Ney Matogrosso chega aos 80 anos repleto de luz, esbanjando charme e sensualidade e sempre com talento múltiplo. O artista, transgressor, é considerado um dos precursores da androginia, enquanto estética de arte, desenvolvida nos primórdios da Tropicália, quando se apresentava com coreografias erotizantes e arrepiantes, expondo nessa ocasião sua masculinidade como grande contraponto aos Anos de Chumbo, em plena ditadura militar.
Foi ameaçado, perseguido, mas não desistiu de impor sua arte e da forma como queria ser entendido pelo seu público fiel. E foi justamente nesse período sangrento que Ney lançou alguns dos seus maiores sucessos: Homem com H, Vida, Vida, Pro dia nascer Feliz, Vereda Tropical, Amor Objeto, Seu tipo, Por debaixo dos panos, Promessas demais, Tanto amar, Ando meio desligado, Sangue latino, dentre tantos outros.
Coreógrafo, iluminador e dançarino, atuou como diretor de seus espetáculos musicais; dirigiu grandes nomes e ganhou o extinto Prêmio Sharp de Música com os temas Gilberto Gil e Ângela e Cauby. Atuou como ator de cinema, em Sonho de valsa, de Ana Carolina, e em Caramujo flor, de Joel Pizzini, tendo sido responsável pela iluminação de espetáculos de Nana Caymmi, Nelson Gonçalves, Chico Buarque, da Fundação Osvaldo Cruz e peças de teatro, como Somos irmãs e Mistério do amor.
Ex-integrante dos Secos & Molhados, foi o artista que mais sobressaiu do grupo após iniciar sua carreira solo com o disco Água do Céu – Pássaro. É considerado pela revista Rolling Stone como a terceira maior voz brasileira de todos os tempos e, pela mesma revista, 31º maior artista brasileiro de todos os tempos.
Ney é um artista de dimensão eterna no universo da música popular brasileira e sua belíssima voz de contralto sempre embaralhou noções de masculino e feminino, de novo e antigo, do belo e do feio. Ele é de fato um dos maiores e mais completos cantores brasileiros de todos os tempos, pela singularidade da sua voz generosa e vibrante e, claro, pela construção da sua obra fonográfica.
Ney é artista vocacionado para a cena e sempre usou seu corpo para cantar, personificando tipos dos mais variados, mas sempre com alto grau de sexualidade e de sensualidade. E essa altíssima carga erótica demonstrada nos palcos hipnotizou, e continua a hipnotizar, milhões de fãs.
E no mês em que comemora seus oitentões, Ney ainda surge como objeto de desejo de muitos, pela sua energia, vitalidade, bom humor, despudor e, sobretudo, coragem de se apresentar como é e gosta de ser. Ney Matogrosso é um exemplo de artista mágico, frenético e de bem com a vida e com o meio ambiente, que cultiva desde sempre, defendendo-o.
Mas nem tudo é alegria.
Nesta semana, o Brasil perdeu um dos seus mais ilustres intelectuais e que, durante oito anos no Governo FHC, ocupou o Ministério da Cultura. No cargo de ministro da Cultura, entre 1995 e 2002, Francisco Weffort defendeu o aumento do orçamento da pasta e fez alterações na Lei Rouanet e, na sua gestão, foi implantada a Lei do Audiovisual, considerada responsável pela retomada da produção cinematográfica no país, ao permitir que o valor dos recursos destinados pelas empresas privadas ao financiamento de projetos fosse integralmente abatido no Imposto de Renda.
O balanço da passagem de Weffort pelo Ministério da Cultura feito pela revista Época, em dezembro de 2002, destacou o fato de que ela esteve “longe de ser uma unanimidade”. Os afagos vinham do setor cinematográfico e de áreas beneficiadas pela Lei Rouanet. As críticas ácidas vinham do setor de preservação do patrimônio e de órgãos federais ligados à cultura, que o acusavam de descaso. O próprio ministro reconheceu o desequilíbrio no desembolso de recursos captados via Lei Rouanet, 85% dos quais se concentraram na região Sudeste do país.
Formado em Ciências Sociais pela USP, Weffort participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sigla na qual ocupou o cargo de secretário-geral, tendo sido filiado até 1994. Antes de ser nomeado ministro, participou ativamente da campanha das Diretas Já, mobilizações populares em prol do restabelecimento das eleições diretas para Presidência no Brasil.
Weffort também foi fundador e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), pesquisador do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (Cedec) e lecionou no Wilson Center e no Helen Kellogg Institute, ambas instituições nos EUA.
Integrou, ainda, o grupo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Como pesquisador, dedicou-se a estudar a democracia no Brasil e em outros países do mundo. Entre seus livros publicados estão Por que Democracia? (1984), e Qual Democracia? (1992), Um olhar sobre a cultura brasileira (1998) e A cultura e as revoluções da modernização (2000).
Weffort deixa quatro filhas de seu primeiro casamento, com Madalena Freire Weffort, filha do educador Paulo Freire. Desde 2002, ele era casado com a socióloga Helena Severo, ex-secretária estadual de Cultura do Rio de Janeiro. Recentemente, lançou, ao lado do também cientista político José Álvaro Moisés, o livro Crise da Democracia Representativa e Neopopulismo no Brasil, publicado pela Fundação Konrad Adenauer. Na obra, eles analisam o impacto do neopopulismo na atual crise da democracia e as possibilidades de superá-la.
Durante o golpe militar, deixou o país e foi admitido como professor e pesquisador no Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social (Ilpes), instituição sediada em Santiago do Chile e vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1968, doutorou-se pela Universidade de São Paulo e passou a trabalhar como professor visitante na Universidade de Essex, na Inglaterra, onde permaneceu até o ano seguinte.
Em 1974 transferiu-se para a Argentina, onde trabalhou na Universidade de La Plata e foi assessor da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 1977, tornou-se livre docente na USP e, no ano seguinte, publicou O populismo na política brasileira, obra que exerceu grande influência nos estudos sobre o tema e lhe rendeu grande prestígio nos meios acadêmicos do país.
Em 2004 foi eleito presidente do Conselho Superior da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso) e até 2006 foi professor visitante do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2007, recebeu da Academia Brasileira de Letras (ABL) o prêmio de Ensaio, Crítica e História Literária pelo livro Formação do pensamento político brasileiro: ideias e personagens. Em 2008, no âmbito do Iepes, iniciou, como coordenador, a pesquisa intitulada “Bandeirantes e jesuítas”.
De José Aparecido de Oliveira, primeiro ministro da Cultura, passando por Aluísio Pimenta, Celso Furtado, Ipojuca Pontes, Sérgio Paulo Roaunet, Antonio Houaiss, Jerônimo Moscardo, Luiz Roberto Nascimento e Silva, Gilberto Gil e Ana Hollanda, o Brasil teve ilustres ocupantes nessa pasta que, no Governo Bolsonaro, foi extinta, demonstrando total desprezo pela cultura do país. Cultura essa jogada às traças e sem qualquer olhar pela classe artística.
Entre a alegria de o país comemorar os 80 anos de Ney Matogrosso e a tristeza com a partida de Francisco Weffort, ficamos todos na expectativa de ainda vivermos dias mais democráticos neste imenso país assolado pela falta de uma política eficiente e eficaz em relação ao combate ao coronavírus, que já subtraiu mais de 550 mil vidas em nosso território. Resta-nos, todavia, a esperança de mudarmos esse cenário tão sombrio, em 2022, quando iremos às urnas eletrônicas depositar votos de alternância no poder central.
Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.