A pandemia de COVID-19 em 2020 afetou gravemente a saúde da população e diversos setores da economia, sendo o setor de eventos particularmente impactado pelas medidas sanitárias, o que resultou em significativas consequências econômicas.
Para ajudar na recuperação dessas empresas, foi criado o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (“Perse”) pela Lei 14.148/2021. Esse programa busca mitigar as perdas financeiras causadas pela interrupção das atividades presenciais, oferecendo alívio fiscal e permitindo que essas empresas retomem suas atividades de forma sustentável.
A lei concedeu redução a 0% nas alíquotas dos tributos incidentes sobre o resultado auferido pelas pessoas jurídicas do setor de eventos, incluindo PIS/Pasep, Cofins, IRPJ e CSL, por um período de 60 meses.
A medida beneficiou empresas que realizam ou comercializam congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios, espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas, casas de espetáculos, hotelaria em geral, administração de salas de exibição cinematográfica e prestação de serviços turísticos.
Em maio de 2023, foi promulgada a Lei 14.592/2023, derivada da MP 1.147/22, que estabeleceu restrições ao programa. A lei passou a permitir que apenas 44 atividades econômicas específicas, listadas de acordo com a CNAE e vinculadas ao setor de eventos, pudessem usufruir de seus benefícios.
Além de limitar o benefício a 44 CNAEs, a lei determinou que apenas pessoas jurídicas que cumprissem certos requisitos poderiam utilizá-lo. Esses requisitos incluem: (i) ter uma inscrição regular no Cadastur desde 18.03.2022 e (ii) comprovar que, em 18.03.2022, o contribuinte já possuía o CNAE principal ou a atividade preponderante listada na Lei do Perse.
No entanto, após o término da pandemia e devido ao impacto bilionário previsto no orçamento anual por conta dos benefícios concedidos, foi publicada a MP 1.202/23, que revogou o Perse a partir de 1º.04.2024, exceto pela isenção do IRPJ, que seria revogada a partir de 2025.
Após reações contrárias do setor de eventos e do Congresso Nacional, o Governo Federal publicou a Lei 14.859/24, que anulou a revogação do Perse prevista na MP 1.202/2023. Porém, essa nova lei reduziu o número de atividades beneficiadas de 44 para 30 e limitou o benefício a um total de R$ 15 bilhões.
Além disso, é importante notar que a Receita Federal (“RFB”) editou várias normas infralegais que impuseram exigências adicionais não previstas na legislação para que as empresas pudessem usufruir dos benefícios do Perse.
Exemplos dessas normas incluem as Portarias ME 7.163/2021 e 11.266/2022, bem como as Instruções Normativas RFB 2.114/2022 e 2.195/2024.
Entre os requisitos impostos pelas normas infralegais, destaca-se a determinação de que o benefício não se aplique às receitas provenientes de atividades econômicas não incluídas nos CNAEs autorizados, nem às receitas financeiras ou resultados não operacionais. Isso obriga os contribuintes a realizarem uma segregação contábil das receitas de suas atividades para identificar quais são elegíveis para os benefícios do Perse.
Essa breve contextualização sobre o surgimento e as mudanças na legislação e nas normas infralegais relacionadas ao Perse mostra que, apesar de o programa ter poucos anos de existência, ele passou por muitas alterações. Essas mudanças aumentaram progressivamente as restrições e os requisitos para que os contribuintes pudessem usufruir de seus benefícios.
Essa instabilidade normativa do Perse acarreta inevitável insegurança jurídica, exigindo absoluta atenção dos contribuintes. Frequentemente, as empresas precisam se atualizar e ajustar suas práticas para cumprir as novas exigências, além de revisar o que foi praticado em exercícios anteriores, quando as restrições eram menores, o que resulta em complicações e incertezas no aproveitamento dos benefícios oferecidos pelo programa.
Nesse cenário, muitos contribuintes, sem intenção, acabaram aplicando os benefícios do Perse a receitas que posteriormente foram excluídas das reduções tributárias devido às alterações normativas. Isso resulta em inevitável risco de questionamentos por parte das autoridades fiscais da RFB, que podem culminar na lavratura de autuações.
Eventual autuação lavrada pela RFB poderia ser fundamentada nos seguintes argumentos:
- ● A utilização dos benefícios fiscais do Perse, especialmente a redução a zero das alíquotas de PIS, Cofins, IRPJ e CSL, deve seguir estritamente os critérios e atividades econômicas especificadas nas normas legais e infralegais, como as Leis 14.148/2021, 14.592/2023, 14.859/2024, e as Portarias ME 7.163/2021 e 11.266/2022, além das Instruções Normativas RFB 2.114/2022 e 2.195/2024.
- ● A RFB pode interpretar que as receitas da empresa não se enquadram nos benefícios do Perse se não estiverem especificadas nos CNAEs listados na Lei 14.859/2024 (art. 1º, que altera o art. 4º, §7º da Lei 14.148/2021), caracterizando o uso indevido desses benefícios. Apenas pessoas jurídicas do setor de eventos que, em 18.03.2022, possuíam o CNAE principal ou atividade preponderante listados na lei teriam direito à redução de alíquota.
- ● A falta de segregação contábil adequada das receitas da empresa pode ser outro motivo de autuação. Se a empresa não demonstrar claramente a separação entre receitas de locação e outras receitas operacionais, a RFB pode argumentar que não foram cumpridas as exigências das normas infralegais.
Uma autuação fiscal resultaria na cobrança dos tributos não pagos, acrescidos de multas e juros moratórios. Essas autuações não apenas representam um passivo financeiro significativo, mas também podem causar complicações operacionais e jurídicas para a empresa, incluindo a necessidade de defesa administrativa e judicial.
Além disso, como os benefícios estão vinculados a diversos tributos, há a possibilidade de múltiplas autuações, cada uma com as multas e juros respectivos. Isso pode resultar em impacto financeiro e obrigacional significativo.
A RFB está focada em fiscalizar os beneficiários do Perse. Em 18.06.2024, ela publicou a IN 2.198/2024, que exige a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (“Dirbi”).
A Dirbi deve ser apresentada mensalmente por todas as pessoas jurídicas de direito privado e inclui programas como o Perse. Essa medida tem como objetivo aumentar a transparência e a fiscalização dos benefícios fiscais.
Por outro lado, a RFB tornou possível que os contribuintes que se beneficiaram do Perse sem atender a todos os requisitos legais e infralegais façam a sua autorregularização incentivada, com descontos substanciais de juros e multas.
Essa autorregularização incentivada, instituída pela Lei 14.740/2023, é a principal opção disponível aos contribuintes que desejem mitigar os riscos relacionados à utilização indevida dos benefícios do Perse.
O artigo 2º da Lei 14.740/2023 permite que o contribuinte adira à autorregularização em até 90 dias após a regulamentação da lei. A adesão pode ser feita mediante a confissão e pagamento total dos tributos confessados, com exclusão de 100% das multas de mora e de ofício.
O artigo 3º prevê que, se o contribuinte pagar pelo menos 50% do débito à vista e parcelar o restante em até 48 prestações mensais, os juros moratórios serão 100% eliminados. Para o pagamento à vista, é permitido usar créditos decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSL.
A Lei 14.859/2024, que estabeleceu as diretrizes mais recentes do Perse, prevê em seu artigo 2º que, até 90 dias após sua regulamentação, os contribuintes que utilizaram indevidamente os benefícios do Perse poderão aderir à autorregularização prevista na Lei 14.740/2023.
Como a regulamentação da Lei 14.859/2024 foi feita pela IN 2.195/2024, publicada no Diário Oficial da União (“DOU”) no dia 24.05.2024, o prazo para adesão à autorregularização incentivada do Perse se encerra no dia 22.08.2024.
Portanto, as primeiras semanas de agosto configuram um período crucial para que os contribuintes que se beneficiaram do Perse em desacordo com as normas legais e infralegais atuais revisem sua contabilidade e documentos fiscais relacionados ao programa, e avaliem o melhor caminho a seguir.
De um lado, a RFB demonstra que estará focada em fiscalizar e eventualmente autuar as empresas que utilizaram os benefícios do programa sem cumprir os requisitos e restrições, que se tornaram mais rigorosos nos últimos anos.
Do outro lado, os contribuintes têm à sua disposição três opções: (i) assumir o risco de uma fiscalização indesejada; (ii) ajuizar ação judicial para reconhecer seu direito aos benefícios do programa; ou (iii) reduzir os riscos aderindo à autorregularização incentivada, que permite pagar os tributos de forma parcelada, sem juros e multas, além de utilizar prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSL.
Para tomar uma decisão mais segura, recomenda-se que, até 22.08.2024, prazo final para adesão à autorregularização incentivada do Perse, os contribuintes avaliem cuidadosamente quais de suas receitas foram vinculadas ao programa. É importante verificar se essas receitas estão comprovadamente associadas a um dos 30 CNAEs listados na Lei 14.859/2024, bem como se é viável cumprir todas as obrigações impostas pelas normas infralegais da RFB.
Jonas Ferreira é Advogado Tributarista no Brigagão, Duque Estrada Advogados, especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), especialista em Direito Tributário Internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), MBA em Normas Internacionais de Contabilidade pela FIPECAFI