O projeto do bio sabão que se alimenta de esgoto

Nesta entrevista, os responsáveis pelo projeto explicam como funciona o bio sabão que contém microrganismos que se alimentam de esgoto.

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Bio Sabão da Rocinha
Bio Sabão da Rocinha

Conversamos sobre o projeto do bio sabão que come esgoto, que está sendo desenvolvido na Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro, com José Alberto Aranha, idealizador e coordenador do projeto; Estefan Monteiro da Fonseca, oceanógrafo e doutor em geologia e geofísica marinha; e Marcelo Santos, fundador da startup Óleo no Ponto, que está responsável pela produção, ainda em fase de teste, do Bio Sabão da Rocinha.

Como se deu a origem do projeto do bio sabão?

Aranha – Esse projeto se chama Pista (Parque de Inovação Social, Tecnológica e Ambiental), sendo que existe uma associação mundial de Parques. Eles têm como missão encontrar e capacitar pessoas que possam ser preparadas para serem empreendedores e estimulá-los a montarem startups que desenvolvam e melhorem a qualidade de vida das pessoas. Normalmente, os Parques trabalham com universidades, empresas, governos e moradores em cidades, só que nós estamos fazendo a mesma coisa numa cidade chamada Favela da Rocinha.

Como os Parques procuram problemas locais para solucioná-los, nós olhamos para dentro das favelas e vimos que um dos seus grandes problemas é a poluição. Para resolvê-lo, nós tivemos o apoio da Secretaria de Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Rio de Janeiro (SEAS) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), e as integrações do professor Estefan, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e do Marcelo, que é empreendedor, morador da Rocinha e que já trabalha na produção de sabão, que junto com o que estava sendo feito na UFF, pode dar origem a um produto transversal. Digo isso pois essa é uma inovação cruzada, pois ela encontra o conhecimento de uma universidade, que está resolvendo um problema, para resolver outro, o que faz com que tenhamos uma disrupção.

Como se deu o desenvolvimento da cepa que está sendo utilizada no bio sabão e como ela funciona?

Estefan – Como disse o professor Aranha, nós temos uma tecnologia que foi de uma área para outra. A primeira área não foi a de qualidade da água, e sim de fertilizantes. Quando os elementos do solo não estão, vamos chamar assim, apetitosos para as plantas, nós colocamos organismos, que chamamos de microrganismos eficazes, que retrabalham esses componentes e os deixam mais palatáveis para as plantas, pois eles reaproveitam melhor os nutrientes que estão no solo. Para que você tenha uma ideia, essa tecnologia já é utilizada por grandes produtores de soja e de grãos no Brasil.

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A partir daí, nós começamos a utilizar esses micro-organismos para fazermos a reciclagem dos nutrientes que estão na água. Com isso, o que para nós é esgoto, para os organismos vivos passa a ser nutriente. A ideia é repor os microrganismos que estão faltando no meio ambiente por conta da sobrecarga de poluentes gerada pelo volume de esgoto.

Nós começamos a pesquisar isso na Lagoa de Maricá, os resultados foram muito mais rápidos do que imaginávamos, e nós conseguimos restabelecer os organismos de fundo da Lagoa, que passou, na época, de 4 espécies dominantes para 16. Isso porque, literalmente, nós reciclamos o material de fundo com esses microrganismos naturais do meio ambiente que haviam sumido. A partir desse empurrão, o meio ambiente por si só já se recicla.

Como não usamos produtos químicos, não há nenhum efeito secundário negativo. Outro ponto é que não estamos utilizando organismos de outro ambiente, alienígenas, e sim organismos tropicais.

O grande pulo do gato é a forma como vamos utilizar essa solução em comunidades. Nós poderíamos fazer isso pelo método tradicional, que seria a aplicação desses microrganismos diretamente no meio ambiente, ou através do hábito social, ou seja, através de um produto utilizado diariamente pelas pessoas que faria a dispersão da solução. Assim veio o sabão.

O problema é que para prevenir doenças, um sabão quebra a parede celular dos organismos vivos. É por isso que durante a pandemia se alertou tanto para a necessidade de se lavar as mãos, pois a utilização de sabão quebrava a parede celular do vírus. Para que pudéssemos superar essa limitação, nós criamos uma tecnologia de microcápsulas que protegem os organismos de forma a que eles possam sobreviver dentro do sabão. Assim, quando o sabão é utilizado, essas microcápsulas vão para o meio ambiente, os microrganismos são liberados e se proliferam e começam a retrabalhar e a se alimentar do esgoto.

Além de melhorar a água do meio ambiente, como os organismos estão retrabalhando o esgoto, ele não vai apenas sumir, mas será transformado em nutrientes que vão nutrir as espécies de peixes. Isso porque como o esgoto da Rocinha chega a São Conrado, ele vai se tornar um fertilizante para as águas do mar, o que vai gerar maior produtividade pesqueira.

Produção, ainda em fase de teste, do Bio Sabão da Rocinha
Produção, ainda em fase de teste, do Bio Sabão da Rocinha.

Os microrganismos que estão sendo usados na Rocinha podem ser usados em qualquer lugar no Brasil?

Estefan – Através de um método chamado metagenômica, nós vamos ao meio ambiente e identificamos seus organismos para termos segurança de que o que será feito não é nada demais, pois não estamos trazendo um organismo alienígena. Por exemplo, o Rio, que possui aspectos climatológicos bem tropicais, possui organismos muito próximos aos do Nordeste e da Amazônia. Provavelmente, não haveria variação alguma.

Outro exemplo: as enxurradas do Rio Grande do Sul juntaram as águas de todos os ecossistemas que foram atingidos por ela. Nesse caso, o meio ambiente misturou os micro-organismos de vários ambientes em uma sopa só.

Esse medo de trazer um organismo alienígena de um ponto para outro é, digamos assim, conservador demais, o que acaba até atrasando a evolução da nossa tecnologia. O próprio meio ambiente, através das mudanças climáticas, já está fazendo a troca de organismos e ainda assim mantendo o equilíbrio.

O bio sabão pode representar algum risco à saúde das pessoas e ao meio ambiente?

Estefan – Vou te contar uma coisa. No dia em que eu fui fazer a aplicação na Lagoa de Maricá, eu bebi um copo do bio insumo. Por pedido do órgão ambiental, nós fizemos um estudo de toxicologia através do qual submetemos um organismo alvo a cepa. Para isso, nós usamos camarões, pois eles possuem uma saúde muito sensível. Como resultado, nós verificamos o aumento da sobrevida de 70% dos camarões submetidos ao estudo.

Outro ponto: quando se fala em produção de camarões, os produtores colocam proteínas para que eles se desenvolvam. Nesse estudo, nós verificamos que os camarões diminuíram a necessidade de comer proteína para se desenvolverem, pois a sua flora intestinal foi tão bem regularizada que a sua saúde melhorou. Isso pode ser projetado para todo o meio ambiente.

Aranha – O Brasil é o 12º maior produtor de papers no mundo, ou seja, produzir papers e publicá-los internacionalmente é uma coisa que sabemos fazer. Muitas vezes, nós conseguimos pegar esses papers e transformá-los em tecnologias, como faz a Petrobras, só que essas tecnologias não chegam à sociedade, pois ficam guardadas. 

Para fazer com que as pessoas utilizem o conhecimento da pesquisa e das tecnologias desenvolvidas, é necessário que se tenha uma aplicação na prática que seja consumida pela população. Essa é a complexidade. Sozinho, você pode até fazer uma pesquisa e criar uma tecnologia, mas você não vai fazer inovação, pois é preciso um grupo de pessoas que façam as coisas acontecerem. Esse é um bom exemplo, pois as pessoas têm dificuldade em entender o que é inovação, já que misturam inovação com pesquisa e tecnologia.

Como está o desenvolvimento do projeto do bio sabão na Rocinha?

Marcelo – O Óleo no Ponto é um projeto que nasceu para trazer sustentabilidade, geração de renda e educação ambiental para os moradores da Rocinha. Nós desenvolvemos uma linha de produtos completa que é comercializada dentro e fora da comunidade, e o bio sabão foi integrado aos nossos produtos.

Como a Rocinha não tem saneamento básico adequado, o esgoto desce para a praia de São Conrado, o que traz um grande malefício para a questão ambiental. Nós estamos colocando esse projeto para frente para que a Rocinha seja beneficiada com a limpeza das valas negras geradas pelo descarte incorreto do esgoto.

Em termos práticos, já é possível perceber a diferença?

Marcelo – Há alguns anos, quando chovia, a praia de São Conrado virava um valão negro. Quando nós, moradores da comunidade, entendemos que podíamos mudar esse cenário, eu criei o projeto Óleo no Ponto.

Como eu tenho outro projeto, o Família na Mesa, eu tive a oportunidade de estar presente nas entregas mensais de cestas básicas para mais de 300 pessoas. Eu aproveitava esse momento para fazer um trabalho de educação ambiental com essas famílias de forma a que elas entendessem a importância da participação de cada um para que mudássemos a rotina de descarte, não só do óleo de cozinha como de garrafas pet, sacos plásticos e outros materiais que caiam nas valas da Rocinha e causam impacto negativo na praia.

Com todo o trabalho de educação ambiental que estamos fazendo, hoje, quando chove, a praia de São Conrado fica um Caribe, mas esse ainda não é o ponto ideal. Os microrganismos, que estamos colocando no bio sabão que está sendo distribuído na comunidade, vão melhorar ainda mais as condições das valas da comunidade e da praia de São Conrado.

Vocês pretendem explorar economicamente o projeto do bio sabão?

Aranha – Um ponto importante é que não existe bala de prata na área ambiental. Esse é um problema complexo que não tem como ser resolvido com soluções simples. A ideia de usar o bio sabão é mais uma, pois, assim como o Marcelo disse, a educação ambiental é fundamental. O bio sabão vai ajudar na política de saneamento, mas não vai resolver tudo.

Agora, certamente, o bio sabão é uma grande mudança. Uma das coisas que foram detectadas na Rocinha foi que o cheiro das valas mudou, pois as substâncias que geravam o cheiro foram transformadas. É importante ressaltar que estamos falando sobre uma solução que está sendo desenvolvida, pois ela não está pronta.

Essa solução pode ser revolucionária, ter impacto ambiental e ser usada na política pública, mas, no caso do Pista, nós estamos preocupados no desenvolvimento econômico local. A produção do bio sabão para o Brasil, certamente, não será feita na Rocinha. Possivelmente, uma grande empresa nacional vai entrar para fazer a produção, mas ela vai ter que negociar o uso dessa experiência e desse conhecimento para fazer uma produção em escala.

Como vocês avaliam o impacto do bio sabão na estrutura de saneamento básico do país?

Aranha – Eu ainda não tenho como fazer essa avaliação, mas a Águas do Rio, que é responsável pela concessão da área onde está a Rocinha, já está acompanhando o projeto. Quando o bio sabão estiver sendo usado em maior escala, com certificação da Anvisa, a empresa vai poder dizer quanto o bio sabão melhorou a eficiência do processo de saneamento e quanto ele economizou de investimentos que precisariam ser feitos para a realização do mesmo trabalho.

Bio Sabão da Rocinha
O Bio Sabão da Rocinha.

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