O Projeto Stargate e suas implicações para o Brasil

Segundo Leonardo Tomazeli, o Brasil precisa criar a sua infra de servidores de dados e de treinamento de modelos de IA para ficar o menos exposto possível.

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Leonardo Tomazeli Duarte (foto divulgação)
Leonardo Tomazeli Duarte (foto divulgação)

Conversamos sobre o Projeto Stargate e suas implicações para o Brasil com Leonardo Tomazeli Duarte, professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Inteligência Artificial BI0S.

O Projeto Stargate, anunciado na semana passada pelo recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, consiste em uma joint venture formada pela OpenAI, Softbank, Oracle e MGX, que vai investir US$ 500 bilhões, financiados pelo governo dos Estados Unidos, na infraestrutura de Inteligência Artificial (IA) localizada no país.

Qual a sua avaliação sobre o Projeto Stargate?

O Stargate chamou a atenção pelo volume de recursos prometidos através de financiamento: US$ 500 bilhões em cinco anos. Isso é algo inédito em termos de IA e de planos públicos ou privados. Outro ponto é o fato do anúncio ter sido logo no começo da presidência de Trump, o que mostra que a IA será uma prioridade muito alta do seu governo.

Onde os Estados Unidos pretendem chegar com o Projeto Stargate?

Essa é uma corrida onde existem dois players muito fortes, Estados Unidos e China, e players secundários, que também são muito fortes, mas que estão distantes em termos de pesquisa, inovação e tecnologia. Como os Estados Unidos querem a liderança do setor, eles precisam ter as principais empresas, infraestruturas e cabeças, além dos dados. Os Estados Unidos já têm isso de certo modo, mas eles querem deslanchar e descolar de qualquer outro concorrente.

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Como você tem visto a junção dos interesses do governo americano e da iniciativa privada?

Esse é um ponto interessante, pois nós vimos o anúncio do Stargate e o anúncio da revogação do decreto executivo do Biden que tratava da regulação de IA. Cabe destacar que as big techs não haviam ficado 100% contentes com esse decreto devido às suas exigências e os ônus relacionados.

Esse alinhamento está muito forte, pois ele está dando o que os atores querem nesse momento: investimentos em infraestrutura e condições para que as big techs continuem sendo líderes com o mínimo de regulação. É por isso que nós vimos, por exemplo, Mark Zuckerberg, que antes era mais neutro, se alinhando com Trump, pois há uma convergência muito grande de interesses.

Fala-se muito da IA, mas pouco da importância estratégica dos servidores que vão processá-la, sendo que Trump deixou clara a determinação de fazer com que esses servidores fiquem nos Estados Unidos, e quem possuir os servidores terá as informações que serão processadas e poderá utilizá-las da forma como lhe convier, sem nem mesmo dar conhecimento aos detentores dessas informações. Qual a sua avaliação sobre essa situação?

Essa questão precisa ser olhada com cuidado por duas razões. A primeira é a estrutura, pois é muito importante ter os dados no seu território, já que não é desejável, em um período de instabilidade, ficar à mercê de uma situação onde os seus dados estão armazenados em outro país. A segunda é a estrutura de treinamento para grandes modelos, como ChatGPT e Gemini. Isso porque esses modelos são muito difíceis de serem treinados, já que eles exigem uma infraestrutura de datacenter.

No Brasil, nós temos muita dificuldade em ter essa infra, já que ela é muito cara, mas o país precisa ter uma infra que lhe possibilite manter um certo nível de soberania digital de IA e ficar de olho nos dados que estão sendo entregues para fora.

Se o Brasil decidisse montar essa estrutura, seria possível montá-la com equipamentos estrangeiros e mesmo assim manter independência?

Isso depende muito do país que vai fornecer os equipamentos. No caso dos Estados Unidos, quando a Embraer, por exemplo, compra equipamentos americanos para colocá-los nos seus aviões, ela fica submetida a uma legislação muito forte relacionada a compliance. Já com os países europeus é possível ter uma parceria estratégica, e não uma submissão para atender fortes requisitos legais. 

Veja o caso da Nvidia, que está no meio furacão entre a disputa entre Estados Unidos e China. A empresa tem falado, publicamente, que quer ajudar os países a terem soberania em infra de IA, o que deve deixar os americanos muito descontentes. Como a empresa não está submetida ao governo americano, ela pode, de certa maneira, ter essa pretensão. Agora, é difícil prever o que pode acontecer no mundo. Nós podemos precisar de uma GPU da Nvidia, mas uma cadeia de eventos pode nos colocar em uma posição antagônica com quem estiver dominando a empresa no momento. Isso pode nos dificultar, mas é difícil não trabalhar nesse meio termo, já que não temos condições de fazer a nossa infra do zero. Pelo contrário, nós estamos muito distantes disso.

Trump colocou a importância da IA em termos geopolíticos. Como você tem visto o Brasil nesse contexto? Como competir com o novo posicionamento dos Estados Unidos, a determinação de fazer com que os servidores fiquem em território americano e o consequente posicionamento de outros países?

O Brasil tem feito um trabalho consistente, como o Plano Brasileiro de IA e outras iniciativas, e possui pessoal qualificado e um parque industrial disposto a investir em IA, o que faz com que ele tenha os requisitos necessários para fazer um bom papel. Isso porque, com a intensificação da corrida feita pelo Trump, nós temos que intensificar o nosso passo.

O Brasil não tem condições de ser líder, mas pode pensar em setores específicos para atuar em IA. Isso porque essa corrida tecnológica tem um espectro tão amplo que vão existir nichos de atuação muito fortes que podem trazer resultados importantes para o país.

Por exemplo, atualmente, fala-se muito em IA e mudanças climáticas, IA e insegurança alimentar, IA e saúde, sendo que nós temos muita competência nesses setores. O SUS é um serviço muito interessante em termos de desenho de dados. É preciso intensificar essa discussão para que possamos entrar de cara nesses setores para fazermos o uso da tecnologia, criarmos mercados no país e nos posicionarmos do ponto de vista estratégico.

Outro exemplo. Eu tenho trabalhado muito com aspectos de IA responsável, de forma a que ela evite preconceito. Como o Brasil é um país com uma diversidade de raças e culturas muito grande, isso faz com que o país seja um ambiente muito interessante para criação de tecnologias que mitigam o racismo.

Com relação à infra, nós temos uma matriz energética, com pouco potencial danoso de pegada de carbono, bem melhor que as matrizes de muitos países que estão montando datacenters. Essa vantagem competitiva pode ser utilizada, tanto em termos econômicos, quanto em termos estratégicos, para mantermos, pelo menos, uma parte dos dados no Brasil. Isso porque as declarações de Trump foram mais um sinal de que é importante manter uma certa soberania de infra e dados.

Como conversamos, nós não vamos conseguir uma soberania de 100%, mas o Brasil tem que ter sabedoria para criar uma infra de servidores de dados e de treinamento de modelos para ficar o menos exposto possível.

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