O STF e a terceirização de atividade-fim

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O escritor estadunidense H. P. Lovecraft citou uma frase que até hoje é muito utilizada, que diz: “A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido.” E nós temos muito medo do que não conhecemos. Frases como “trocar o certo pelo incerto” são ditas sem que o interlocutor se dê conta de que o que demonstra é o medo do que não conhece.

Naturalmente. Quem não conhece o que vem a seguir está sujeito às armadilhas do futuro. O grande problema dos brasileiros, no entanto, é que nós procuramos pouco conhecer o que virá. Não temos o interesse de buscar conhecimento em áreas que interferem diretamente em nossas vidas. E não quero, aqui, impor uma condição nacionalista, não quero me colocar na posição de alguém com síndrome do vira-latas.

Mas essa falta de interesse vem de gerações, alimentada pelo projeto de desmanche da nossa educação básica. Foi o próprio ministro da Educação que recitou em uma entrevista coletiva que o Ensino Médio no Brasil faliu.

Pois bem. Esclarecido esse ponto, continuo. Muito recentemente, o Supremo sepultou de uma vez por todas quaisquer dúvidas sobre a constitucionalidade ou não da terceirização, julgando, concomitantemente, a ADPF 324 e o RE 958252. A partir de tal julgamento, partiram-se diversas ópticas, de diversos pontos distintos do conhecimento, desde a matemática até o direito, passando por filosofia e até mesmo os químicos, no sentido quase uníssono de que a decisão do STF foi a pior possível para o trabalhador. Que foi um retrocesso. Que a escravidão está retornando. Que o apocalipse se aproxima etc.

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Mas uma dessas afirmações, menos apocalíptica, me chamou a atenção: a de que não haverá mais concursos públicos no Brasil. Voltarei em breve a essa afirmação, mas antes tenho que discorrer rapidamente sobre o fenômeno da terceirização.

Terceirização é, necessariamente, uma óptica destinada à Administração. Nós, do Direito, temos o consolidado hábito de nos meter em todas as áreas da ciência. E com a terceirização não foi diferente. Adotamos para nós os conceitos e firmamos as decisões: acertadas ou não.

No Brasil, esse fenômeno é muito recente. Consolidou-se na década de 1990 e consiste necessariamente na transferência de parte de sua produção para um, ops, terceiro, mediante pagamento. Sob o prisma exclusivamente da administração, a terceirização otimiza a cadeia produtiva, reduzindo custos, riscos e aumentando a competitividade. Dentre outros aspectos, também, que não me dou ao direito de adentrar.

Todavia, a terceirização envolve trabalhadores. Pessoas cujo único bem que tem para dispor é sua mão de obra. E é aí que o Direito entra. Ele não pode deixar os trabalhadores totalmente desprotegidos dentro dessa cadeia produtiva que o capitalismo torna extremamente acirrada.

Entretanto, terceirizar não é sinônimo de precarizar. E essa afirmação vem do desconhecimento e o desconhecido gera o medo. É muito importante conhecer a terceirização, saber o que ela é, para que serve e como harmonizá-la com o valor social do trabalho.

Um dos votos, no julgamento mencionado, mais chamativos foi do ministro Gilmar Mendes, que declarou ter inveja de quem consegue discernir atividade-fim de atividade-meio. E, confesso que, apesar de ser merecedor de duras críticas, Mendes acertou nesse ponto.

O TST, na Súmula 331, impunha a proibição de terceirizar atividade-fim. Mas o próprio TST não dispõe o que é atividade-fim. Seria aquela essencial para o produto final? Mas quem decidiria o que é essencial para o produto final, não seria a própria produtora?

A Justiça do Trabalho passou a julgar de qualquer modo qualquer ação que versasse sobre atividade-fim e, desde então, a atividade de cobrança por teleatendimento passou a ser atividade-fim de banco, contabilidade passou a ser atividade-fim de escritórios de advocacia, transporte de produtos atividade-fim de comércio varejista, motorista passou a ser essencial para empresa locadora de veículos etc. E, acreditem, nós, advogados na esfera trabalhista, estamos fartos de tentar orientar clientes sobre qual é a atividade-fim deles para, ao final, um juiz dizer que é outra.

O STF não excluiu a responsabilidade subsidiária, aquela que garante ao trabalhador lesado o recebimento de seus direitos, após tentativas de receber do empregador principal. Por isso, sobre tal prisma, nada será discutido.

Também o STF não falou sobre a Reforma Trabalhista, que já tinha, em novembro do ano passado, enterrado a discussão sobre poder ou não terceirizar atividade-fim. O STF julgou os casos em andamento.

E é exatamente aí que as pessoas se desesperam sem qualquer motivo. Amigos, já é possível terceirizar atividade-fim há, pelo menos, nove meses e meio. Não vai ser essa decisão do STF que vai transformar o Brasil de 2018 em Brasil de 1880.

1) Porque direito trabalhista é direito trabalhista. Se for violado pelo terceiro, a Justiça do Trabalho deve ser acionada. E, se precarizada a relação, tanto o executivo quanto o judiciário devem agir.

2) Porque não há um estudo sobre o empregado terceirizado receber menos que um empregado contratado diretamente. E não há estudo mesmo. Pois os estudos realizados comparam os terceirizados de uma função “x” com os empregados de uma função “y”. Portanto, evidente que os dados serão distintos.

3) Porque a fraude continuaria gerando vínculo entre o terceirizado com o tomador. E a fraude se caracteriza mediante a subordinação direta e pessoalidade com o tomador. Ou seja, também não foi isso que foi extinto pelo STF.

Em quarta observação, aponto que há robusta jurisprudência e, agora, legislação específica apontando que o terceirizado tem os mesmos direitos do empregado direto, o que não justifica, portanto, o temor de precarização automática diante da terceirização.

Voltando à afirmação mais chamativa, ao menos para mim, de que os concursos públicos serão extintos no Brasil. Errado. Para cargo público que não seja em comissão, é necessária a aprovação em concurso de provas e títulos. Então o discurso de que um escrivão de polícia será demitido para dar lugar a um terceirizado demonstra falta de conhecimento do artigo 37, II, da Constituição Federal.

E, para atividades que não necessitam de concurso público, já há a terceirização há anos, como ocorre com os garçons que servem café e chá aos juízes do trabalho, por exemplo. São terceirizados sob o discurso protetivo do Judiciário trabalhista há anos sem ninguém clamar por eles às portas do Judiciário.

E vou além. No próprio TST, da recepção até a primeira secretaria, só encontramos terceirizados. Lá só se recebem processos digitais, e a empresa responsável pela digitalização dos processos é terceirizada. Se todos os processos no TST são digitais, podemos dizer que a digitalização é atividade essencial para o julgamento dos autos?

Concluo, então, que as duras críticas direcionadas ao julgamento pelo STF padecem de interesse em conhecer, a fundo, de forma a desmitificar o instituto da terceirização por parte dos mais duros críticos. E, ao não conhecer, ao deixar voluntariamente a terceirização sob o manto do sobrenatural, agraciamos H. P. Lovecraft em seu túmulo, fazendo jus à sua célebre frase.

 

 

Rodrigo Santino

Sócio do escritório Juveniz Jr. Rolim Ferraz Advogados Associados.

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