Pixote e o general

Pixote, dos anos 80, o mais honesto filme sobre crianças de rua e assustadoramente profético do futuro urbano do Brasil. Por Umberto R. Andrade

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cena do filme Pixote, a Lei do Mais Fraco
Pixote, a Lei do Mais Fraco (cena do filme)

Nas pontas dos pés rodopiei, atendendo às ordens de Pixote. “Sai do carro, levanta a camisa. Onde você mora? Quem é esse outro rapaz?” O carro foi revistado. Pixote portava uma pistola pronta para disparar. Ao seu lado, outro jovem exibia uma submetralhadora antiga, sobre a qual, naquele momento, não cabiam dúvidas de sua capacidade de nos tirar a vida.

Eu e meu filho havíamos entrado no Complexo de Israel, seguindo orientação do Google Maps, que nos levara por ruelas de Vigário Geral e Parada de Lucas. Encontramos algumas barreiras, canos, poltronas velhas e um bem elaborado obstáculo feito de pneu e cimento, que eu mesmo removi. As famílias transitavam desassustadas. Um morador apenas aconselhou que ligássemos o pisca-alerta. Passamos por um vigia que também portava uma pistola. Eu havia caído na boca do lobo.

Nunca, mesmo nos sonhos mais fantásticos, Pixote havia imaginado fazer um veterano general, antes prestigiado, dançar qual uma bailarina, indefeso, disciplinadamente, para provar que não era uma ameaça para o seu negócio. Pediu o celular, que exibia o infame navegador e um inocente WhatsApp. O celular foi devolvido e ainda fomos escoltados por uma moto nova que indicou o rumo da Av. Brasil. Gentilmente o motoqueiro conduziu o “coroa” e seu filho para fora da armadilha. Estávamos salvos.

E se fosse o general Braga Neto, que comandou a aparatosa intervenção na Segurança do Rio de Janeiro? O vice-rei, embevecido com o interminável desfile de autoridades em seu gabinete, convenceu-se que podia ser o próximo treinador do capitão.

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E se fosse o governador Cláudio Castro? Este, soberbo pelo galanteio de prefeitos e poderosos, prefere espetaculares operações com blindados e helicópteros. O governador era mais desconhecido que Pixote dos anos 80, o mais honesto filme sobre crianças de rua e assustadoramente profético do futuro urbano do Brasil. Mesmo tantos anos após ter sido produzido, o filme infelizmente ainda retrata uma realidade social presente no Brasil.

O vigia por que passamos usava um binóculo sem nenhuma sofisticação para suas Operações de Inteligência. Acintosamente, se exibia armado e diligente. A polícia tem sistemas inteligentes e todo um aparato de custosas e refinadas tecnologias. O comando da polícia sabe onde o território nacional é negado aos nacionais. Um policiamento ostensivo e rigoroso criaria dificuldades óbvias a estas manifestações de impunidade. No mesmo dia, encontramos um policiamento eficiente em vias de maior movimento e principalmente na Zona Sul.

Dancei, mas dança alegremente toda a classe média quando viaja a Miami e tem que passar por constrangimentos como scanners, raios-x e mau humor de agentes de imigração americanos. Dançou recentemente o filho do capitão, quando entrou na Flórida, e que agora vai se licenciar do mandato na Câmara para ficar nos EUA e se dedicar em tempo integral a convencer o governo Donald Trump a atuar pela anistia dos envolvidos nos ataques do 8 de Janeiro. Sua agenda vai ainda tentar obter sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo sobre golpe de Estado no qual o ex-presidente Jair Bolsonaro foi denunciado.

Há quem esteja convencido de que a morte sumária de bandidos seja uma solução definitiva e que o lugar desses criminosos é na cadeia. Apenas cabe lembrar que políticas públicas inclusivas poderiam complementar as ações aparatosas do governador e evitar que Pixote seja imediatamente substituído por algum daqueles jovens que a tudo assistiam da calçada, como quem assiste a uma cena comum para a vizinhança ordeira: a senhora que vai ao mercado e se queixa da inflação, a criança que volta sem aula e educação da escola, e o pai que não vê esperança para seu filho.

Umberto R. Andrade é oficial general reformado e Ph.D. pela Universidade da California, San Diego.

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