O Programa Pró-Brasil: alento ou tragédia?

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Anunciado no último dia 22 em cerimônia comandada pelo ministro-chefe da Casa Civil, o general Braga Netto, o Programa Pró-Brasil suscitou no autor desses comentários impressões as mais contraditórias.

A primeira foi de alento. Assim que tomei conhecimento da proposta, pensei que finalmente algum integrante deste pretenso governo teria se dado conta do que, a essas alturas, já deveria estar absolutamente óbvio para todos: que a crise, agravada pela pandemia do Covid-19, será brutal, sem paralelos na nossa história; que as suas consequências para a produção, as finanças e o emprego no Brasil serão muito profundas; e que a sua superação exigirá uma ação decisiva do Estado na retomada desses parâmetros cruciais para a estabilidade da sociedade brasileira.

No dia seguinte, desejando saber mais a respeito, procurei na internet algum material relacionado ao programa. Descobri, então, a apresentação oficial num power point de apenas sete telas (contando com a capa) que delineou o que, com muito boa vontade, poderíamos chamar as suas “linhas mestras”.

A princípio, o programa se divide em dois módulos. O primeiro, “ordem”, enumera medidas “estruturantes” assim relacionadas: arcabouço normativo; investimentos privados; segurança jurídica e produtividade; melhoria do ambiente de negócios; e mitigação dos impactos socioeconômicos. O segundo, “progresso”, trata dos “investimentos” em duas frentes: obras públicas e parcerias com o setor privado.

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Em seguida, uma tela intitulada “abrangência do programa” relacionou as áreas a serem contempladas da seguinte forma: 1) Infraestrutura – transporte e logística; energia e mineração; desenvolvimento regional e cidades; telecomunicações; 2) Desenvolvimento produtivo – indústria, agronegócio, serviços e turismo; 3) Capital humano – cidadania, capacitação, saúde, defesa, inteligência, segurança pública e controle da corrupção; e 4) Inovação e tecnologia – cadeias digitais, indústria criativa e ciência. E como dimensões “viabilizadoras” dessas ações, foram elencadas finanças e tributação; legislação e controle; meio ambiente; institucional e internacional; e valores e tradições.

Por fim, quanto ao cronograma, o programa prevê a “implantação em larga escala” dos projetos a partir de outubro desse ano e seus resultados em duas fases: “ganhos rápidos”, de 2020 a 2022; e “crescimento acelerado”, de 2023 a 2030.

De saída, dois dados ficaram claros dessa leitura.

O primeiro, a visão “holística” dos idealizadores da proposta, abrangendo ações em diversas dimensões da vida nacional: infraestrutural, produtiva, financeira, social, ambiental e até ideológica. O segundo, a pretensão de que o Pró-Brasil represente uma política de Estado, não apenas de governo, posto que o horizonte de execução e realização dos seus objetivos se estenderia pelos dois próximos mandatos presidenciais.

Com efeito, tudo isso poderia sinalizar um inesperado retorno aos tempos do que se convencionou chamar de “planejamento econômico”, muito bem consubstanciado em iniciativas como o Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek e os planos nacionais de desenvolvimento dos governos Medici e Geisel. Não por acaso, nem o “superministro” da Economia Paulo Guedes nem qualquer representante da sua equipe compareceram ao lançamento do programa.

Também não por acaso, logo encontrei críticas ao Pró-Brasil, como no podcast do próprio dia 22 produzido pelos comentaristas da Globo Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg. Então, Miriam chamou o programa de “PAC do Governo” Bolsonaro, remetendo o ouvinte aos governos Lula e Dilma associados à dita “nova matriz econômica” e à “irresponsabilidade” fiscal. Em seguida, afirmou que ele lembra os “planos de desenvolvimento” do passado, consistindo numa “coleção de projetos” como obras públicas e concessões.

Não obstante, Miriam prosseguiu, afirmando que o Pró-Brasil “não lembra o tempo atual”. Isso porque, segundo um membro da equipe de Guedes com o qual ela alegou ter conversado, o programa é ainda “embrionário” e “muito barulho por nada”. Na visão desse interlocutor, se for executado com “muito dinheiro público”, constituirá “aumento de gastos”; se “flexibilizar” as regras fiscais, acabando com o “teto dos gastos” públicos, representará um “tiro no pé” com consequências “imprevisíveis” e “previsíveis”, como deixar o país mais endividado e com mais “incerteza”, produzindo inflação e juros mais elevados no futuro.

Dessa forma, Miriam afirmou que, se a Casa Civil julgar que poderá fazer um plano “manu militari”, sem a participação da “equipe econômica” e sem seguir as suas recomendações, poderá levar ao “aprofundamento” da crise. Então, essa “divergência” entre a Economia e a Casa Civil poderá resultar numa “grande confusão”, provocada pela ideia da “condução de tudo pelo Estado” enquanto esse tem “pouca capacidade de investimento”. Assim, ela concluiu que o governo terá que “abrir espaço” no programa para o investimento privado, enquanto Sardenberg se limitou a considerar o programa um “erro”.

É claro que o espírito do Pró-Brasil é diametralmente oposto à visão de Miriam Leitão e Sardenberg, dois dos mais perenes e influentes porta-vozes do financismo no Brasil, assim como ao privatismo extremista de Paulo Guedes e sua equipe. Afinal, o programa sugere restaurar, pelos próximos dez anos, o papel central do Estado como agente indutor do desenvolvimento. Portanto, não nos surpreendem as suas posições.

Não obstante, elas revelam que já começou a disputa pelos rumos a serem dados à administração fazendária do país durante a crise, e os primeiros sinais indicam que o status quo financista saiu em vantagem. Reportagens subsequentes que li relatam que, na visão do general Braga Netto, o governo não deverá abrir mão do “teto” dos gastos na condução do Pró-Brasil, pois a “ala militar” vê os governos do PT como uma “lição” nesse sentido; que a expectativa da Casa Civil é que a maior parte dos recursos previstos no programa provenha da iniciativa privada, cabendo R$ 250 bilhões em investimentos por meio de concessões e parcerias público-privadas e ao governo apenas R$ 50 bilhões em investimentos públicos; e que o general promoveu uma reunião com o embaixador dos Estados Unidos na qual pediu investimentos das empresas desse país em auxílio ao programa.

Em suma, tudo indica que o Pró-Brasil terá como foco oferecer ao capital privado, nacional e estrangeiro, condições atraentes para os seus investimentos.

Portanto, embora o general Braga Netto e os integrantes da Casa Civil já tenham percebido o que terá que ser feito pelo governo nos próximos anos para reativar e reorganizar o capitalismo no Brasil, demonstram permanecer míopes quanto ao quê fazer e como fazer.

Afinal, é preciso lhes perguntar: o que os faz crer que as iniciativas privadas, que já vinham falhando redondamente nos últimos anos em produzir a esperada “recuperação” da crise iniciada em 2014 – apesar de terem, desde então, extorquido da sociedade brasileira uma série de “reformas”, concessões e retiradas de direitos – o farão justamente agora? O que os faz crer que o capital estrangeiro fluirá em volume significativo para o Brasil em meio àquela que poderá ser a maior depressão da história do capitalismo mundial? Ou ainda, o que os faz, como militares, considerar que a retomada do desenvolvimento nacional, objetivo estratégico supremo do Brasil nos próximos anos, deverá ser deixada à mercê de escolhas privadas?

É preciso que eles tenham clara consciência do que está por vir. Essa deverá ser a maior crise produtiva, financeira e social da nossa história. Retomar o desenvolvimento depois da atual paralisação não será uma opção, mas uma condição absolutamente imperativa para a estabilidade social e política do Brasil nos próximos anos. Não teremos alternativa que não gerar, o quanto antes, milhões de empregos, investindo maciçamente em infraestrutura e retomando a industrialização do Brasil, principalmente, nos setores essenciais para a autonomia estratégica do país como a agroindústria, a defesa, a energia e – conforme estamos constatando da forma mais gritante nesse exato momento – o complexo industrial da saúde.

Portanto, será missão do Estado brasileiro, e de ninguém mais, liderar a retomada desse desenvolvimento por questões de segurança nacional, coesão social e até para a nossa própria viabilidade enquanto país. Considerações de ordem fiscal, embora importantes, não poderão se sobrepor a esse objetivo supremo, principalmente quando estão a serviço de interesses como esses que há pelo menos 25 anos mantém o Brasil subordinado à lucratividade pornográfica de um pequeno grupo de bancos e dos detentores de ativos financeiros.

Para concluir, para recuperar o Brasil, será preciso livrá-lo da subordinação a esses interesses. Será preciso subordinar as finanças aos interesses nacionais, as reposicionando como instrumentos de promoção das relações sociais do emprego, da produção, da circulação e do consumo, ou seja, do mundo real, onde vive a quase totalidade dos cerca de 210 milhões de brasileiros.

Em suma, é preciso lembrar os generais que um país em desordem jamais teve ou terá ordem nas suas contas públicas.

Não adiantará tentar corrigir os rumos se se permitir que a tragédia da anomia social se instale entre nós.

Daniel Kosinski

Doutor em Economia Política Internacional, pesquisador da UFRJ e membro do Instituto da Brasilidade.

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