Parlamento e jornalismo, intrigas e fofocas

Jornalismo reduz política às fofocas em associação com financismo Por Gustavo Biscaia de Lacerda

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Controle remoto comanda TV digital aberta
TV digital aberta (foto de Valter Campanato, ABr)

Considera-se, de modo geral, que jornalismo e política devem andar juntos e que tanto cada um deles, em particular, quanto sua união são virtuosos. Entretanto, essas concepções são altamente discutíveis e, com frequência, equivocadas.

A princípio, não há o que discutir a respeito da importância da política. Ela é importante porque organiza a vida coletiva; gostemos ou não, queiramos ou não, todos estamos sob a influência necessária da atividade política. Mas a submissão necessária à política gera, amiúde, confusões práticas e teóricas, nas quais se considera que “tudo é política”, ou seja, que tudo se reduz à disputa de poder.

Por mais importante que seja a política, a sociedade não se reduz a ela: os aspectos filosóficos, culturais e morais regulam, moldam e orientam a política; já os aspectos materiais sempre exercem sua pressão. O resultado é que a política molda, mas também é moldada.

Mas há várias maneiras de entender a política; em inglês, distingue-se a politics (a política do dia a dia), a polity (a estrutura sociopolítica geral, que alguns traduzem como “constituição”) e a policy (cada uma das políticas públicas). A disputa de poder corresponde à politics, ao passo que as policies e, ainda mais, a polity exigem consensos, convergências, legitimidade e aceitação de regras. Claro que a politics influencia a polity e as policies, mas confundir uma coisa com as outras, reduzir a polity à politics, é um grave erro, resultando apenas em cinismo e violência.

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Passemos ao jornalismo. Sua missão básica é informar os acontecimentos; assim, há vários tipos de jornalismo: investigativo, científico, econômico, de amenidades etc. Mas talvez o mais famoso e prestigiado seja o político. O jornalismo político dedica-se a narrar o dia a dia da política: ele se concentra na politics. Como as policies e a polity são de longo prazo e conceituais, elas são “chatas”, desinteressantes e não recebem atenção jornalística.

A preferência jornalística pela politics e a rejeição da polity-policy têm várias consequências. Uma primeira é a concentração das coberturas na atividade parlamentar; uma segunda é a defesa (implícita ou explícita) da atividade dos parlamentares contra o governo. A política do dia a dia é das disputas, das briguinhas, dos ciúmes, das intrigas… Com frequência, isso recebe o título edulcorado de “negociações”, mas essa é apenas uma forma empolada de referir-se ao que costuma ser apenas mesquinhez.

O jornalismo especializado em intrigas e mesquinhez não é outra coisa senão fofoca. Como as intrigas são incessantes, mas despertam interesse e paixões, os fofoqueiros têm prestígio e legitimam a concepção de que as fofocas que noticiam (“repercutem”) são a “verdadeira” política. Claro que os políticos — ou melhor, os parlamentares — saem ganhando com isso, obtendo exposição pública e sendo apresentados como “ativos”, “representativos” etc.

Esse é um sistema que se retroalimenta, em que os parlamentares (especialmente no parlamentarismo) e os jornalistas beneficiam-se mutuamente: as intrigas mesquinhas são vendidas como a verdadeira política, e as fofocas parlamentares são vendidas como verdadeiras notícias. Esses dois blocos falam em causa própria e apoiam-se mutuamente, de maneira altissonante ou até estridente; com isso, as fofocas são apresentadas como a opinião pública, e as intrigas, como a manifestação do bem comum.

Tudo isso é péssimo. Para piorar, no Brasil, o jornalismo econômico não se preocupa em informar, mas atua ativa e conscientemente como porta-voz do liberalismo econômico, isto é, de elites financistas internacionais que não querem a regulação do capital nem sua taxação e, para isso, impõem as concepções de Estado mínimo, de iniciativa privada “eficiente” e de servidores públicos incompetentes. É fácil ver que o jornalismo de fofocas é convergente com os porta-vozes do financismo internacional.

Augusto Comte, o fundador da Sociologia, já criticava e denunciava, no século 19, essa união entre o jornalismo de fofocas e a política parlamentarista — que, devemos repetir, finge ser a opinião pública e despreza a política como projeto social amplo. Desgraçadamente, o que o fundador do Positivismo criticava já em 1824 corresponde à realidade brasileira atual.

O que se vê nos grandes jornais do país é exatamente a fofoca parlamentar vendida como jornalismo político e as intrigas parlamentares vendidas como grande política. Esse vínculo é camuflado pelas críticas reiteradas que se fazem à “falta de habilidade” do presidente Lula para “negociar” com o Congresso Nacional: o parlamento é fortemente reacionário e assustadoramente corporativista, duas características que foram estimuladas pelo governo anterior em sua busca dupla de dar um golpe de Estado e de evitar o impedimento.

Claro que o viés conservador do atual parlamento torna-o mais reticente às propostas do governo; mas os recursos que a Constituição Federal de 1988 legou ao presidente da República sempre bastaram para acomodar ou contornar dificuldades ideológicas. Entretanto, desde 2019 — na verdade, desde antes, desde 2016 —, o Congresso Nacional aprofundou cada vez mais o seu caráter clientelista, corporativista e — não há como evitar — parasitário, cobrando um preço cada vez maior para manter um simulacro de “governabilidade”. Esse parasitismo, associado ao golpismo/anti-impedimento, encontrou seu paroxismo no aberrante “orçamento secreto”.

Uma característica notável do atual governo Lula é sua moderação; seu lema de campanha — “União e reconstrução” — dá a exata medida das necessidades atuais do país e evidencia o aspecto profundamente republicano de sua proposta. Sendo bem direto, essa é uma proposta de um verdadeiro estadista. É claro que Lula não é perfeito e que as mais diversas críticas podem ser feitas contra ele, como a respeito da política identitária, com suas cotas divisionistas, e das ambiguidades em relação à Rússia e à China; mas, no conjunto, o governo está na direção certa e adota as medidas urgentes e necessárias para o desenvolvimento social e econômico do país.

Se está na direção certa, o que dificulta a ação de Lula? Basta bom senso e honestidade para perceber que é o parlamento parasitário, que é mesquinho, impede o desenvolvimento nacional, trai a confiança do governo e protege — senão estimula — o golpismo fascista. Por seu turno, o jornalismo político, reduzindo a política às fofocas e em associação com os porta-vozes do financismo internacionalista, finge que tudo isso não é uma agressiva chantagem nem o bloqueio de um programa social e político verdadeiramente republicano.

Não há país que vá para frente nessas condições. Mas também não há soluções simples: é necessário evitar — ou combater — a demagogia extremista (atualmente na versão fascista) e as fake news, que correspondem às versões extremas e irmanadas do parlamento parasitário e do jornalismo de fofocas. O caminho é longo.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e doutor em Sociologia Política.

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