Os seis primeiros meses do governo Lula e o Congresso Nacional

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Públio Madruga (foto divulgação Distrito Relações Governamentais)
Públio Madruga (foto divulgação Distrito Relações Governamentais)

Conversamos com Publio Madruga, chair da América Latina da Edelman Global Advisory, sobre os seis primeiros meses do governo Lula e sua relação com o Congresso Nacional.

Como você avalia o atual quadro político?

Está um pouco estranho, e são algumas coisas que podem explicar isso. Primeiro que o governo não conseguiu ter uma base de apoio. O Lula trouxe uma ideia de montar essa base num pensamento de 2003, mas que ele não conseguiu replicar em 2023.

A situação é outra. Em 2003, a própria transição do Fernando Henrique para o Lula foi supercivilizada, com o Fernando Henrique até se orgulhando de transferir o cargo para o Lula, vendo isso como positivo para a democracia. Não houve um embate como o atual.

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Também não havia a questão, que está muito latente, da ingerência do Judiciário em tudo o que está acontecendo. Uma das situações icônicas disso, que não chegou a acontecer, mas que fez parte das discussões, foi o PL das Fake News, 2630/2020. Havia uma intenção de aprová-lo dentro do Congresso, mas quando se notou uma resistência tão grande que poderia fazer com que ele não fosse aprovado, houve a ameaça de que o Judiciário, apesar do Congresso, faria essa regulamentação, o que não é saudável e republicando.

Como se confia que haverá uma interferência judicial que vai resolver os problemas, há um menor interesse de se negociar e de se chegar a acordos.

Com relação à oposição, ela existe numericamente, mas ainda não conseguiu se organizar para trabalhar como oposição de fato. Como a oposição não está articulada, o governo sempre acha que pode cooptar pessoas dela para o seu lado, mudando o equilíbrio dessa balança. Todas essas incertezas nos levam para o processo que estamos hoje.

Além disso, temos a questão das regras que não estão definidas e das regras que estão definidas, mas que não são acatadas, como o próprio processo legislativo, que está amalucado, e o processo de votação de medidas provisórias (MPs) que não está definido até agora, apesar de estar bem definido na Constituição, o que é uma loucura.

Todo esse arcabouço de incerteza de como as coisas vão funcionar, ou deveriam funcionar, e de qual é, de fato, o equilíbrio de forças, faz com que não se consiga avançar com as agendas, apenas coisas pontuais ao gosto e à vontade do presidente da Câmara, que é quem decide o que será votado, o que não será votado, e pronto, acabou. De forma geral, é isso que está atrapalhando um avanço de agenda.

Nós temos outras mil coisas acontecendo ao mesmo tempo, como as CPIs/CPMIs, mas esses são microssistemas que refletem muito esse ambiente.

Quando conversamos após o final do primeiro turno das eleições do ano passado, você havia destacado que o governo demoraria um tempo para formar uma base, mas que o Lula tinha habilidade para fazer isso. É prematuro cobrar uma base com seis meses de governo, mas você está vendo um processo, ou ao menos uma perspectiva, de formação dessa base no Congresso Nacional?

Não. Esse tipo de processo é complexo. Há pouca gente da base efetiva que foi eleita, então não há um apoio irrestrito. Há a ingerência do Judiciário, inclusive com as cassações, que incomodam algumas pessoas e que, provavelmente, terão que ser endereçadas em algum momento para trazer essas pessoas para essa possível base ou, pelo menos, um diálogo. Até isso está complicado.

Há também um outro processo, que foi montado para dar apoio, mas que não conseguiu fazer isso, e que hoje não se sabe como refazê-lo: a mudança dos ministérios. O que representa isso da forma mais clara é a questão do União Brasil, que tem três ministérios.

Por exemplo, temos os casos da ministra Daniela Ribeiro, que já saiu do partido, mas que não saiu do ministério, e do ministro Waldes Góes, que sequer é do partido. O governo deu três ministérios ao União Brasil, mas não tem os seus votos. O governo não conseguiu traduzir em apoio o que tem para oferecer por esse apoio.

Temos outros processos, como as brigas por emendas. Como elas não estão sendo disponibilizadas, faz-se o que se fez com o arcabouço, quando se abriu um pouco da torneira e depois se fechou. Alguns deputados concluem que é melhor não ser base, e sim oposição, quando veem que a torneira é aberta pontualmente, e depois fechada, pois, mesmo se posicionando contra, quando eles forem necessários, a torneira será aberta.

A própria relação das lideranças com o governo é outra questão. O Arthur Lira quer que o José Guimarães, líder do governo na Câmara, seja ministro, mas o Lula não quer. Isso cria um outro tipo de problema, pois o presidente da Câmara pode ter a pauta na mão e criar dificuldades para que a sua vontade seja considerada, ou seja, compensada de outra forma.

Nós temos um chefe da Casa Civil que não é, exatamente, o cara mais hábil para conversar, e um ministro de Relações Institucionais que também não está conseguindo fazer a relação institucional.

É preciso reformular, mas o grande problema é como fazer essa reformulação. O governo vai na tentativa e erro? Ele vai esperar mais quanto tempo? Vai dar cargo para quem? Quem o governo vai colocar nas posições-chave? O presidente tem alguns dilemas nas suas mãos. Por exemplo, ele não pode entregar tudo o que o Arthur Lira quer, senão ele vai ficar super-refém, mas, ao mesmo tempo, ele não pode brigar, senão vai ficar super-refém e não vai conseguir passar nada.

Hoje, o grande articulador do governo no Congresso chama-se Fernando Haddad. Ele é o cara que consegue conversar. No início da semana há uma sessão para votar o arcabouço e a reforma tributária. Isso é resultado da articulação do ministro da Fazenda. O Haddad consegue avançar pautas, que estão sendo entregues. O arcabouço foi entregue, e a reforma está prometida, apesar de não se saber se será entregue. A reforma é um tema bem mais complexo e eu não sei se eles, de fato, vão chegar a um consenso.

O que traz hoje uma certa confiança na economia é que o Fernando Haddad tem posições mais pragmáticas e tem conseguido articular no Congresso as suas pautas econômicas. Aparentemente, ele está um pouco alheio a toda essa briga. É como se fossem dois governos, com um cara do governo que consegue conversar e todo um governo que tem dificuldade em conversar.

Passando para o outro lado, você vê a oposição num processo de consolidação?

Essa pergunta é mais complexa. Falta tudo à oposição. Falta um partido de oposição, um líder de oposição, organização e pauta. Hoje, essa pauta é mais reativa. OK, ela é contra o governo, mas qual é a pauta efetiva? O que ela quer levar para frente?

Na semana passada, Bolsonaro ficou inelegível. Eu estava ouvindo o programa Fim de Expediente, da CBN, quando o Dan Stulbach disse que a inelegibilidade do Bolsonaro não era um dos assuntos mais comentados do Twitter, ou seja, as pessoas não estavam tão interessadas nisso. Foi quando levantaram a questão de que esse desinteresse poderia estar relacionado à característica de nada no Brasil ser definitivo. Ou seja, Bolsonaro estaria inelegível até quando?

Isso traz um problema. Se Bolsonaro fosse dado, de fato, como inelegível, outra liderança teria chance de aparecer, quase que imediatamente, para suprir esse vácuo. Foi o que aconteceu dentro do PT. O Lula foi preso e continuou sendo o líder mesmo preso. Não importava a inelegibilidade, pois a partir do momento em que ele não podia se candidatar, outros candidatos foram colocados, mas o líder, efetivamente, sempre foi ele. O problema do Bolsonaro é que ele próprio se enfraqueceu a partir do momento em que perdeu as eleições e se afastou de tudo.

As pessoas que estão ao seu lado não conseguem buscar esse protagonismo. Por exemplo, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, não é, necessariamente, oposição, e sim um cara pragmático. Ele está fazendo um bom governo e não se mete muito nas discussões.

Com relação aos partidos, o PL, Republicanos e o próprio União, que abrigam muitas dessas pessoas, são o Centrão. Eles não são, necessariamente, a oposição. Esses partidos podem ser oposição se for preciso ser oposição, mas podem ser governo se for preciso ser governo.

Como disse, falta tudo a essa oposição. Ela tem potencial? Tem. A oposição tem número e pessoas com pensamento um pouco mais conservador que poderiam ser oposição. Hoje nós temos uma oposição pulverizada que dá trabalho ao governo por ter um número grande de pessoas, que pensam quase que individualmente e que discordam das pautas governistas, progressistas ou dos discursos do Lula, e não uma oposição organizada.

Você abordou a relação da Presidência da República com a Presidência da Câmara, mas como você está vendo a Presidência do Senado nesse tabuleiro?

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é mais pragmático. Ele tem um diálogo melhor com o governo e respeita mais o processo legislativo do Senado. Na verdade, o protagonismo do presidente da Câmara é que está equivocado. A forma como ele tem feito política é que está errada.

Por exemplo, quando o Arcabouço foi votado na Câmara, houve o pedido de urgência, uma votação no plenário e pronto, acabou. Na hora de se discutir o Fundo Constitucional do Distrito Federal, não se discutiu nada. Se votou e passou. Quando chegou no Senado, ele foi para uma comissão presidida pelo Omar Aziz, onde alguma coisa foi discutida. Foi rápido? Foi, mas o fundo foi para uma comissão, e não direto para o plenário.

Como disse, dentro do Senado há um respeito maior ao processo legislativo. Com esse respeito, a figura do presidente se torna menos importante, pois ele passa a pautar o que está pronto, e não a pautar qualquer coisa, independente de estar pronta ou não. Quem traz as matérias são as comissões.

Na Câmara é diferente. O projeto chega, o Arthur Lira vota o pedido de urgência e manda para o plenário. Essa inversão das regras do processo legislativo é que dá esse protagonismo, pois para fazer isso, ele precisa dominar o processo inteiro, fazendo o seu desvirtuamento, estando em voga e mandando nas pessoas. Se ele tivesse o processo legislativo comum, ele simplesmente desapareceria.

A reforma tributária é bastante icônica nesse processo. Há uma sessão marcada para votá-la, mas não há um texto discutido em lugar nenhum. Houve um grupo de trabalho, que não era uma comissão, um texto principiológico publicado, que está sendo criticado por muitas pessoas e vamos ter agora uma votação.

O Arthur Lira diz que ele manda na Câmara. Se vai ser votado ou não no Senado, ele se vira para o Lula e diz que a parte dele foi feita e que é para ele se desgastar com o presidente do Senado, pedindo para que o Pacheco faça o que ele fez na Câmara.

Não acredito que o presidente do Senado faça com que os senadores aceitem uma mudança no processo legislativo de forma que a reforma tributária seja votada da mesma forma que na Câmara. No Arcabouço, ele nem tentou fazer isso. Ele articulou, mas dentro das regras. O Arcabouço passou pela comissão, onde foi aprovado, e foi para o plenário. E com mudança.

Essa é a questão que temos hoje com as MPs. Existe um rito constitucional de votação das MPs, que foi modificado por conta da pandemia. O Arthur Lira não aceita a volta desse rito, enquanto o Rodrigo Pacheco não aceita a manutenção da forma atual. Se voltarmos ao rito que o Pacheco quer, as MPs vão caducar e ponto final, pois elas não são lidas pelo Lira. O presidente do Senado não quer que elas sejam votadas diretamente no plenário. Ele quer que elas sejam discutidas nas comissões mistas.

Nós temos uma casa que tenta se ater ao processo legislativo e uma que se esqueceu do processo legislativo como um todo. Esse esquecimento mostra um grande poder do Arthur Lira, pois para ele fazer isso, ele precisa estar muito poderoso, o que lhe traz esse protagonismo que estamos vendo.

Tecnicamente, como você vê a relação entre a Câmara dos Deputados e o Senado?

Essa é uma relação mais complicada. Por exemplo, o arcabouço tinha a questão do Fundo Constitucional do Distrito Federal e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica). Eles faziam parte ou não do teto? Foi no Senado onde se conseguiu fazer uma articulação, pois houve uma discussão em comissão. Eles foram retirados, e agora o Arcabouço voltou para a Câmara. Ela vai manter o que o Senado disse?

Os projetos importantes não estão sendo discutidos de forma efetiva e com uma profundidade suficiente para que se consiga ter uma relação saudável entre esses dois poderes. É possível, talvez provável, que as matérias cheguem na Câmara e sejam votadas ao contrário.

Isso vai criar um problema para o Senado, que vai dizer que ali houve discussão, enquanto na Câmara não houve, e questionar se ele sempre vai ser limado desse processo, já que lá há um processo corrido, enquanto ali há um processo discutido, sendo que o discutido é o que sempre deveria funcionar.

Isso pode gerar outro tipo de problema. O Senado pode preferir não votar e segurar as matérias, a votar e ser feito de coadjuvante, já que as mudanças feitas pelos senadores são retiradas pela Câmara.

Outro ponto: esse é um governo praticamente sem MPs, pois ele não sabe o que vai ser votado ou não. As MPs estão caducando e sendo enviadas com urgência constitucional, sobre o argumento de que o Arthur Lira, recebendo o projeto, passe direto para votação no plenário.

OK, mas o Senado vai aceitar isso para sempre? No final, se está contornando a necessidade de uma decisão sobre o rito das MPs, sendo que esse contorno está sendo feito sem a participação do Senado.

Se o rito voltar para o que o Senado quer, Arthur Lira fica relativamente esvaziado, voltando a ser um presidente mais comum da Câmara, e não mais um presidente superpoderoso que domina as pautas, as votações e a forma como os textos saem.

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