Poder informacional e competição entre potências

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Big data (imagem Pixabay)
Big data (imagem Pixabay)

Em tempos de arsenais com capacidades nucleares de alcance global e populações impregnadas pelo nacionalismo, o custo político, econômico e militar de realizar ocupações em outras nações para impor a própria vontade nacional foi se tornando cada vez mais proibitivo.

Ao longo do século XX, as experiências dos norte-americanos nas Filipinas, Vietnã, Afeganistão e Iraque, dos russos no Afeganistão, dos franceses na Indochina e Argélia ou dos portugueses em Angola e Moçambique são exemplos do elevado preço a ser pago ao se tentar ocupar diretamente regiões do globo cuja população em algum momento passou a almejar a própria independência.

Claro que existem exceções à regra, como nos casos em que se deseja mais o território do que sua população, como é o caso de Israel na Cisjordânia ou da China no Tibet. Mas, mesmo nestas ocorrências, tem sido um grande desafio para a potência conquistadora expropriar o território de seus antigos ocupantes sem incorrer em genocídios.

Essa mudança comportamental provocada pelo nacionalismo é um evento histórico “relativamente” recente, advindo da Revolução Francesa, com a invenção do conceito de nação. Até então, sob a égide das monarquias, as terras mudavam de “propriedade” a partir das guerras, em que o jogo do conflito era reservado à nobreza. A população do território podia ter maior ou menor identidade com a “casa” reinante, mas se comportava como parte da propriedade em si, vez que era completamente excluída da política.

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Com a incorporação das amplas massas neste campo, a partir do exemplo francês e do norte-americano, os territórios passaram a ser percebidos como um patrimônio comum de toda a sociedade que nele existia, e não de uma família ou classe. Ou seja, os segmentos populares passaram a se importar cada vez mais com o destino de suas recém-criadas nações. Esta procura pela identidade nacional, que ganhou um primeiro impulso depois das guerras napoleônicas, mudando o panorama da Europa e América do Sul, tornou-se um fenômeno global depois da Segunda Guerra Mundial.

Evidentemente, os conflitos continuaram a existir como instrumentos de resolução de diferenças, mas as guerras coloniais e de conquista, em que se tenta incorporar e depois manter um novo território ao corpo de uma nação, tornaram-se cada vez mais dispendiosas e dependentes da capacidade do ocupante de deslocar sua própria população para o terreno ocupado.

Como alternativa às relativamente ineficazes medidas militares, principalmente a partir do período de hegemonia norte-americana, tornou-se praxe intervir com o poderio informacional disponível, tentando mobilizar parte da sociedade do país a ser “colonizado” para a defesa dos interesses da potência atuante. Assim, a partir da segunda metade do século XX ficou evidente para parte das elites dirigentes das principais potências que seria menos oneroso alavancar contradições internas nos países a serem predados, do que empregar os onerosos meios bélicos tradicionais.

O imperialismo clássico, com ocupação militar e prepostos exercendo o poder, se tornou um anacronismo, tendo sido “quase” eliminado do portfólio das ferramentas de exercício de poder por parte dos grandes atores globais. Os casos de intervenção direta somente reforçaram a relevância da prevalência estratégica da atuação na esfera informacional.

Por conseguinte, no lugar das ações diretas, o poder informacional passou a ser um dos instrumentos privilegiados para intervir em outras nações com o fito de promover os interesses da potência agressora. Neste sentido, uma das vantagens fundamentais deste instrumento seria sua opacidade, sendo desenvolvido justamente para não ser identificado como poder.

Com esta característica, na prática, os setores nacionalistas são impedidos de perceber interesses diversos dos de sua própria nação que estejam contidos sub-repticiamente nas ferramentas informacionais que fortuitamente surgem, advindas, pretensamente, do simples acaso tecnológico.

Na sua expressão passiva, aparece em ocorrências aparentemente banais, como nos critérios de ordenamento do resultado das buscas na internet, em que um tipo de resposta é encontrado e outros não, na seleção de vídeos mais bem ranqueados, na obtenção de dados coletados por aplicativos, na língua utilizada na programação de softwares, nos conceitos econômicos embutidos nas redes, no idioma predominante no ambiente acadêmico, na localização física dos principais centros conectores das redes globais, nas nações que controlam os domínios de sites, no protocolo de rede utilizado, nas empresas que controlam as transações de crédito e débito, nos países que administram os satélites que ordenam o posicionamento geográfico global.

Quase tudo aparentemente isento, pouco observável, calcados na ideologia de que as escolhas técnicas são indiferentes dos objetivos políticos.

Tomando como exemplo o TCP-IP, que é a pilha de protocolos que ordena o tráfego de dados na internet. Há aproximadamente 40 anos a Advanced Research Projects Agency (Arpa) e o Office-of-Net-Assessment do Departamento de Defesa dos EUA (DoD) tinham como um de seus objetivos ajudar a projetar (conceitualmente) uma rede de comunicações globais que tirasse o poder que a geografia exercia sobre as comunicações.

Tradicionalmente, as comunicações dependiam da estrutura física das operadoras de telefonia, que se disseminavam mediante ramificações regionais e troncos centrais a partir das diversas nações do planeta. Todos os Estados nacionais controlavam suas comunicações, pois estas eram determinadas apenas por sua estrutura física, mediante arquiteturas hierárquicas dentro de suas próprias fronteiras.

Com o TCP-IP, isso mudaria completamente, pois as mensagens são fragmentadas em múltiplos pacotes e enviadas de forma redundante por diversas redes digitais. Quem monta a mensagem é o software e a empresa que o possui, secundarizando totalmente as redes físicas por onde o dado trafega. Assim, ao conversar por um aplicativo ou enviar uma mensagem, como a maior parte destas ferramentas é de empresas norte-americanas, bem como os nós centrais da rede, obrigatoriamente as mensagens passarão por território desta nação.

Aparentemente, quando o Departamento de Defesa dos EUA ofereceu seu custoso protocolo para implementação gratuita por todos, tornando inclusive seu uso obrigatório para seus fornecedores, poucos perceberam as profundas questões envolvidas. Quem imaginaria que um simples protocolo de rede teria sido projetado objetivando acabar com o poder das operadoras de telefonia e para transferir este controle para o Vale do Silício?

Todavia, a escolha estava embutida na tecnologia adotada, e por não ser facilmente percebida, na prática foi imposta. Aliás, neste ponto cabe uma observação. Escritórios como o de Net-Assessment do Departamento de Defesa dos EUA planejam conceitos tecnológicos de demorado desenvolvimento, que sejam rupturais, e cujas recompensas propiciem enormes ganhos em escala planetária.

Outra dimensão na esfera informacional envolve as medidas ativas, que são lastreadas pelo controle ou hegemonia na estrutura acima descrita. Nesta faceta são empregados instrumentos que são utilizados secularmente nas guerras e disputas, como a desinformação, mas em um contexto em que seus efeitos são exponencialmente ampliados pela onipresente arquitetura informacional disponível.

Desta maneira, neste receituário são empregadas operações psicológicas extremamente abrangentes apoiadas em enormes repositórios de dados sobre os indivíduos (big data), que permitem entregar propaganda personalizada pelas redes sociais a dezenas ou centenas de milhões de pessoas. Mesclado a isso tem-se o uso dos veículos de comunicação clássicos, como rádios, jornais ou televisão, que também são propagados pelas redes, com seu conteúdo repassado a partir de aplicativos de conversação.

Os referidos aplicativos para conversação permitem igualmente a divulgação ampla de boatos, que são mais legitimados ao serem distribuídos por pessoas conhecidas. Sites, grupos políticos, jornais digitais nascem divulgando desinformações e desaparecem tão repentinamente quanto surgiram. Em operações de longo prazo, filmes, livros ou artigos acadêmicos são produzidos para dar suporte ao cenário ficto construído.

Este conjunto de ações concomitantes é conhecido como “orquestração”, pois objetiva fragmentar um cenário a ser entregue ao público-alvo, tal qual um quebra-cabeça. Mais do que prover certa dificuldade, descobriu-se que para que este conjunto de medidas funcione é determinante que o alvo da ação considere que chegou às “próprias” conclusões “por si mesmo”. Parte das premissas de que o esforço pessoal gera comprometimento, e de que a sensação de poder determinar o que acontece ao seu redor, por mais complexo que o mundo se apresente, cria um vínculo emocional com as escolhas realizadas, fixando-as.

Normalmente, estas operações mesclam desinformação com informações verdadeiras, de maneira que as últimas legitimem as primeiras. Empregam igualmente a divulgação de um grande volume de “lixo” informacional, limitando a capacidade dos indivíduos de receberem informações novas, ou de descobrirem outras fontes.

Tais medidas ofensivas normalmente são operadas por agências de inteligência, que muitas vezes atuam em coalizão com agências aliadas, utilizando também empresas privadas, organizações não governamentais e/ou grupos de hackers como intermediários (buffers), de maneira a ocultarem sua própria participação.

Tendo em vista o inacreditável grau de sofisticação que empregam, com a continuidade, e o tempo, grande parte dos indivíduos selecionados como alvos tende a sucumbir a este tipo de ação, ao menos em curto prazo. Normalmente os alvos não são selecionados somente pela afinidade ideológica com algum ponto do espectro político, mas principalmente pelo grau de sua fragilidade social.

Bons exemplos seriam a minoria russa na Ucrânia, os trabalhadores fabris do cinturão de ferro norte-americano ou parcela da empobrecida classe média brasileira. A narrativa sempre envolverá o nós contra eles. Pobres versus ricos, ou nacionalistas antagonizando liberais. No entanto, a temática preferida sempre será a da corrupção, vez que se associa diretamente a outro pré-requisito para o bem sucedido uso de desinformações, que é o chamado “desejo de acreditar”. Ou seja, a exploração de temáticas cujo público-alvo tenha predisposição em aceitar como verdade. Dada a herança patrimonialista das organizações sociais humanas, nada mais naturalizável que “corrupção”.

Nestas operações de informação, muitas vezes, mais do que promover a vitória de uma posição, deseja-se que o conflito perdure o maior tempo possível, paralisando o desenvolvimento da nação afetada. Os resultados tendem a ser bastante efetivos, inclusive sob o prisma econômico. Para os investidores, poucas questões são mais relevantes do que a previsibilidade, e é impossível obter este bem quando metade da população avalia que foi furtada pela outra metade.

Embora tais operações de informação ou guerras híbridas sejam extremamente efetivas, nem todas as nações estão a sua mercê em um mesmo nível. Quatro elementos possuem grande relevância no combate ou diminuição da exposição a este tipo de fenômeno. Evidentemente, os países que conseguem conjugar o maior número destes meios têm grande vantagem sobre seus competidores, até porque possuem grande interdependência.

Tais elementos são a posse de agências de inteligência de sinais e de contraespionagem sofisticadas; a consolidação de objetivos nacionais de longo prazo que galvanizem uma sociedade inteira; o estabelecimento de um parque nacional de tecnologia da informação/defesa; e a imposição de filtros e censura. Evidentemente, este último item é mais difícil de ser empregado por países democráticos, mas não perde sua efetividade pela valoração moral que possa receber.

Nos próximos artigos tentaremos analisar com mais detalhes estes quatro elementos.

 

Vladimir de Paula Brito é doutor em Ciência da Informação.

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