Os 50 anos da relação diplomática Brasil e China

Nesta entrevista, o ex-embaixador Luiz Augusto de Castro Neves explica o contexto do estabelecimento da relação diplomática entre Brasil e China e a sua evolução.

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Xi Jinping e Lula
Xi Jinping e Lula (foto de Ricardo Stuckert, PR)

Conversamos com o ex-embaixador Luiz Augusto de Castro Neves sobre os 50 anos da relação diplomática entre Brasil e China, que foi estabelecida no dia 15/8/1974. Castro Neves foi embaixador do Brasil na China de 2004 a 2008 e presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), sendo, atualmente, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).

Como era a relação entre Brasil e China antes do estabelecimento das relações diplomáticas?

Era uma relação muito tênue. Antes do estabelecimento das relações diplomáticas, a relação entre os dois países foi povoada por um incidente ocorrido no início do Golpe de 1964 com uma missão comercial chinesa. Após a deflagração do Golpe, ocorrida entre os dias 31/3 e 1º/4, a delegação chinesa foi presa sob acusação de que estaria no Brasil para subverter a ordem e criar um estado socialista. Depois de dois meses, os chineses foram libertados após a intervenção do Paquistão, que era o país que representava os interesses chineses no Brasil.

Mesmo que não houvesse uma relação completa entre os dois países, isso não impedia o Brasil de acompanhar, discretamente, o que acontecia na China. Isso porque uma das missões do Consulado Geral do Brasil em Hong Kong era acompanhar a situação política na China, que na época estava muito na ordem do dia por causa da Revolução Cultural, que foi um verdadeiro pandemônio político e ideológico que durou 10 anos.

Em fevereiro de 1972, nós tivemos a visita de Richard Nixon à China, que foi um choque em matéria de relações internacionais. Pouco antes, em outubro de 1971, nós tivemos o ingresso da República Popular da China nas Nações Unidas com a expulsão de Taiwan (República da China), quando a China de Pequim passou a ser, por assim dizer, a única representante da China.

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Luiz Augusto de Castro Neves
Luiz Augusto de Castro Neves

No Brasil, como houve uma percepção de que, mais cedo ou mais tarde, todos os países iam reconhecer a China, o governo do General Geisel iniciou as negociações com a parte chinesa para que as relações fossem estabelecidas, o que ocorreu no dia 15/8/1974. Esse foi um processo complicado e de intensa controvérsia, sobretudo no âmbito das autoridades militares brasileiras.

O reatamento foi proposto e autorizado em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional, onde houve, por parte dos representantes militares, o voto contra o reatamento. Por exemplo, o ministro do Exército naquela época, general Sylvio Frota, que, posteriormente, foi demitido pelo presidente Geisel, disse que “uma possível assistência técnica chinesa na relação comercial seria apenas uma roupagem sobre a qual se escondem ou agem, muitas vezes, agentes dos serviços de informações”.

Ele também disse que “no plano interno, os grupos de contestação ao regime, que mais se tem destacado pela persistência e fanatismo, os seus militantes são exatamente aqueles que seguem orientação política e ideológica do mestre do comunismo chinês, verdadeiro Deus, por religião sintetizadamente professada por mais 800 milhões de amarelos, ansiosos por se expandirem e ocuparem os vazios do mundo, hoje carentes no globo terrestre, mas cobiçados, em especial no Brasil e na África Negra”.

O reatamento foi feito, mas as relações continuaram muitos tênues. Os dois países trocaram embaixadores, mas estabeleceu-se uma relação apenas formal, com muito pouco conteúdo. Do lado brasileiro, isso se deveu, sobretudo, à controvérsia criada em torno do reatamento, e do lado chinês, à Revolução Cultural, que impedia a China de tomar decisões de conteúdo nas suas relações internacionais.

Uma curiosidade desse processo é que um dos chineses que foi preso em 1964 virou vice-ministro de Estado na China e foi um dos que assinou o reatamento das relações entre os dois países.

Os nove chineses, que foram presos no início do Regime Militar, após regressarem à China: Ju Qingdong, Wang Weizheng, Su Ziping, Hou Fazeng, Wang Zhi kaj Zhang Baosheng, Wang Yaoting, Ma Yaozeng e Song Gueibao (não necessariamente nesta ordem).

Pelo lado brasileiro, o presidente Geisel foi o grande patrocinador do reatamento?

Correto. Esse processo, talvez seja um pouco de exagero da minha parte dizer isso, entrou um pouco a reboque do fato de Nixon ter reconhecido, na prática, a legitimidade do governo de Pequim. Ao visitar Mao Tse Tung, no fundo ele disse que quem mandava na China eram os chineses de Pequim, e não os chineses de Taiwan.

Além disso, como esse fato passou a ser consumado, o general Geisel não queria que o Brasil fosse, digamos, um retardatário no movimento, que já se espalhava entre todas as nações, de reconhecer a República Popular da China como legítima representante do povo chinês.

Um ponto importante é que a China, nas suas relações internacionais, nunca levava em conta o problema ideológico. Para os chineses, tanto fazia se era uma ditadura de direita ou uma democracia de esquerda, ou quem quer que seja. A China reconheceu os países latino-americanos quando a sua maioria vivia debaixo de ditaduras militares de direita com fortes posições anticomunistas. As exceções foram Cuba e Chile, cujos governos de Fidel Castro e Salvador Allende haviam sido reconhecidos pela China.

Mesmo assim, e isso é muito interessante ter em mente, a relação com Cuba era a pior possível, já que naquela época, em decorrência do conflito sino-soviético (de março a setembro de 1969), os cubanos eram, digamos assim, pilotados pelos soviéticos, tanto que, em um discurso, Fidel Castro chegou a chamar a liderança chinesa de senil. Com relação ao Chile, quando houve o golpe de Pinochet que derrubou Allende (setembro de 1973), todos os países do bloco socialista romperam relações com o Chile, sendo que a única exceção foi a China, que manteve as relações com a ditadura de Pinochet, que era, fortemente, de direita e anticomunista.

Richard Nixon e Mao Tse Tung, durante a visita do presidente americano à China. 21/02/1972 (foto: Casa Branca)

O que norteava o pragmatismo das relações diplomáticas chinesas nessa época? Faço essa pergunta porque hoje o pragmatismo das relações diplomáticas chinesas é norteado por questões comerciais e de mercado.

Naquela época, esse pragmatismo era guiado, a longo prazo, também pelo mercado. Um tema muito interessante é que a China foi o primeiro país a perceber que estava em formação na ordem econômica internacional do mundo um fenômeno que viria a ser reconhecido pelo nome de globalização, cujo traço mais importante para os chineses era a internacionalização dos processos produtivos. A China percebeu que tinha como propósito se integrar nas cadeias globais de valor usando o que eles tinham de mais competitivo: a sua mão de obra gigantesca, numerosa, barata e competente.

Desde o seu estabelecimento, como se deu a evolução das relações diplomáticas entre os dois países?

Como disse, no início a relação foi, praticamente, formal, com poucos eventos, por assim dizer. O que começou a mobilizar a relação sino-brasileira foi o fim da Guerra Fria, com a reunificação da Alemanha (outubro de 1990) e o desaparecimento da União Soviética (dezembro de 1991), e a modernização da arquitetura internacional de governança. Por exemplo, a Organização Mundial do Comércio, que estava na prateleira desde a década de 1940, já que o Senado americano não havia aprovado a sua constituição, saiu do papel (janeiro de 1995) e foi um órgão importante para o estabelecimento de regras para a expansão do comércio internacional, substituindo o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade/Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio; estabelecido em 1947).

As mudanças ocorridas na década de 1990 fizeram com que a ordem internacional, que antes era, marcadamente, bipolar, passasse a ser, naquele momento, unipolar sob a liderança dos Estados Unidos, o que levou, inclusive, alguns intelectuais a proclamarem o “fim da história” (Francis Fukuyama). Essa década unipolar e o “fim da história” chegaram ao final com os atentados terroristas do 11/9/2001, que explicitaram os limites do poder da superpotência hegemônica. Naquele momento, outro elemento que surgiu foi a extensão da China.

O que mais o marcou durante o tempo em que o senhor foi o embaixador brasileiro na China?

Eu servi como embaixador na China de 2004 a 2008. Esse foi um momento de grande expansão da economia mundial, e a China, que já havia percebido, como já falei, a natureza e as potencialidades da globalização, tratou de se servir da nova ordem da melhor forma possível. A estratégia, sob a condução de Deng Xiaoping, passou a ser, abro aspas, “a correta inserção da China no sistema internacional”. Esse era o discurso de Xiaoping, que reverteu o que dizia Mao Tse Tung, que a China deveria ser autárquica e ficar sozinha, pois era grande e populosa o suficiente para ser um mundo à parte, sem que precisasse dos outros.

Eu vivi na China, talvez, no grande apogeu dessa inserção do país no sistema internacional. Nessa época, e até hoje é assim, quando você andava pelas ruas de Pequim ou de Xangai, parecia que você estava andando nas ruas de uma grande cidade americana, cheia de anúncios em inglês e bancos e empresas multinacionais.

Outro ponto interessante é que em 2008 a China sediou a Olimpíada. Neste evento, a China se preparou para se mostrar ao mundo como um país de primeira classe e que teria o seu lugar garantido no centro do palco das relações internacionais. A Olimpíada de 2008 foi o grande cartão de visita da China.

Em termos de relações diplomáticas e de negócios, como funciona o pensamento chinês?

Os chineses, como boa parte dos povos asiáticos, são seguidores da filosofia de Confúcio, que pregava a busca pela harmonia. No mundo ocidental democrático, a ferramenta fundamental que faz o sistema trabalhar é o dissenso, ou seja, a pluralidade ideológica e o fato de que nas democracias ocidentais cada um tem a sua opinião, e existem uma série de mecanismos decisórios, como as eleições, que fazem cumprir a vontade da maioria e respeitam os direitos da minoria, que pode vir a ser uma maioria no futuro. Na Ásia, esse raciocínio é estranho, não apenas na China, mas também em países como o Japão, o Vietnã e a Coreia.

Aos olhos ocidentais, o esquema chinês é autoritário, o que é um fato, mas ao mesmo tempo é um esquema extremamente dialético de debates contínuos de ideias, sempre na busca da harmonia preconizada por Confúcio. Em negociações com outros parceiros, os chineses sempre buscam uma situação de ganha-ganha, pois eles sabem que uma negociação onde um lado é vencedor e o outro é perdedor, é, por definição, instável, já que o perdedor não vai se conformar até reverter essa situação no futuro. O ganha-ganha beneficia ambos os lados, às vezes até de forma desproporcional, mas tem muito mais perspectivas de ser mais estável ao longo do tempo.

Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto à nossa entrevista?

Hoje, o grande desafio é saber como será a nova ordem internacional. Na Guerra Fria, a ordem internacional tinha um jogo de soma zero entre os dois polos do poder, os Estados Unidos e a União Soviética, onde o ganho de um era a perda do outro. Por exemplo, o que os Estados Unidos ganharam na crise de Cuba, os soviéticos perderam (outubro de 1962), e o que os soviéticos ganharam ao dominar o Leste europeu (pós-Segunda Guerra), os Estados Unidos e o mundo ocidental perderam.

Eu não acredito em uma nova guerra fria, pois a disputa atual entre os Estados Unidos e a China, os dois principais polos de poder hoje, não é um jogo de soma zero, já que existe uma cooperação muito intensa entre os dois países. Os Estados Unidos são os maiores investidores estrangeiros na China, enquanto a China é um grande investidor nos Estados Unidos. Por exemplo, 95% da produção da Apple é feita na China.

Existe uma forte presença dos Estados Unidos na China, a despeito das sanções, e da China, não só nos Estados Unidos, mas no mundo ocidental de uma maneira geral, inclusive no Brasil. A relação sino-brasileira é um sucesso não só na parte comercial, mas nos investimentos, nas finanças e, a despeito das diferenças, cada vez mais na parte cultural.

Nota: apesar da visita de Nixon à China em fevereiro de 1972, os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas com a República Popular da China somente no dia 1º/1/1979, quase quatro anos e meio depois do Brasil.

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