Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira

1966

O artigo “O que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4/5/2020, é uma coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos positivistas no Brasil; praticamente todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável.

Aliás, não por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos – estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na mesmíssima senda anda Rodrigo Constantino, celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” – da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma competição, tolices e erros sobre o Positivismo.

Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798–1857), fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de política positiva (1851–1854), em que, repetindo várias considerações pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva, 1830–1842), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser pacifista e civilista, que as Forças Armadas devem ser dissolvidas e que as forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública.

De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e espiritual, em que o Estado não tem religião oficial, e as religiões não se beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de expressão e de associação são a base da organização social e política e esta, por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos regulada pela força física.

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Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes” é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos. Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia, há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos.

Augusto Comte dizia com todas as letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às opiniões e avaliações da opinião pública.

Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos; sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.

A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-diretor da Igreja Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855–1927), tinha em mente os valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e Progresso” na bandeira.

Aliás, nas centenas de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854–1917, diretor da IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org)

O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836–1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar por necessidade, como se vê na monumental biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como militares) da vida política nacional e ocidental.

Exatamente por isso, Benjamin Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam a politização das Forças Armadas e a militarização da política. Entre esses militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista general Pedro Aurélio de Góis Monteiro (1889–1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964, como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900–1972).

No regime autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista “liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917–2001); apesar de “liberal”, ele foi ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de “tecnocrata”.

Todas essas informações são públicas e disponíveis para consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias, terciárias, quaternárias… Uma informação mais difícil de obter, todavia, são as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho – como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964: para eles, quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas” (não por acaso, chamavam Góes Monteiro de “Gás morteiro”).

O tecnocrata autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova direita brasileira – incluídos aí o ministro da Economia, Paulo Guedes, o astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém sem patriotismo, um “entreguista”, que, aliás, até o fim de sua vida desejava vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros.

Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas.

Embora seja possível incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902–1982), fundador do Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade de indicar e refutar, Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio Teixeira Mendes!

Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi, entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros: politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias político-religiosas etc.

Eles atribuem ao Positivismo a militarização da política, mas, ao mesmo tempo, apoiam um governo que se caracteriza exatamente por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás, fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9/3/2020 por um dos filhos do presidente da República.

Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação; os golpes dirigidos contra o Positivismo e os positivistas servem apenas para (tentar) disfarçar a própria política antirrepublicana e anticívica seguida pela direita nacional.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda

Positivista ortodoxo, é doutor em Sociologia Política.

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