Precatórios são dever de Estado, não moeda de troca política 

Adiamento de precatórios expõe fragilidade institucional e amplia incertezas para credores e o sistema de justiça Por Gilberto Badaró

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Estátua representando a justiça (foto de Ezequiel Octaviano, Pixabay)
Estátua representando a justiça (foto de Ezequiel Octaviano, Pixabay)

O novo adiamento da resolução definitiva dos precatórios por parte do Governo Federal representa um agravamento da insegurança jurídica e um retrocesso institucional significativo. O precatório é fruto de uma decisão judicial definitiva, cujo não cumprimento viola o princípio da separação dos Poderes e esvazia a autoridade da coisa julgada. O impasse, contudo, não é simples: de um lado, há a obrigação constitucional de pagar até o final do exercício seguinte; de outro, a limitação fiscal imposta pela Emenda Constitucional 113 de 2021. Esse dilema evidencia a falência de um modelo de gestão que, ao tolerar a litigância excessiva por parte da União, acaba por reprimir os efeitos dessa judicialização através de postergações orçamentárias. 

De maneira prática, o adiamento da resolução definitiva causa impactos múltiplos e negativos aos credores, especialmente àqueles que há anos aguardam pelo recebimento. Há uma frustração de expectativas legítimas, em especial nos casos de precatórios alimentares ou de empresas que dependem desses valores para garantir a sua manutenção. Além disso, há uma desvalorização dos créditos, uma vez que a demora no pagamento implica uma redução real do poder aquisitivo desses valores, corroídos pela inflação e pelas oscilações econômicas.

O adiamento também fomenta o mercado paralelo de cessão de precatórios, muitas vezes operando com deságios elevados que prejudicam os credores originais e alimentam uma indústria que lucra com a fragilidade do sistema. Soma-se a isso a sensação de descrédito na Justiça, pois sentenças transitadas em julgado passam a ter eficácia meramente condicional, sujeitas ao cenário fiscal e político. 

A Constituição, no artigo 100, é clara ao determinar que os precatórios devem ser pagos até o final do exercício seguinte ao de sua inclusão orçamentária. Entretanto, essa regra foi mitigada pela EC 113/2021, que instituiu um subteto para os pagamentos, permitindo o parcelamento do excedente. Embora essa solução tenha sido aprovada pelo Congresso Nacional, ela não resolve o conflito jurídico de fundo, pois continua adiando o cumprimento de decisões judiciais e, consequentemente, desafiando o núcleo essencial da Constituição. A judicialização do próprio pagamento dos precatórios e as decisões que autorizam a quitação fora do teto são sintomas claros desse descompasso entre a ordem constitucional e a execução orçamentária. 

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O atual cenário político reforça a percepção de que uma decisão definitiva sobre a compatibilização do pagamento dos precatórios com o teto de gastos dificilmente será tomada antes das eleições presidenciais de 2026. A tendência é que a estratégia de postergar a resolução do impasse prevaleça até 2027, quando será possível vislumbrar uma efetiva compatibilização entre o pagamento dos precatórios e a política fiscal estabelecida pela Emenda Constitucional 113. 

Na busca por uma solução responsável e juridicamente segura para o impasse atual, é imprescindível que o Estado brasileiro adote uma gestão pública mais eficiente e menos litigante. A União e suas autarquias devem repensar a cultura de recorrer sistematicamente, inclusive em causas que já são, em tese, perdidas, pois tal prática apenas cria passivos desnecessários e alimenta o ciclo vicioso da judicialização. 

A atuação da Advocacia Pública deve priorizar soluções extrajudiciais, com a celebração de acordos administrativos e a promoção de autocomposição. Paralelamente, é necessária a revisão de gastos improdutivos e a requalificação de despesas públicas. O problema dos precatórios não reside exclusivamente no valor global das dívidas, mas na priorização orçamentária de outras rubricas que, muitas vezes, são menos urgentes ou pouco eficientes. É preciso enfrentar a ineficiência administrativa, cortar gastos supérfluos e rever incentivos fiscais que não resultam em benefícios concretos para a sociedade. 

É indispensável que se preserve o equilíbrio entre os Poderes. O Executivo não pode continuar tratando o cumprimento de decisões judiciais como uma variável fiscal opcional, enquanto o Supremo Tribunal Federal deve assegurar o respeito ao texto constitucional com coerência, evitando decisões que ampliem a sensação de insegurança e instabilidade. 

O cenário atual, portanto, evidencia um grave descompasso entre a ordem constitucional e a prática orçamentária do Estado brasileiro. O pagamento dos precatórios não deve ser tratado como uma simples escolha política ou como um instrumento de ajuste fiscal, mas sim como uma obrigação jurídica inderrogável. Cabe ao Estado, por meio de reformas estruturais e de uma gestão mais eficiente, garantir a sustentabilidade fiscal sem que isso implique o sacrifício de direitos fundamentais ou a corrosão da integridade do sistema de Justiça. O futuro da credibilidade das instituições e da segurança jurídica no país depende diretamente dessa mudança de postura e de compromisso com a Constituição.


Gilberto Badaró é advogado especialista em precatórios e sócio do Badaró Almeida & Advogados Associados. 

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