‘O Poço’

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Dia desses, logo do começo da pandemia, vi na Netflix, quase por acaso, o filme O Poço (El Hoyo, do original espanhol), dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia. A trama é intrigante. O “mocinho” do filme entra por vontade própria numa prisão vertical com um único propósito: parar de fumar. Essa prisão é um grande buraco – por isso, “o poço” – vertical, composto por vários níveis, cada um acomodando dois prisioneiros que estão ali por diversos motivos. Esses prisioneiros são trocados aleatoriamente de níveis de tempos em tempos e cada um passa a conviver com um preso desconhecido e suas desgraças pessoais, até que o sistema provoque novo rodízio aleatório e os sujeitos passem a dividir com outros um nível diverso do seu, acima ou abaixo da cela onde estava.

Os critérios pelos quais esse revezamento é determinado não são conhecidos. É porque é. Todo dia, numa hora determinada pela engrenagem, uma placa central desce do nível zero – o mais alto da prisão – ao nível 333 – o mais baixo – e vai passando pelos níveis por poucos minutos, trazendo os restos de comida do andar de cima. Quem está no andar abaixo daquele de onde a placa saiu com os restos de comida tem de aproveitar tudo o que puder e dar graças a Deus por não estar num nível ainda mais baixo que o seu, onde só chegam os restos de comida que ele próprio deixar, e assim sucessivamente, até que os presos dos andares de baixo tenham para comer apenas os restos dos restos dos restos de quem está preso num andar acima do seu.

Há uma regra ideal, que ninguém segue: se todos do andar de cima comessem apenas o necessário, a placa que serve de mesa desceria andar por andar trazendo comida boa e farta para todos abaixo dele, mas as pessoas não entendem isso e consomem tudo o que não precisam porque sabem que é isso o que os caras do andar de cima fizeram com elas e elas mesmas são os caras do andar de cima dos outros sujeitos do andar de baixo, e assim essa lógica macabra conduz a vida dos presos até o nível 333, o degrau mais baixo do poço, a ponto de, nesse nível degradante, sobrarem apenas ossos, restos de comida, garrafas vazias e copos quebrados. Com isso, a luta de quem está no andar de cima é comer tudo o que pode e deixar apenas os restos para quem está no andar de baixo, e os do andar de baixo só pensam em comer tudo o que podem e não deixar nada para os que estão ainda mais abaixo pela simples razão de que amanhã ou depois, aleatoriamente, o sistema poderá revezá-los, e quem está num andar superior pode despencar para um inferior, e vice-versa.

No O Poço, é cada um por si.

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Cada pessoa que assistir ao filme poderá dar à trama o sentido que quiser. Ou sentido nenhum. Uns verão nele a miséria da existência humana. Outros considerarão que aquela prisão vertical é o próprio homem e suas misérias morais. Uns derradeiros, por fim, vão achar uma tolice, uma estrepolia de algum cineasta metido a besta que resolveu escrever essa bobagem para ganhar dinheiro e agradar aos críticos de cinema.

Eu, particularmente, imagino O Poço como o retrato fiel da sociedade em que vivemos, e transponho essa terrível alegoria para essa questão da pandemia. O que vemos nesta sociedade pandêmica? De um lado, um esquizofrênico receitando para a população remédios cuja eficiência nem mesmo a Medicina comprovou, ou, pior que isso, em alguns casos até já reprovou pelos seus terríveis efeitos colaterais. Esse charlatão é contra o isolamento social e estimula outros malucos a desafiarem a Ciência e saírem pelas ruas dando abraços e beijos e aumentando a propagação da doença. De outro lado, temos os favoráveis ao fechamento das fábricas, das escolas, do comércio, à proibição de circulação de pessoas, carros e ônibus, e ao lockdown, à paralisação de tudo e a segregação compulsória de pessoas e cidades com ordem de prisão a quem resistir.

Esse é o grande poço.

Quem está o andar de cima, com o emprego garantido, a geladeira cheia e as contas em dia, quer o fechamento de tudo e não se importa nem um pouco se o sujeito do andar de baixo tem ao menos um pão seco para matar a fome do filho que chora no colo da mãe. Ele que se vire com as migalhas. Esse, do andar de baixo, que se alimenta das migalhas do sujeito do andar de cima, também não está em um pouco preocupado se o que está num andar ainda mais baixo que o seu tem ou não o que comer e dar ao filho que chora no colo da mãe. E assim, de andar em andar, todos vão morrendo de fome porque o que está no andar de cima é incapaz de ver um palmo além do seu nariz.

Quando esta pandemia começou, milhares de pessoas foram aos supermercados e compraram de tudo, aos montes, como se o mundo fosse acabar amanhã. Ninguém achava álcool 70°, o álcool em gel sumiu das prateleiras e não havia máscaras disponíveis nem mesmo para os médicos e profissionais de saúde. Ainda hoje faltam máscaras, e as pessoas têm de costurá-las em casa ou comprar no camelô da esquina se não quiserem pagar o olho da cara. Esses são os do andar de cima, e na cabeça deles era preciso consumir tudo o que fosse possível, pouco importando se sobraria alguma coisa para o pessoal do andar de baixo.

As farmácias e supermercados que ainda tinham algum estoque de álcool e máscaras limitavam o número de unidades por consumidor, mas isso de nada adiantava porque o sujeito mandava os vários membros da família comprarem os produtos como se fossem pessoas de famílias diferentes. Ninguém percebeu que se você compra dez litros de álcool em gel e eu não tenho nenhum, você pode estar protegido, mas eu não, e eu vou passar o vírus pra você do mesmo jeito.

É a lógica do andar de cima em O poço.

Os que têm emprego fixo, salário e geladeira cheia, pregam a necessidade de isolamento social, fechamento de escolas, comércio e indústria, lockdown, proibição de aglomeração, circulação de ônibus e prisão para quem andar pelas ruas sem razão aparente. São os do andar de cima. Quem não tem emprego formal nem renda, a geladeira está vazia, o filho está sem merenda porque a escola do bairro está fechada e não sabe quando alguma coisa vai voltar ao normal, quer a abertura da vida para ter um pouco de dignidade. Ele não está subestimando a doença. Ele apenas está com fome. São os do andar de baixo. Ele está tão preocupado com o coronavírus quanto qualquer outro. Ele será tão vítima da doença como qualquer outro. A única diferença é que ele não tem onde trabalhar, não tem o que comer nem o que dar aos filhos.

Boa parte daquele desnecessário estoque de comida que os do andar de cima fizeram no início da pandemia apodreceu na geladeira porque ninguém conseguiu comer. Os do andar de cima estão mais gordos, mais ansiosos, mais depressivos, passam o dia curtindo “lives” disso e daquilo e têm opinião sobre tudo, prescrevem cloroquina e preveem o futuro. Se tivessem dividido um pouco com os do andar de baixo, muita comida não teria apodrecido, a violência doméstica não teria aumentado, muitos pais dormiriam em paz sem a angústia de saber que não terá um pão dormido para calar a fome dos filhos amanhã de manhã. Mas não. A preocupação é comer tudo antes que a engrenagem do sistema gire e quem está em cima acabe lá na rés do chão.

A partir de agora, quando você abrir a sua geladeira e ficar em dúvida sobre o que escolher para comer, lembre-se dos que nesse mesmo momento estão abrindo as geladeiras de suas casas e ficando em dúvida entre pedir ou roubar. Lembre-se do “poço”. Quando menos você espera, a engrenagem gira, e o que você poderá ter sobre a mesa será o resto do andar de cima. Ou talvez nem isso.

 

Mônica Gusmão é professora de Direito Empresarial, do Consumidor e do Trabalho.

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