O Rio passa por aqui

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Sublinhar a importância urbanística da Zona Central para a vida das metrópoles é um truísmo que no Rio, aparentemente, tentamos cancelar.

Historicamente, houve uma displicência crescente em relação ao Centro do Rio. Sem a preocupação de hierarquizar os vetores explicativos dessa desatenção, seria importante destacar que o Centro foi verticalizado pré-generalização do automóvel.

Nem as calhas das ruas, nem os prédios de escritórios foram pensados para albergar os autos de seus ocupantes. A Área Central de Negócios (ACN) do Rio é um múltiplo da área da City londrina.

Houve uma arrogância estúpida em delimitar legalmente uma imensa ACN, onde não seria permitida a construção de unidades residenciais. A expulsão do Centro das famílias residentes deu a ele um tom de área abandonada quando o expediente de trabalho se encerra, nos feriados e nos fins de semana.

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Institucionalmente, foi desertificada a vida urbana da área central. Sem novas residências na área gigantesca, muitos prédios literalmente apodreceram, se transformando em ruínas assustadoras e que aceleram o processo de repulsão do lugar. Finalmente, São Paulo atraiu as sedes dos bancos e das organizações financeiras privadas, e Brasília se converteu na capitania da alta burocracia.

As duas migrações esvaziaram o Centro do Rio, sendo que a manutenção de uma imensa propriedade imobiliária subutilizada pelo Governo Federal é um elemento de atrofia urbana. Basta observar a perda de atividade derivada para a região do Castelo pelos ex-ministérios da Fazenda, do Trabalho e da Educação e Cultura, hoje claramente subutilizados.

Tudo isso tornou o Centro do Rio pouco atraente para a especulação imobiliária. Muitas de suas regiões literalmente se erodiram ou degradaram. A exceção é formada pelo conjunto da Gamboa, Santo Cristo, Saúde e Providência, polígono que se constituiu numa ilha especial no panorama carioca.

Quando o porto de um Rio ainda colonial se deslocou da região da Praça XV em direção aos sacos de São Francisco da Prainha, da Gamboa, de São Lourenço etc., cada saco consistia de um pequeno recorte à beira dos morros, onde uma “mini-praia” permitia instalar um trapiche e um ancoradouro protegido, com zona de carenagem para recuperação dos cascos de madeira.

Sendo o lugar ideal para guarda e proteção do navio a vela, o saco se tornou ponto inicial da logística de abastecimento da cidade colonial e de exportações engendradas na região polarizada pelo Rio. Obviamente, as encostas foram sendo ocupadas com residências e instalações comerciais que albergavam uma população direta e indiretamente dependente do Porto.

O polígono recebeu force estímulo quando, no trânsito para o navio a vapor, se fez um imenso aterro, inicialmente com o desmonte do Morro do Senado. Construiu-se vasta extensão plana, cuja linha de atracação corresponde à Av. Rodrigues Alves, e cujos quarteirões internos foram povoados por grandes armazéns, frigoríficos e instalações industriais. Na vanguarda de seu tempo, o novo porto dispunha de bons acessos para composições ferroviárias e transportes motorizados.

Nas encostas, houve pouca transformação imobiliário-arquitetônica. Conjuntos do Século XVIII foram preservados, a exemplo do hoje revitalizado Morro da Conceição. Particularmente interessante e pouco pesquisada foi a organização da população residente nas encostas. Com o risco de toda simplificação, diria que é um setor popular bem informado sobre as coisas do mundo, tal como acontece com qualquer população de beira de cais e que, ao mesmo tempo, combinava forte adesão a trabalhar próximo ao mercado de trabalho.

Nele, predominou a estiva, que tem uma peculiar organização com uma face gremial – barreiras à entrada livre na atividade – e uma marcada presença associativa para a vida profissional de seus membros. Como é sabido, o povo da estiva não é assalariado de nenhuma empresa. Recebe por tarefa, segundo as signações feitas pelo próprio sindicato.

Os trabalhadores da beira do cais foram, no precário mercado de trabalho brasileiro, vanguarda consistente da organização sindical e conviviam, por razões profissionais, no cotidiano de suas organizações.

Sabe-se também que na antiga estiva do Rio de Janeiro, houve uma combinação de estivadores livres migrados de Salvador, Bahia, com portugueses. A convivência de brasileiros, afro-descendentes, com lusitanos foi intensa naquele polígono, onde ambos vetores estiveram juntos e presentes no início do samba organizado.

Por falta de várzea não surgiu uma organização de futebol, mas a vida social dos bairros da encosta deu sustentação a uma longa cadeia de botequins, cujo polo principal se radicou na Praça Mauá e suas cercanias.

O baixo dinamismo do Porto do Rio, nas últimas décadas, não produziu uma desorganização nos bairros das encostas. Houve, certamente, um empobrecimento de sua população. Porém, não foi realizado nenhum êxodo nem expulsão das famílias em rotação demográfica.

Neste sentido, os bairros da encosta são um lugar de memória e um laboratório extremamente especial onde um conjunto de famílias de baixa renda tem forte aderência sentimental ao lugar, habitado por seus ascendentes há mais de século.

O Monitor Mercantil começou seu quase século de existência difundindo informações sobre a vida marítima portuária. Instalado hoje na Rua Marcílio Dias, logo atrás do antigo Ministério da Guerra, organiza e patrocina uma pequena grande iniciativa para pôr sob luz este polígono que contém alta densidade histórica e importante potencialidade para o futuro urbano carioca: “O Rio Passa Por Aqui”, projeto concebido por Laura Tavares e Guto Nobre.

Ela é uma arquiteta possuída pela dupla preocupação de conservar o patrimônio arquitetônico e melhorar as condições da vida social do lugar popular. Ele, comunicólogo, tem as mesmas paixões de Laura e é especialista em vídeo. Marcos de Oliveira, diretor do jornal, colocou sua empresa de 95 anos a serviço deste projeto, cuja primeira etapa consiste no mapeamento de 95 pontos do polígono que tenham interesse arquitetônico urbanístico e/ou histórico e/ou afetivo/emocional.

Prédios, praças, organizações, locais de vizinhança e membros da comunidade serão os fragmentos colocados sob a luz da mídia e da valorização da auto-estima do povo do polígono. O jornal divulgará o que for pesquisado e registrado, pelos interlocutores locais, sobre cada um daqueles fragmentos. Os principais locais serão festejados com uma pequena solenidade, para o qual será convidada a comunidade e será sublinhada a razão de escolha daquele fragmento.

Os iniciadores esperam que “O Rio Passa Por Aqui” venha a inspirar jovens acadêmicos a montarem teses sob os aspectos daquele polígono, que algum escritor aperfeiçoe a crônica do lugar, que haja patrocínio de boas empresas, que a comunidade de artistas do Rio perceba imensa potencialidade da encosta como uma Mouraria tropical.

 

Carlos Lessa

Economista, professor emérito da UFRJ.

Texto publicado em 27 de maio de 2007, abertura do projeto “O Rio Passa Por Aqui”. Mantida a grafia da época.

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