Políticas de intervenção seletiva

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O brasil carece de tradição de análise de políticas públicas e sociais. As avaliações foram sempre carregadas de ideologia e adjetivos, e a apreensão da experiência, substituída pela rotulagem grosseira: políticas conservadoras, neoliberais, de esquerda, progressistas. A validação das experiências é predeterminada pela fonte de inspiração, e não pelos resultados alcançados. Felizmente esse quadro começa a mudar, e o debate volta-se para a discussão de como desenhar e conduzir políticas consistentes e que produzam os resultados esperados.
Algumas políticas são universais e seu alcance é um indicador relevante para saber se foram bem ou malconduzidas. Não adianta combater a dengue apenas em bairros pobres, ignorando que o mosquito transmissor se reproduz em vasos de casas ricas e pobres. Também não se pode aceitar, sob o argumento de realismo, que crianças oriundas de famílias pobres não recebam os oito anos de escolaridade básica – ou que essa seja de má qualidade.
Todavia algumas políticas sociais são ou devem ser seletivas, voltadas para o atendimento de um grupo específico de pessoas, cujas características podem ser conhecidas antecipadamente ou reveladas ao longo de um processo de seleção.
A intervenção fundiária, por exemplo, é claramente uma política de  intervenção seletiva quando se toma como objetivo primordial a sustentabilidade dos projetos de assentamento dela decorrentes. As economistas Carolina Homem de Mello e Daniela Pires, com base em estudos de avaliação do Programa Cédula da Terra, mostram como a seleção de um subgrupo de famílias – que, além de pobres e sem terra, atendam a outros requisitos, tal como ter experiência profissional relacionada aos objetivos do programa – pode aumentar a probabilidade de sucesso da intervenção fundiária.
Para um amplo leque de políticas de intervenção seletivas, encontrar,  dentro da população de beneficiários em potencial, o subgrupo adequado (“targeting”) é fundamental e uma arte. Métodos de seleção técnico-burocráticos, baseados em controles centralizados, são custosos e ineficientes: ninguém declara contra seu próprio interesse, e é impossível captar o comprometimento dos candidatos com os objetivos do programa. O desenho das políticas deve conter mecanismos de foco afinados para estimular a adesão dos melhores beneficiários dentre o grupo-meta.
Uma alternativa é associar a adesão a um algum tipo de custo que funcione como filtro e que esse evidencie a disposição para participar do programa.
A natureza e a magnitude do custo variam de caso para caso, mas uma regra básica é que ele deve ser mais elevado que os benefícios imediatos proporcionados pela simples adesão ao programa e que sua natureza seja suficiente para barrar o oportunismo. A exigência de cobrança de parte do financiamento obtido pelas associações de beneficiários do Programa Cédula da Terra para compra da terra e para projetos comunitários tem esse objetivo.
Outro mecanismo é exigir participação em grupo e criar espaços para que mecanismos de auto-seleção surjam no seio da própria comunidade. Os mecanismos gerais definem responsabilidades, benefícios e punições de tal forma que os próprios participantes façam escolhas entre si e barrem os oportunistas. Bem focado, um programa seletivo contará com o apoio dos próprios interessados.
Não é suficiente definir o público-meta, mas, sim, criar mecanismos  efetivos de focalização e seleção. O crédito rural sempre priorizou os produtores familiares, definindo até condições especiais de acesso. Nunca foram adequadas, pois se sabe que os recursos alcançavam parcela reduzida de produtores. Não faltavam vontade política ou recursos para os pequenos, mas um foco adequado.
É preciso reconhecer que intervenções seletivas são, de partida,  discriminatórias.
É natural que quem fica de fora proteste e reclame, mas seletividade não pode ser confundida com qualquer tipo de viés conservador, tecnocrático, contrário aos movimentos sociais, cuja participação é a peça central na definição de prioridades e na formulação das políticas. O empenho para receber os benefícios deve estar ligado à idéia de compromisso e estar apoiado na consciência de que os fracassos devem e podem ser atribuídos ao desinteresse e ao desleixo em sua condução, seja por parte dos governos, seja por parte dos beneficiários.
No momento temos uma “onda” de preocupação social. Com o tamanho do  problema, são necessárias ações sistemáticas e um diálogo contínuo entre formuladores e beneficiários. Estudos de focalização são instrumentos válidos para que se possa ir além da simples redução da pobreza, pois cada família que escapa da condição de extrema pobreza aprende no processo e passa a reivindicar o acesso a novas políticas sociais.

José Maria da Silveira e Antonio Marcio Buainain
Professores do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadores do Núcleo de Estudos da Agricultura.

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