Obrigado, professor Severino Cabral

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Marcos de Oliveira, Inácio Carvalho e Severino Cabral (foto arquivo pessoal)
Marcos de Oliveira, Inácio Carvalho e Severino Cabral (foto arquivo pessoal)

Nas primeiras horas da madrugada (ainda 1 da tarde do dia 20 no Brasil), recebi de um grupo de amigos a notícia de que o professor Severino Cabral havia nos deixado. Natural de Vitória, no Espírito Santo, dedicou longos anos da sua vida ao estudo da China. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou os últimos anos de sua vida como professor na Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro. Seu legado intelectual certamente será continuado por muitos dos seus admiradores.

Poucos no Brasil conheciam a política chinesa como o professor Severino. De forma humilde e sem arroubos, trabalhou incansavelmente para o fortalecimento dessas relações. Por exemplo, graças aos seus esforços, o livro A Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, foi traduzido para o chinês.

Também trabalhou incansavelmente para que nesse diálogo entre Brasil e China considerássemos a Região Administrativa de Macau. Nessa perspectiva, organizou e participou de diversos seminários acadêmicos em Macau, Pequim e no Rio de Janeiro, sempre em colaboração com o professor Wang, ex-secretário-geral do Fórum de Macau e pesquisador da Universidade de Economia e Negócios de Pequim (Uibe), e com os acadêmicos Jorge Rangel e José Lobo do Amaral, do Instituto Internacional de Macau (IIM), entre outros. Aliás, em 2017, um desses seminários foi realizado na Universidade de Estudos internacionais de Zhejiang, meu local de trabalho.

Em 1994, depois de retornar de uma missão acadêmica à Ásia organizada pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE), em carta endereçada ao chefe do Departamento de Ásia e Oceania do MRE, ministro Sérgio Barbosa Serra, o professor Severino fez as seguintes observações: “O conhecimento da China e da Ásia é um desafio maior para o nosso mundo universitário não só por conta da diferença cultural e linguística como pela enorme distância geográfica, que impede a troca e a circulação rotineira de informações. O que agrava as distorções e as carências da análise prospectiva sobre o mundo asiático, reconhecido muitas vezes através do prisma enviesado de percepções não coincidentes como o ângulo de observação mais adequado aos interesses (de uma) maior inserção brasileira na cena internacional (China, uma visão brasileira. Instituto Internacional de Macau, 2013). Aliás, essa construção de um olhar brasileiro para a Ásia, em especial para a China, era uma constante nas suas reflexões e ensinamentos.

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Pessoalmente, assim que comecei meus estudos acadêmicos sobre a China, ainda no final dos anos 1990, passei a ter contato com o professor Severino. No início dos anos 2000, juntos com dois professores chineses da Universidade de São Paulo, Chen e David, o visitamos no Rio de Janeiro. Desde então, nossa amizade foi crescendo, e suas lições, intensificadas. Já aqui na China, nosso primeiro encontro foi em Pequim, quando eu então trabalhava na Rádio Internacional.

Em 2015 mudei-me para Hangzhou, onde o recebi em duas oportunidades. Em uma dessas, ficou comigo quatro dias. Foram horas e horas de conversa, em casa e nas ruas da cidade. Felizmente, com a sua permissão, gravei várias horas desses nossos encontros, e certamente muitas de suas lições continuarão a ecoar por várias gerações.

Amigável, elogiava nosso progresso intelectual, como nos estimulando a aprofundarmos mais ainda nossos estudos. E, também, sutilmente nos alertava sobre possíveis incongruências nas ideias ou nas análises de determinadas realidades geopolíticas.

Nosso último encontro presencial foi em 2018, quando o visitei na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro. Nossa última mensagem foi no dia 2 de julho, quando ela mandou uma mensagem elogiando um pequeno artigo que escrevi sobre as três principais conquistas do Partido Comunista da China em seus 100 anos de existência. Dizia ele: “Meu amigo, quero parabenizá-lo pelas declarações expressas sobre o acontecimento da fundação do PCCh”. E assim foi o meu agradecimento: “Obrigado, meu amigo e professor Severino. Você bem sabe que parte das minhas reflexões (sobre a China) são resultados dos seus ensinamentos…”

Agora que o meu coração está muito sentido, e os olhos ainda insistem em lacrimejar, quero apenas dizer obrigado, professor Severino Cabral, por nos apontar o caminho para os estudos de China com uma perspectiva bem brasileira. Suas lições e exemplos continuarão vivos na nossa memória e nos nossos esforços para que, com base em conhecimentos objetivos, as relações entre o Brasil e a China possam caminhar em bases sólidas.

 

José Medeiros é doutor em Ciência Política e professor na Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang – Hangzhou, China. Artigo publicado originalmente no portal Vermelho.

Na foto, Marcos de Oliveira, Inácio Carvalho e Severino Cabral, na China (arquivo pessoal)

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