Perdas e danos: o caso da AES

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É sempre difícil avaliar o montante de indenizações financeiras, porque esta avaliação é influenciada por critérios subjetivos e por opções metodológicas e requer, também, a utilização de hipóteses sobre valores virtuais. Assim, quando os bancos anunciam que vão perder alguns bilhões de reais com as recentes medidas do governo de aumento do depósito compulsório, é claro que não se trata de prejuízos reais, mas de prejuízos virtuais equivalentes ao que eles, os bancos, deixarão de ganhar com a adoção das novas regras.
Povos e nações também poderiam exigir indenizações se vivêssemos em um mundo cooperativo e solidário. Os prejuízos que nos estão sendo impostos, aos brasileiros, em duas décadas de globalização financeira deveriam estar sendo calculados. Poderíamos cobrar indenização por perdas materiais, objetivas e reais, e também por perdas potenciais.
Na economia, por exemplo, temos um sinalizador imbatível – o Produto Interno Bruto (PIB) – que mede a quantidade de bens e serviços que a nação produz anualmente. Dispomos também do PIB per capita, que representa a fração ideal a que cada cidadão teria direito se essa produção fosse distribuída igualmente por todos os brasileiros. Uma visão rápida da evolução deste segundo indicador ilustra bem os prejuízos que amargamos há 20 anos.
Na verdade, o nosso PIB per capita diminuiu nas duas últimas décadas Medido em dólares constantes de 2002, ele passou de US$ 4.200 para pouco mais de US$ 2.400, entre 1981 e 2002. As piores perdas ocorreram na década de 1990, quando o sistema econômico foi neoliberalizado e o sistema político foi capturado pelos representantes do grande capital internacional, que já estavam organizados em torno de três instituições pouco analisadas pelos teóricos da globalização, e pour cause! Pensamos especificamente nos fundos de pensão, nos paraísos fiscais e na dívida externa dos países periféricos.
Os fundos de pensão, geridos por bancos e seguradoras, são instituições autorizadas a captar a poupança de milhões de pessoas e a colocá-la nos circuitos financeiros mundiais. Seus gestores recebem polpudas comissões e manipulam fantásticas somas de dinheiro, pois apenas os fundos de pensão norte-americanos já acumulavam, em 1995, ativos superiores a US$ 4 trilhões, é o que diz J. Nikonoff em seu livro La comédie des fonds de pension.
Outra instituição típica da globalização são os paraísos fiscais, antigos abrigos dos piratas e corsários de todos os impérios, que se tornaram, no século XX, um refúgio seguro para fortunas construídas “ninguém sabe como”; são territórios onde os donos de títulos e valores mobiliários permanecem incógnitos, protegidos pelo triplo segredo bancário, comercial e profissional.
O terceiro elemento central da globalização financeira é a dívida externa dos emergentes, que já se aproxima dos US$ 3 trilhões; os papéis representativos dessa dívida circulam no cassino global e oferecem altos lucros especulativos para os possuidores de coringas, isto é um certo poder na formação das taxas de câmbio e das taxas de juros.
O grupo AES/American Energy utilizou todos os trunfos colocados à disposição do grande capital financeiro quando resolveu retornar ao Brasil para participar dos leilões das elétricas nos anos 1990. Assim como a Amforp – American & Foreign Power, que veio para o Brasil na década de 1920 e se tornou um dos maiores conglomerados do setor energético, a AES conseguiu construir em alguns anos uma posição relevante no setor de energia, apesar de um capital inicial modesto, pouco mais de US$ 200 milhões. Iniciou adquirindo a maior distribuidora nacional, a Eletropaulo, em 1996.
Depois da Eletropaulo, a AES lançou-se à conquista do controle da Central Elétricas de Minas Gerais (Cemig) em processo marcado por escândalos e por uma CPI que trouxe ao conhecimento público vários procedimentos que alavancaram sua meteórica expansão no Brasil.
Selecionamos três deles: a) criação de uma vasta rede de holdings, subsidiárias, sociedades de propósito específico etc., muitas delas situadas em paraísos fiscais; b) realização de parcerias estratégicas como, por exemplo, com o fundo 524 Participações, do grupo Opportunity, que é gestor em nome do Citigroup, do CVC-Citicorp Venture Capital e do qual também fazia parte o fundo de pensão dos empregados da Cemig, o Forluz; c) emissão de dívida externa superior a US$ 1 bilhão, em bônus e empréstimos liderados pelo Bank of Boston e pelo J.P. Morgan, contraídos como pré-pagamento de exportações.
Assim, funcionando como um microcosmos das altas finanças, a AES nada mais fez, na verdade, do que utilizar em benefício próprio os recursos garantidos pelas instituições centrais da globalização financeira: paraísos fiscais, fundos de pensão e dívida externa. E é por isto que nós deveríamos olhar a AES como um protótipo, um caso exemplar das perdas e danos causados aos países periféricos em tempos de globalização.
No mercado interno a AES tomou empréstimos no BNDES, que já somam R$ 1,7 bilhão, e emitiu mais de R$ 1 bilhão em debêntures repassadas a investidores institucionais, dentre os quais os fundos de pensão. Protegida por contratos de privatização considerados “perniciosos, mal feitos e prejudiciais aos interesses do setor público” (jornal Valor Econômico de 19/02/2003), a AES tornou-se insolvente com o BNDES em 2002.
A dívida com os debenturistas foi renegociada a uma taxa de juros elevadíssima, gerando encargos financeiros que deverão provocar mais inflação e mais recessão. Por isto, pode-se afirmar que a gestão do grupo AES no Brasil, mais do que temerária, tem sido ineficiente.
À conta das perdas e danos que nos foram causados por este grupo norte-americano estruturado em torno da AES, devemos contabilizar ainda a demissão de mais de 6 mil funcionários, só na Eletropaulo. Mas também houve dano na tentativa de impor à Cemig um acordo de acionistas falho juridicamente, o qual já foi denunciado pelo governador Itamar Franco.
Aliás, a compra dos 33,3% da Cemig foi vista como um verdadeiro negócio da China, pois a metade do valor do lote de ações à vista foi financiado em dez anos pelo BNDES, a juros de 3,35% ao ano, e a outra metade foi coberta por nota promissória para pagamento em um ano sem juros e sem correção monetária! O leilão teve um único participante, a Southern, que, logo depois, transferiu suas cotas para a Cayman Energy Traders, holding da qual a AES Co. detinha 49% das ações (revista CartaCapital de 09/06/1999).
Para comprar a geradora AES Tietê, a AES criou outra holding, a Energipar, com recursos obtidos no mercado interno mediante emissão de debêntures. Esta geradora é uma empresa saudável financeiramente e a única do grupo que, juntamente com a Eletropaulo, poderia ser dada como indenização ao BNDES.
Mas, além dos prejuízos econômico-financeiros de que tratamos acima, como avaliar as perdas e danos que sofremos durante a invasão dessas megaempresas, levando a uma década inteira de retrocesso econômico? Qual o custo social da desarticulação do sistema econômico e da perda de qualidade no funcionamento dos órgãos públicos? Como estimar danos éticos e morais?
A AES é apenas um exemplo. Foram muitos, e de valor incalculável, as perdas e danos que esses conglomerados, atuando em forma de trustes e cartéis, nos impuseram. Devemos dar um basta a tais práticas neocapitalistas, a exemplo do que já foi feito por nossos governantes nas décadas de 1930, 1950 e 1970. Chega de sofrer espoliação internacional!

Ceci Vieira Juruá
Economista e pesquisadora, diretora do Sindicato de Economistas do Rio de Janeiro.

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