Para sempre Lygia Fagundes Telles

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Lygia Fagundes Telles (foto Alesp)
Lygia Fagundes Telles (foto Alesp)

Como ela falava, ‘me leia, se é poeta, não me deixe morrer’

 

Estudei no Colégio de São Bento do Rio de Janeiro, no qual tinha de, anualmente, ler oito obras literárias, que iam de Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Cecilia Meireles, Clarice Lispector, Rachel de Queiróz, João Cabral, Lima Barreto, Castro Alves, Manuel Bandeira, Ariano Suassuna, Euclides da Cunha e Graciliano Ramos, passando por Ernest Hemingway, Mark Twain, Victor Hugo, Proust, Sartre e Andre Malraux, dentre outros.

Ali, tomava gosto pela cultura, educação, literatura, escrita e o jornalismo. E foi lá também, nesse estabelecimento educacional, fundado em 1858, que comecei a conhecer a obra da fantástica e genial Lygia Fagundes Telles, morta, em São Paulo, de causas naturais, aos 98 anos, no último fim de semana.

Apesar da sua idade avançada e sabedor de que todos partiremos um dia, fiquei, confesso, bastante impactado pelo falecimento da escritora, uma vez que tinha por ela uma grande afinidade e profunda admiração. Comecei a pensar nas suas obras, várias das quais preciosas, das vezes em que nos encontramos em lançamentos de livros ou em eventos e vieram lembranças daquela paulistana e que, com seu jeito tão cândido e especial, encantava a todos os que tiveram o privilégio de conhecê-la.

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Os veículos de comunicação de todo o país anunciaram, com grande destaque, a morte de Lygia, com extensas reportagens, depoimentos de intelectuais, confrades das Academia Brasileira de Letras, da Academia Paulista de Letras, da Academia de Ciências de Lisboa, e admiradores da sua obra. Ao mesmo tempo, lembrei-me de uma das maravilhosas frases de Lygia e, ao recordá-la, pelo teor da própria frase, acabei ficando um pouco menos entristecido. Afinal, ela própria, do alto da sua sabedoria, cunhou: “Quando a morte olhar nos meus olhos e disser ‘vamos’, eu digo ‘estou pronta, fiz o que eu pude’.” Ou seja, Lygia anos atrás já se sentia preparada para partir.

Ela foi, sem qualquer dúvida, ao lado de Rachel de Queiróz, a mais notável personalidade da literatura brasileira, patriota e democrata e já era uma lenda em vida. Permanecerá, pelo seu brilho, no Panteão das glórias universais e por ter sido gigantesca e exuberante, sua obra continuará a ser revisitada, enquanto houver leitor no mundo. Fui procurar na minha biblioteca os livros de Lygia, alguns autografados. E estou começando a relê-los. Sempre muito bom poder revisitar obras, como as escritas por Lygia. São eternas, como ela será nos corações e mentes de todos os que apreciam um verdadeiro talento literário.

A paixão de Lygia por escrever foi incentivada por grandes outros nomes, amigos de toda a sua vida: Carlos Drummond de Andrade e Érico Veríssimo. Mas também com esses dois gigantes, ela não poderia ter tomado um outro rumo em sua vida, a não ser externar sua inteligência brilhante a favor da literatura.

Lygia dizia: “Ouço duzentas e noventa e nove vezes o mesmo disco, lembro poesias, dou piruetas, sonho, invento, abro todos os portões e quando vejo a alegria está instalada em mim”. E essa mesma alegria contagiante, Lygia passava em suas conversas, prosas e resenhas, sempre de forma esperançosa e otimista. Afinal, para ela, “a distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas”. Essa é uma frase retirada da obra Ciranda de Pedra, escrita em 1954.

Na realidade, Lygia invadiu o meu coração, quando ainda era aluno do colégio beneditino e eu deveria ter à época uns 15 anos. Foi quando li o livro As meninas. E essa invasão, boa, por sinal, nunca mais saiu dele. Com poesia, dizia que “a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa incerteza”.

A grande dama da literatura brasileira, que teve seus livros publicados em diversos países, como Portugal, França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Holanda, Suécia e Espanha e obras adaptadas para TV, teatro e cinema, retratou a vida de gerações de homens e mulheres. Foi uma das mais notáveis personalidades da nossa literatura, além de patriota, democrata e feminista. É considerada uma das grandes referências no pós-modernismo, tendo escrito obras que abordam temas diversos, como a morte, o amor, o medo e a loucura, além da fantasia.

Seu primeiro livro de contos, Porões e sobrados, foi publicado em 1938. Ela estava com apenas 15 anos. “Confesso que não sei, até hoje não sei por que de repente, sem alterar a voz, comecei a falar com tamanha fúria que não consegui segurar as palavras que vieram com a força de um vômito.” E suas falas que não foram seguradas por décadas e foram vomitadas com força para o papel dão ao leitor o sabor e o encantamento de tudo o que escreveu.

A consagração de Lygia veio em 2001, quando recebeu o Prêmio Camões, que lhe foi entregue em 2005, durante a VIII Cúpula Luso-brasileira, realizada na cidade do Porto, Portugal. Em 2016 e aos 92 anos de idade, Lygia Fagundes Telles tornou-se a primeira mulher brasileira a ser indicada para receber o prêmio Nobel de Literatura. Lygia recebeu vários outros prêmios ao longo da carreira, tais como o Jabuti (1966, 1974 e 2001) e o Guimarães Rosa (1972). Foi também uma das autoras do manifesto dos intelectuais contra a censura. Para ela, era difícil “separar a ficção da invenção, a fantasia da memória. Não há uma linha separando o que você viu do que você sonhou. A imaginação ocupa o espaço da memória”.

A obra de Lygia Fagundes Telles apresenta um universo marcadamente feminino, embora comprometida em documentar a difícil condição de vida de uma sociedade frágil nos centros urbanos, uma literatura engajada, destinada a documentar a história trágica do país, como se lê em As Meninas.

Por sua vasta produção literária é considerada uma das maiores romancista e contistas da literatura brasileira. É uma das mais destacadas representantes do Movimento Pós-Modernista no Brasil.

A estreia oficial de Lygia Fagundes Telles na literatura ocorreu em 1944, com o volume de contos Praia Viva. Em 1947, casou-se com um de seus professores, o jurista Goffredo Telles Júnior, com quem teve um filho.

Lygia seguiu com a contínua produção de contos e romances, dentre eles, Ciranda de Pedra (1954), no qual relata a história de um casal que se separa e a caçula vai morar com a mãe, onde vive os dramas ocultos de uma jovem de pais separados. A obra foi posteriormente adaptada para uma novela na TV Globo.

Em 1958, Lygia publicou o livro de contos História do Desencontro, que recebeu o Prêmio Artur Azevedo, do Instituto Nacional do Livro. Em 1960, separou-se do marido. Em 1963, casou-se com o ensaísta e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes. Nesse mesmo ano, publicou seu segundo romance, Verão no Aquário, que recebeu o Prêmio Jabuti.

Junto com Paulo Emílio, escreveu o roteiro para o filme Capitu (1967), baseado na obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, uma encomenda de Paulo César Saraceni, que recebeu o Prêmio Candango de Melhor Roteiro Cinematográfico.

A década de 70 foi um período da consagração para Lygia. O livro de contos Antes do Baile Verde (1970) recebeu o Prêmio Internacional de Escritoras, na França.

O livro As Meninas, publicado em 1973, que se tornaria um dos seus mais importantes romances, recebeu o Prêmio Jabuti, em 1974, e foi adaptado para o cinema, em 1975, dirigido por Emiliano Ribeiro. A obra traça um paralelo entre a vida de três pessoas que agitaram a juventude em um período conturbado da história do Brasil.

A obra Seminário dos Ratos (1977) recebeu o Prêmio PEN Clube do Brasil. A Disciplina do Amor (1980) recebeu o Prêmio Jabuti e o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte. O romance As Horas Nuas (1989) recebeu o Prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano.

Ainda estudante, Lygia se graduou em Direito, pela Universidade de São Paulo e pela Escola Superior de Educação Física na mesma universidade, colaborava com os jornais Arcádia e A Balança, ambos vinculados à Academia de Letras da faculdade. Nessa época, frequentava os encontros de literatura com Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Lygia foi a terceira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1985. Além dela, tornaram-se imortais Rachel de Queiroz (1977), Dinah Silveira de Queiroz (1980), Nélida Piñon (1989), Zélia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009), Rosiska Darcy de Oliveira (2013) e, mais recentemente, Fernanda Montenegro (2022).

Lygia foi procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, cargo que exerceu até a aposentadoria, e presidente da Cinemateca Brasileira, fundada por Paulo Emílio Sales Gomes.

Parafraseando a própria Lygia Fagundes Telles, “já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente”. Aceitemos, pois, a passagem dessa fenomenal escritora, com coragem, uma vez que sabemos que sua obra está imortalizada e seu raro talento marcado na história literária e nos corações de todos aqueles que leem, leram e lerão seus livros. E como dizia Guimarães Ramos, “nós não morremos, nós nos encantamos”. E como Lygia falava “me leia, se é poeta, não me deixe morrer”.

 

Paulo Alonso, jornalista, é reitor da Universidade Santa Úrsula.

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