Preparando o Estado para Soberania: da senhoriagem à moeda do Facebook

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Os economistas franceses denominam o período que vai desde o fim da II Grande Guerra até as crises do petróleo nos anos 1970 de “os trinta gloriosos”. É o período no qual Charles De Gaulle foi o grande dirigente e imprimiu a orientação industrialista e desenvolvimentista para “la grandeur de la France”.

No Brasil tivemos os “50 gloriosos”, período em que, com alguns intervalos (Café Filho e Castelo Branco) o Brasil teve seus crescimentos industrial e econômico, entre a Revolução de 1930 e a sucessão do General Geisel.

O que caracterizou tanto os 30 quanto os 50 “gloriosos” foi a submissão das imposições monetaristas aos interesses desenvolvimentistas.

Luiz Paulo Lindenmaier (medium.com/@luizpaulolindenmaier/o-b%C3%A1sico-que-voc%C3%AA-precisa-saber-sobre-teoria-moderna-da-moeda-mmt-9b1ab6667072) afirma que muitas pessoas não conhecem “o papel crítico que o governo exerce, enquanto único emissor da moeda nacional, na manutenção da saúde de nossa economia. Alguns economistas têm usado a Teoria Moderna da Moeda (em inglês, Modern Money Theory, ou MMT) para ajudar a explicar estes fatos, mostrando que governos que emitem a própria moeda soberana – como Japão, Reino Unido, Estados Unidos da América (EUA) e também o Brasil – não possuem as mesmas limitações que governos municipais e estaduais no que se refere ao uso da moeda nacional. E isso tem implicações profundas”.

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Libra enfraquecerá os Estados, mas fortalecerá

e muito o Estado Nacional dos EUA

 

E quando se criam moedas virtuais, fora do controle de instituições públicas e sem referências materiais, a situação da economia complica ainda mais. Neste artigo, iremos comentar a moeda, desde sua cunhagem pelo senhor das terras até a que se espera de uma empresa de relacionamento virtual transnacional: Facebook.

O lançamento da cripto moeda do Facebook, que se chamará libra – não se confunda com a libra-esterlina a moeda inglesa que, em inglês, chama-se pound – está previsto para breve. Desde seu anúncio, há poucas semanas, esse é um dos assuntos mais discutidos nos periódicos de economia.

Uma moeda do Facebook assusta a todos, desde políticos a intelectuais, que se preocupam com a soberania dos países, a bancos, que temem um concorrente mais poderoso, e, em especial, aos reguladores do sistema monetário.

Os presidentes dos Bancos Centrais dos EUA e da Inglaterra, entre outros, colocaram diversas objeções e dúvidas sobre a proposta. Até Donald Trump já se posicionou criticamente, aproveitando para tirar uma casquinha para sua sardinha eleitoral, de “nacionalista” e “guardião do dólar”. Trump disse que a “única moeda dos EUA continuará sendo o dólar”, e que o bitcoin e todas essas criptomoedas se “baseiam no nada”.

Toda essa polêmica mostra um pouco do temor que essa revolução monetária está causando no mundo. Sim é uma revolução, mas não da forma como as pessoas estão pensando. As moedas privadas, como as cripto moedas, mesmo se forem emitidas por entidades superpoderosas como o Facebook, não diminuem o poder do Estado como entidade, mas tem imenso impacto na política interna dos países e entre os países.

A emergência da criptomoeda do Facebook terá um grande impacto no poder político do Facebook, que passa a ter muito maior poder econômico e, portanto, político na política interna dos países em que atua. Também afetará a posição econômica entre os países. A moeda do Facebook enfraquecerá os Estados na maior parte do mundo, mas fortalecerá e muito o Estado Nacional dos EUA.

Para explicar as razões por trás dessa conclusão, precisamos tratar da soberania monetária e da senhoriagem. Quando falam de poder econômico e financeiro de um Estado emissor de moeda, os economistas normalmente pensam no termo senhoriagem, originário da época em que as moedas eram cunhadas com metais preciosos.

Senhoriagem, do francês arcaico seigniorage, o “direito do senhor (seigneur) cunhar moedas”, tradicionalmente é definido como a diferença entre o valor de dinheiro e o custo para produzi-lo e distribuí-lo.

Séculos atrás, a senhoriagem era efetivamente um imposto cobrado pela Casa da Moeda do Soberano sobre quem fosse obrigado a trocar metais preciosos por moeda de curso forçado, e assim poder realizar pagamentos no território do soberano, especialmente de impostos. Esse imposto justificava a permanente diferença entre o valor da moeda cunhada e o valor contido nela. Essa diferença representava uma renda do Soberano, medida em metais preciosos.

Hoje não existe mais a moeda cunhada, e a senhoriagem não é mais um imposto formal. Os economistas normalmente chamam de senhoriagem a diversos tipos de definições similares, alternativas como: a receita obtida como resultado do monopólio na emissão de moeda, ou o produto da expansão monetária pelos saldos monetários reais (descontada a inflação), ou o poder de compra da expansão monetária feita pelo Banco Central, ou o poder de adquirir ativos pelo fato de ser monopolista da emissão de papel-moeda ou, ainda, a capacidade que o governo possui de aumentar a receita por meio do seu direito de criar moeda, entre outras.

Todas essas definições buscam traduzir o medieval conceito de senhoriagem ao mundo moderno das moedas de papel, também chamadas, erroneamente em nossa opinião, de moedas fiduciárias ou baseadas na confiança. Na verdade, o valor das moedas estatais não está baseado na confiança, mas no poder.

A tradução usual do conceito de senhoriagem, de certa forma, nos engana por fazermos focar no secundário e deixar passar o essencial. O essencial, o verdadeiro poder financeiro do “soberano”, do Estado, obtido por meio do monopólio de emitir moeda decorre da sua capacidade de gastar, de gastar mais do que arrecada, aliás de gastar tanto e tão à frente dos impostos, que a própria arrecadação de impostos é, em grande parte, resultado indireto e secundário do próprio gasto público, como podemos entender pela Teoria das Finanças Funcionais, que está em moda novamente, mas que não cabe aqui discutir.

 

Será como canalizar um rio Amazonas

de capital do mundo inteiro para o dólar

 

Como as expressões do poder, essa também não pode ser quantificada com precisão matemática, mas apenas para ficar no âmbito das comparações quantitativas e com objetivo didático, a diferença entre o verdadeiro poder de senhoriagem e o poder atribuído na sua versão tradicional pode ser compreendido pela diferença que existe entre o tamanho da dívida pública, em moeda nacional, e o tamanho da base monetária, que no caso do Brasil é 13 vezes maior e na grande maioria dos países supera dez vezes.

Ao contrário do que as pessoas pensam, a origem desse poder não decorre diretamente da arrecadação de impostos ou de algum outro poder que possa ser contabilizado e que poderíamos chamar de financeiro, monetário ou tributário do Estado, mas emerge do poder internacional da sociedade que legitima e sustenta aquele Estado. Ou seja, é um poder da sociedade, ou, melhor ainda, do Estado-Nação em termos técnico-industriais e militares e não do Estado enquanto instituição financeira ou tributária.

O mais relevante a ser entendido agora é que o conceito clássico de senhoriagem, ao contrário do que promete, não ajuda a compreender o real poder que a emissão de moeda traz para o Estado e, na realidade, para a própria sociedade nacional, a Nação, e que as Finanças Funcionais buscam mostrar em todas suas lições.

Por essa razão, as criptomoedas não podem retirar poder do Estado, mas transferir poder entre os grupos sociais que controlam os Estados Nacionais e, em particular, transferir poder entre os Estados Nacionais. O Facebook será muitas vezes mais poderoso do que é hoje.

Suas receitas financeiras devem ultrapassar as receitas com publicidade, que hoje são a base de seus lucros. A libra será usada para fazer pagamentos no pequeno comércio, ao contrário do bitcoin, que é apenas um ativo financeiro especulativo. A sociedade perderá ainda mais poder em relação às redes sociais e seus controladores privados e estatais, e mesmo os bancos tradicionais perderão poder econômico e político. Mas o Estado estadunidense não perderá poder, ao contrário, ganhará, porque a libra carreará um enorme influxo de divisas na forma de renda ou capital para os EUA.

Dessa forma, a libra do Facebook, ao contrário do que imagina a maioria das pessoas, aumentará o poder do dólar. Isso acontecerá porque o Facebook como entidade sem poder militar ou tributário será apenas mais um superbanco regulado pelo poder estadunidense e a seu serviço.

Essa proposição pode parecer abstrata. Mas na prática é simples. Ao contrário do bitcoin e outras criptomoedas que têm uma oferta fixa e imensa oscilação especulativa, a libra está sendo formulada para servir como meio de pagamento generalizado para compras no comércio em geral, com o uso do celular em substituição do cartão de crédito. Por esse motivo, a libra terá que ter estabilidade cambial em relação ao dólar.

Ora, só há uma forma de fazer isso: com o Facebook acumulando uma grande reserva de dólares para poder manter a taxa de câmbio libra-dólar controlada. Dessa forma, toda vez que um cidadão comum estiver comprando libras estará, efetivamente, comprando dólares, porque o Facebook comprará dólares a cada libra que ele trocar por qualquer outra moeda de qualquer país.

As compras de libras implicarão a compra de dólares para as reservas do Facebook. Isso aumentará muito o fluxo de divisas de todos os países onde o Facebook opera para o dólar. Será como canalizar um rio Amazonas de capital do mundo inteiro para o dólar norte-americano, sem contar o controle informacional das informações de compras e patrimônio de cidadãos do mundo inteiro para as agências de espionagem que têm parceria com o Facebook.

O impacto econômico e geopolítico será imenso e será o fortalecimento do poder de senhoriagem e econômico em geral de um único Estado Nacional, os EUA.

 

Felipe Quintas

Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.

 

Gustavo Galvão

Doutor em Economia, é autor do livro As 21 Lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).

 

Pedro Augusto Pinho

Administrador aposentado.

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