O velho normal europeu

Na nova guerra europeia, a Ucrânia é um capítulo de algo mais amplo Por Fabio Vianna

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Não parece plausível que o Ocidente negocie com uma Rússia fortalecida.

“Em tempo de paz e de bem-estar, as cidades e os particulares demonstram sentimentos melhores, porque não têm de descer a necessidades tão baixas. A guerra, porém, que os priva da aquisição do que é necessário no dia a dia, é um mestre severo, e põe o ódio de muitos a igual nível das circunstâncias adversas em que se encontram… Audácia já irracional passou a ser considerada coragem fiel; hesitação prudente, refinada cobardia; moderação é considerada como premeditado jogo sem coragem viril; ter visão global das coisas correspondia a ser incompetente em tudo. Avançar freneticamente e de cabeça era considerado digno de um verdadeiro homem;… O homem radical é sempre de confiança, o que se lhe opõe é suspeito…” Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, l/III, cap. 82.

Tendo como objetivo central redesenhar as fronteiras europeias após a derrota de Bonaparte, o Congresso de Viena de 1815, dentre outras delimitações que buscariam reequilibrar a balança de poder europeia para os parâmetros anteriores ao expansionismo francês, alçou a Rússia do Czar Alexandre I definitivamente ao centro do caleidoscópio geopolítico europeu com a consolidação das conquistas no Mar Báltico, no Mar Negro, mas, principalmente, em razão do avanço sem precedentes ao coração da Europa através da incorporação do Ducado de Varsóvia – criado justamente por Napoleão Bonaparte num momento anterior.

As tensões contemporâneas

Passados mais de dois séculos, em discurso recente, a primeira-ministra estoniana, Kaja Kallas, instiga a Europa a enviar armas e tudo o quanto mais for necessário para a Ucrânia seguir viva na guerra contra a Rússia: “A Ucrânia deve vencer a guerra, e a Rússia deve compreender que perdeu”, disse ela em tom confiante e desafiador.

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Assim como a atual Polônia, os países bálticos têm sido os mais fervorosos incentivadores do aprofundamento da guerra em território ucraniano, comportamento que inevitavelmente precisa ser observado pela ótica da longa duração histórica, pois o que estaria em jogo, segundo o olhar desses países, é uma Rússia como ameaça existencial direta e que agora estaria em busca de reescrever os acordos de paz celebrados no final da Guerra Fria.

Do ponto de vista russo, por outro lado, trata-se de uma questão existencial restaurar o controle sobre sua zona-tampão primordial, nomeadamente, a Ucrânia. Neste contexto, algo pouco comentado, mas de importância central nesta guerra, é o ressentimento russo em relação às perdas territoriais e ao colapso econômico-social com o fim da URSS. Ao longo da história do sistema interestatal europeu, sempre que uma potência derrotada se viu humilhada pelas perdas ocasionadas por acordos de paz leoninos posteriores à guerra, em algum momento ela se levanta e busca uma revanche.

Voltando no tempo, a chamada paz não punitiva, inclusive, teria sido crucial para a reinserção de uma França derrotada nas guerras napoleônicas através de tratados de paz que evitaram punições territoriais que eventualmente pudessem, no futuro, possibilitar revisionismos por parte da mesma França.

Paradoxalmente, no entanto, o que estamos presenciando na Europa é a quebra de um paradigma histórico, ou o retorno de algo que estava cristalizado durante décadas, mas se quebrou. Algo se quebrou.

Durante séculos, as unidades político-territoriais da Europa sempre viveram e se alimentaram do jogo das guerras e da pressão competitiva decorrente disso. Com o estilhaçar da ordem internacional vigente até outro dia, é natural que a própria pressão competitiva se agrave diante da ausência dos freios e contrapesos decorrentes de um acordo de paz: o acordo de paz estabelecido no pós-Guerra Fria foi oficialmente quebrado a partir do momento em que a Rússia decidiu invadir a Ucrânia.

Não por acaso, o presidente francês Emmanuel Macron tem sido um dos mais ardorosos entusiastas de dobrar nas apostas de envio de armas e eventualmente até soldados ao território ucraniano.

Todas as regras estabelecidas, portanto, nos acordos de paz celebrados após o fim da última grande guerra europeia estão sendo claramente contestadas não somente pela Rússia, mas por outras potências do Velho Continente, como é o caso da França, denotando uma macabra memória histórica que, para ironia do destino, envolve os mesmos atores que protagonizaram a velha Paz de Viena de 1815. Neste sentido, não é um mero acaso Rússia e França estarem protagonizando a disputa contemporânea intraeuropeia.

Parece um absurdo dizer isto, mas sob a ótica da longa duração braudeliana, a atual postura belicista de Macron não representaria de maneira alguma uma opção meramente conjuntural, mas uma retomada estratégica da mesma França que, após a derrota na Batalha de Waterloo, foi subjugada pelo Congresso de Viena e perdeu o protagonismo europeu que foi sendo acumulado desde Carlos VIII, passando pelo expansionismo de Luís XIV, até a derradeira derrota de Bonaparte.

A realidade é que a França vê na guerra em território ucraniano a oportunidade histórica de retomar o protagonismo estratégico de quem em 1812 ocupou a tarefa de ser a primeira potência ocidental a tentar enquadrar a Rússia, que desde sua inserção no tabuleiro geopolítico da Europa – através das Guerras do Norte – sempre foi vista como uma ameaça existencial para o Ocidente, em razão de seu expressivo tamanho territorial.

O ressurgimento do expansionismo russo

No mesmo sentido, mas com sinal trocado, a Rússia de Putin parece cada vez mais emular a Rússia czarista de Alexandre I, quando, aproveitando a derrocada de Napoleão, buscou consolidar seu expansionismo territorial em direção ao Oeste, assim como restabelecer a influência ideológica russa através da restauração de dogmas do antigo regime.

A Rússia do Czar Alexandre I, nesta perspectiva, se colocava como antagônica aos ideais republicanos e iluministas representados pela França e assim buscava reinserir sua influência na Europa a partir de uma aliança estratégica com suas antigas aliadas Áustria e Prússia.

Curiosamente, a Rússia de Putin vê na Alemanha atual – antiga Prússia – um de seus alvos preferenciais da guerra desinformacional que vem levando à Europa as “tempestades nunca acalmadas” da agitação social e da ascensão de grupos e partidos de extrema-direita – muitos, inclusive, não coincidentemente simpáticos à Rússia.

Algo se quebrou, e para além das disputas de narrativas ideológicas onde a Rússia de Putin, tal qual a de Alexandre I, utiliza uma retórica que emula um retorno a um tradicionalismo do passado, a questão maior a respeito de quem irá ganhar a guerra em território ucraniano deve ser observada por outro viés: a Rússia já ganhou a guerra em território ucraniano.

O mais importante é compreender que a guerra não mais se resume ao conflito em território ucraniano, o que estamos presenciando é uma nova guerra europeia onde a Ucrânia é apenas um capítulo de algo mais amplo.

Houve a quebra de um paradigma que estava cristalizado desde o fim da Segunda Guerra Mundial; atravessou-se um rubicão em que o retorno ao estágio anterior de uma Ucrânia neutra – uma zona-tampão entre dois mundos antagônicos – não é mais possível, e não é mais possível porque existe um modus operandi histórico do jogo das guerras inventado pelos europeus, um jogo das guerras que estava adormecido durante toda a Guerra Fria, mas agora voltou ao seu velho normal, onde a mera aceitação da derrota é a própria capitulação.

Nesta mesma linha de raciocínio, não parece plausível que os ocidentais aceitem negociar a paz com uma Rússia vitoriosa e fortalecida. Em termos realistas, seria como assumir que um poder expansivo vindo do leste conseguiu impor-se sobre a zona-tampão que outrora havia sido conquistada pelo poder expansivo ocidental. A lógica expansionista do sistema interestatal inventado pelos europeus precisaria ser abandonada por seus próprios inventores, o que para eles seria uma absoluta capitulação.

Não por acaso, as três grandes potências da Europa, nomeadamente Reino Unido, França e Alemanha, estão a dobrar a aposta – neste momento até mais que os Estados Unidos, que provavelmente daqui para frente irão manter um papel distanciado, o que obrigará os europeus a assumir o destino de sua segurança estratégica. Sozinhos.

Fabio Reis Vianna é mestre em Relações Internacionais e Estudos Europeus pela Universidade de Évora, Portugal, professor e analista político internacional.

Referências: METRI, M. As Guerras Napoleônicas e a “Paz de Viena” de 1815. In: J. L. Fiori (Org.). Sobre a Paz. Editora Vozes, 2021. P. 231-267.

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