Ortodoxos e heterodoxos

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A missa do domingo passado foi celebrada por um sacerdote católico, mas o sermão foi feito por pastor da Igreja Metodista. Era o dia da Unidade Cristã. A missa foi emocionante para todos.
Depois de 400 anos de disputa, tantas guerras e fogueiras, padre e pastor se entendiam. Talvez não se entendam de fato sobre todas as coisas, mas deixaram de lado questões fundamentais, que nunca serão respondidas.
A história das religiões é a história das seitas que se transformam em religiões, que são contestadas por novas seitas, que se transformam em novas religiões. Um movimento sem fim entre fundamentalismo e compromisso. A religião contemporiza, compõe, transige. Seitas são intransigentes. Religião é a seita bem-sucedida.
A mesma coisa acontece com economistas.
Volta e meia, economistas recuperam o pensamento dos clássicos ou dos economistas das gerações passadas, que se perdeu na última moda. Criam-se seitas de economistas. O tempo e novas circunstâncias forçam a transigência e fundamentalistas se transformam em ortodoxos.
Os ortodoxos transigem segundo as circunstâncias, os interesses do momento. O ortodoxo é a sua circunstância. É reflexivo, mecânico, não gosta de perguntas difíceis e tem horror a alterar o estabelecido. Ortodoxos são homens práticos que evitam perguntas difíceis.
Economistas reunidos no Fórum Nacional mostraram preocupação com a redução dos juros. Seria natural ou artificial? Será que os juros baixos são compatíveis com o déficit público brasileiro? Em que sentido poderíamos chamar os juros de 40% ao ano de naturais? Os juros crescem com o sol dos trópicos e se reduzem em climas temperados? O governo está sendo temerário em reduzir os juros sem fazer as famosíssimas reformas que reduzirão o déficit fiscal? Ou será que a tendência declinante do câmbio permite juros menores?
Os alunos da faculdade são obrigados a ler livros, textos consagrados nas universidades americanas, ou seja, a ortodoxia. Como alunos, não podem fugir às perguntas fundamentais. Como deveriam pensar sobre o déficit público e os juros? O déficit público preocupa em três situações: 1) quando a economia está em pleno emprego e com pressões inflacionárias; 2) quando a economia está em pleno emprego, com taxa de câmbio fixa e desequilíbrio nas contas externas; 3) quando o déficit é tão grande e a dívida pública cresce a taxas tão rápidas que no futuro o Tesouro não conseguirá pagar a dívida com impostos e sim com mais dívida ou com emissões (preocupação do professor Thomas Sargent, da Universidade de Chicago, em artigo clássico de 1983).
A economia brasileira não está em pleno emprego nem enfrenta problemas inflacionários. Portanto, o motivo 1 não se aplica.
Com taxas cambiais flutuantes, se os gastos do governo pressionarem as importações, o câmbio deve se elevar. Como o câmbio está caindo, o motivo 2 não se aplica.
No caso brasileiro, a maior parte dos gastos do governo é com os juros altos que criam a possibilidade de a dívida se tornar impagável. Por outro lado, a dívida pública brasileira é tão curta e tão líquida que pagar a dívida com mais dívida ou com notas de R$ 100 e de R$ 50 reais não faz muita diferença.
De qualquer forma, a redução dos juros reduz o déficit público e a taxa de crescimento da dívida. Portanto, atende à preocupação 3.
Será que a desvalorização cambial aumentou o déficit público em reais? O importante é a relação entre dívida pública e quantidade de reservas. A desvalorização cambial reduz a quantidade de reais da dívida pública em relação à quantidade de dólares das reservas. Depois das desvalorização, temos menos reais para comprar dólares mais caros.
Mesmo assim o professor Gambiagi precisa gastar tempo e tinta explicando para economistas desconfiados e jornalistas investigativos que o déficit público diminuiu por causa da desvalorização cambial.
O hábito domina os ortodoxos que acabam esquecendo por que problemas são problemas e soluções, soluções.

João Sayad
Economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney). E-mail: [email protected]. Artigo fornecido pela Agência Folha.

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