PEC 23 inclui esquema de securitização para desviar recursos públicos

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Maria Lucia Fattorelli. Foto: Senado Federal
Maria Lucia Fattorelli (foto Agência Senado)

Em meio ao tumulto criado pela discussão acerca de calote dos precatórios e auxílio temporário de apenas R$ 400 aos miseráveis, a inclusão de grave esquema de desvio de recursos na PEC 23 está passando desapercebida.

Desde que identificamos a atuação da chamada “Securitização de Créditos Públicos” durante a auditoria feita pelo Parlamento da Grécia em 2015, passamos a combater as tentativas de legalização desse esquema fraudulento no Brasil.

Trata-se de uma perversa engenharia financeira, mediante a qual grande parte das receitas estatais não chegará aos cofres públicos, pois é desviada durante o seu percurso pela rede bancária, para o pagamento de dívida ilegal gerada por esse esquema, semelhante a um “consignado”.

Essa figura do consignado é proibida para as finanças públicas, tendo em vista que todos os recursos arrecadados devem chegar ao orçamento público, em cada esfera (federal, estadual, distrital e municipal), sendo totalmente absurdo o desvio de recursos antes que estes alcancem os cofres públicos e passem a fazer parte do orçamento.

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Adicionalmente, a destinação dos recursos orçamentários deve obedecer à Lei Orçamentária aprovada pelos respectivos poderes legislativos (federal, estaduais, distrital e municipais), sendo vedada a vinculação de receitas de impostos a despesas específicas, como determina o Art. 167, IV, da Constituição Federal, ressalvados apenas os casos previstos no referido dispositivo.

Apesar dessa expressa proibição para vinculação de receitas de impostos, o esquema de Securitização já está funcionando em vários estados e municípios e utiliza “contas vinculadas” para segregar receitas de impostos, que são subtraídas e desviadas para o pagamento dos valores mobiliários (recebíveis, derivativos ou debêntures) emitidos para securitizar créditos públicos.

A PEC 23 visa acobertar essas operações que vêm acontecendo de forma ilegal e aplica um verdadeiro golpe à Constituição, modificando dispositivos para autorizar a vinculação de receitas de impostos arrecadados do povo ao esquema fraudulento da denominada securitização. Cabe ressaltar que tal alteração não passou pelo crivo da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados), pois foi acrescentada depois, quando a proposta já havia sido analisada pela CCJ e foi modificada pelo relator da Comissão Especial.

Para não deixar transparecer o danoso alcance do esquema da securitização, os parágrafos 7º e 8º que a PEC 23 pretende inserir ao art. 167 da Constituição têm um texto cifrado. O novo parágrafo 7º diz:

“§ 7º Não se aplica o disposto no art. 167, inciso IV, na hipótese de securitização de recebíveis da dívida ativa.”

Tal dispositivo visa abrir caminho para o esquema de desvio de recursos, na medida em que exclui a aplicação, à securitização, da proibição de vinculação de receitas de impostos contida no citado inciso IV do art. 167 da CF/88.

Assim, sorrateiramente, passa a ficar autorizada a utilização das “contas vinculadas”, que vinculam receitas de impostos ao esquema de securitização, pois é através dessas contas que se processa o desvio da arrecadação tributária durante o percurso dos recursos pela rede bancária (a exemplo do “Contrato de Custódia de Recursos Financeiros e Administração de Contas Vinculadas” da PBH Ativos S/A, e em outros documentos da referida estatal criada para operar o esquema de securitização de créditos públicos em Belo Horizonte).

Por essa razão, é um absurdo tentar incluir tal dispositivo à Constituição, pois ele promove a captura dos tributos pagos pela sociedade e os destina ao esquema de securitização, definhando o orçamento público, que deixará de receber esses recursos desviados.

Conforme definido em portaria do Ministério da Economia (Portaria 429/2020), a securitização pressupõe a emissão de valores mobiliários:

“II – Securitização: operação por meio da qual é efetuada a conversão do contrato de dívida garantido pela União em lastro para títulos ou valores mobiliários a serem emitidos posteriormente;”

O texto do novo parágrafo 8º que a PEC 23 pretende incluir ao art. 167 da Constituição cita os valores mobiliários que serão emitidos por esse esquema e os denomina “recebíveis”, os quais têm vida própria, totalmente distinta do estoque de Dívida Ativa, que serve de mero parâmetro para a sua emissão:

“§ 8º A securitização de recebíveis da dívida ativa deve restringir-se a direitos decorrentes de créditos já inscritos como dívida ativa em data anterior à da securitização e classificados pelo respectivo órgão de cobrança como de difícil recuperação, a partir de metodologia aprovada pelo Tribunal de Contas competente, caso não haja metodologia de classificação já aplicada pelo respectivo ente, anterior ao exercício de 2022.”

Dessa forma, no caso da PEC 23, os “recebíveis” correspondem aos valores mobiliários (derivativos ou debêntures) que serão emitidos e vendidos ao mercado financeiro, os quais passam a ser pagos com as receitas de impostos desviadas para as “contas vinculadas” ao esquema. Enquanto isso, a Dívida Ativa continua sendo cobrada pelas procuradorias e secretarias de Fazenda, como explicado em recente entrevista.

Esses recebíveis são novos títulos ou valores mobiliários emitidos por empresa ou fundo criados para operar a securitização, a exemplo da PBH Ativos S/A em Belo Horizonte. Tais derivativos são vendidos ao mercado financeiro, que, ao comprá-los, promove o ingresso de um recurso aos cofres públicos. Esse adiantamento tem servido de “isca” para que alguns gestores públicos embarquem nesse esquema. Porém, o compromisso assumido para o pagamento desse “adiantamento” tem sido onerosíssimo em todos os locais onde o esquema tem atuado, provocando imenso dano às contas públicas.

No caso da PBH Ativos S/A em Belo Horizonte, por exemplo, o município recebeu R$ 200 milhões de adiantamento (quando da venda dos recebíveis) e, em troca, comprometeu-se a desviar um volume de impostos arrecadados no valor de R$ 880 milhões + atualização monetária (IPCA) + 1% ao mês (sobre os R$ 880 milhões, e não sobre o valor recebido de R$ 200 milhões), como comprovado por investigações da CPI realizada pela Câmara Municipal de Belo Horizonte.

Ao deixar de mencionar, na PEC 23, todos os passos do esquema de securitização, parlamentares estão sendo iludidos, levados a crer que tal esquema representaria alguma solução para a Divida Ativa, que na realidade continuará onde sempre esteve: sendo cobrada e administrada pelos órgãos da administração tributária, enquanto os novos papéis emitidos (recebíveis ou derivativos) irão gerar uma dívida ilegal que passará a ser paga por fora dos controles orçamentários, por meio do desvio do fluxo de arrecadação para as “contas vinculadas” ao esquema, minando de forma gravíssima os orçamentos públicos de todos os entes federados.

Diversos órgãos de controle têm se manifestado contrariamente a esse esquema, a exemplo do TCE-MG (que suspendeu o pagamento das debêntures emitidas pela PBH Ativos S/A), o TCE-PR (que proibiu definitivamente a atuação da PRSEC S/A) e o TCE-PE (que suspendeu leilão da empresa estatal RECDA S/A).

Essa tentativa de incluir o esquema de Securitização na Constituição por meio da PEC 23 irá enfraquecer a atuação dos diversos Tribunais de Contas estaduais que já vêm reagindo e barrando esse esquema em vários estados, o que é temerário para o controle das contas públicas no país.

Securitização - desvio de recursos (elaboração Auditoria Cidadã)
Securitização – desvio de recursos (elaboração Auditoria Cidadã)

O diagrama ilustra o desvio de recursos tributários para investidores privilegiados que adquirem os recebíveis emitidos por esse esquema. No caso da PBH Ativos S/A, o banco BTG Pactual foi o coordenador líder que implementou toda a operação e ele mesmo comprou a totalidade das debêntures que ofereciam juros de 23% ao ano! Contribuintes continuarão pagando os seus tributos normalmente junto à rede bancária, porém parte desses recursos será desviada para as “contas vinculadas” ao esquema antes de alcançar os cofres públicos.

Portanto, esse mecanismo da chamada “securitização” promove o desvio de recursos públicos por fora dos controles orçamentários, afetando negativamente os orçamentos públicos e prejudicando todas as gerações atuais e futuras. Enquanto isso, bancos e investidores privilegiados passam a se apropriar diretamente dos tributos pagos pela sociedade, antes que estes alcancem os cofres públicos.

Apelamos a todos(as) parlamentares federais para que rejeitem os parágrafos 7º e 8º que estão sendo inseridos ao art. 167 da CF, conforme novo texto da PEC 23.

 

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida e membro titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB.

1 COMENTÁRIO

  1. Muita clareza nas explicações. Parabéns pela oportunidade da situação. O que chama atenção é, desde muito tempo, o atrelamento dos tribunais de contas aos esquemas do chefe do poder executivo, quando são transformados em verdadeiras secretarias de estado. O estado do Rio de Janeiro, o Rio Grande do Sul e Minas, para ficar nesses 3 exemplos, estão nessa situação falimentar em parte, se deve a omissão do legislativo e seu órgão auxiliar o tribunal de contas.

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