brasil, mas eles podem competir com os produtos brasileiros em outros mercados.
Como o Brasil pode tirar proveito de toda essa situação?
Como os produtos e os investimentos chineses estão sofrendo restrições crescentes, muito se tem falado de um movimento de nearshore (comprar de países próximos). A pandemia agravou essa questão, pois ela causou, ou expôs, muitos problemas de supply chain. Além do nearshore, existe o movimento do friend-shore, que é comprar de países amigos que não vão sofrer restrições.
O Brasil, a princípio, poderia entrar nesse processo como um país que não tem problema com ninguém. Por exemplo, existem empresas chinesas que estão investindo no Brasil para exportar produtos, a partir daqui, para outros países, como veículos elétricos. Quando esses veículos são exportados da China, eles sofrem uma série de restrições na Europa e nos Estados Unidos, mas quando o veículo elétrico é brasileiro, não. Obviamente, é preciso se guiar pelas regras da OMC para que o veículo possa ser caracterizado como brasileiro, e não como chinês, com um mínimo de componentes nacionais, já que não basta apenas trazer todos os pedaços para o Brasil e montá-los aqui.
Como os chineses estão burlando as restrições através da fabricação ou montagem em outros países, muitos países estão restringindo ainda mais essa prática, exigindo mais conteúdo nacional nos produtos que eles importam.