Nem bem o Brasil promulgava sua atual Constituição, em 5 de outubro de 1988, a sétima desde 1822, e já se discutia, nos meios políticos e jurídicos, a sua reforma.
Portugal, após a Revolução dos Cravos, também elegera a assembleia que elaborou a Constituição de 25 de abril de 1976, que, naqueles 12 anos de vigência, já tivera uma revisão (teria outra em 1989), para arrefecer forte pendor socializante, submetendo Portugal aos princípios da economia de mercado da União Europeia.
O açodamento revisionista brasileiro traduzia o interesse da classe dirigente em adequar a principal lei do país às imposições do “Consenso de Washington”, que seria divulgado em novembro de 1989, mas cujos princípios vinham norteando a “redemocratização” brasileira desde o início da década, no Governo de João Figueiredo.
Duas orientações da Constituição de 1988 provocavam campanhas midiáticas e movimentos “da sociedade civil”: o tratamento nacionalista com os recursos energéticos (Petrobrás e Eletrobrás) e a manutenção de direitos trabalhistas e previdenciários, oriundos de Getúlio Vargas e confirmados e revigorados nos governos militares, em especial dos presidentes Médici e Geisel.
As privatizações
O governo que teve início em 15 de março de 1990, no curto tempo de dois anos e meio, privatizou as seguintes empresas: Usiminas; Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST); Companhia Siderúrgica Nacional (CSN); Petroquímica União (PQU); Embraer; Telebrás; Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e Light.
Não foi pouco. Tirava-se do patrimônio do povo brasileiro a maior indústria siderúrgica do Brasil e da América Latina e das maiores do mundo (CSN); também no ramo siderúrgico, a CST que responde por 10% da produção mundial de aço.
Pode-se buscar na privatização este desempenho, mas já era expressiva a produção da CST quando foi comprada pela Arcelor. As incorporações e fusões de empresas são resultado do fenômeno da concentração de ativos e rendas, promovido pelas finanças apátridas, utilizando os “gestores de ativos” (BlackRock, Vanguard, States Street, J.P Morgan, Fidelity entre outros).
A privatização da Telebrás, que colocaria sob controle estrangeiro as comunicações nacionais, foi concluída em 29 de julho de 1988, no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), cercado de denúncias de corrupção, sendo a maior privatização ocorrida no Brasil até então, R$ 22,058 bilhões, pelos 20% das ações em poder do governo na época.
A respeito da privatização da CVRD, leia-se do artigo de Vinicius Konchinski, no Brasil de Fato, de Curitiba, em 6 de maio de 2022:
“Já na época da venda, havia gente estimando que a Vale valia até R$ 100 bilhões. O preço da privatização foi subestimado”, afirmou Luiz Paulo Guimarães, coordenador nacional do Movimento pela Soberania na Mineração (MAM). “Hoje, a empresa tem lucro recorde, e o governo não tem retorno com isso”.
“Independentemente do valor, alguém sabe para onde foi esse dinheiro? Ninguém”, complementa a economista e professora da Universidade Federal da Paraná (UFPR) Liana Carleial. “O Estado perdeu receita e poder de investimento a troco de nada”.
E Konchinski conclui: “Em 2015, uma barragem de rejeitos da Samarco Mineração, empresa na qual a Vale tem participação, se rompeu em Mariana (MG), deixando 19 mortos e centenas de desabrigados. O Rio Doce, que passa por ali, foi contaminado”.
“Já em 2019, rompeu-se uma barragem da própria Vale em Brumadinho (MG). O desabamento matou 265 pessoas, sendo duas mulheres grávidas. Cinco ainda estão desaparecidas”.
“É só olhar para essas tragédias e ver que a privatização foi ruim”, afirmou Carleial. “Não é questão econômica que supere isso.”
“A privatização foi um péssimo negócio”, concluiu Guimarães. “A lucratividade hoje impera sobre tudo e os resultados estão aí”.
Até 22 de dezembro de 2022, foram aprovadas 128 emendas constitucionais. Mas desde 1995, com FHC, diversas emendas foram aprovadas para abrir ao capital estrangeiro a aquisição e gestão de bens nacionais nas áreas da mineração, do petróleo, da navegação, das telecomunicações e diversos setores industriais importantes para a soberania brasileira, como o da aviação.
Rever para o quê?
Discorrendo sobre a “Constituição na História” (1993), Marcello Cerqueira escreve sobre a revisão na Constituição de 1988:
“No que se refere ao cerne explicitamente imodificável da Constituição, as chamadas cláusulas pétreas foram ampliadas, definindo o artigo 60 §4º, que “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”. E agrega: “após o plebiscito de 21 de abril de 1993, a República retorna como cláusula intangível”.
O que constitui de fundamental, de base conceitual que não admita mudança sem que o Estado Nacional e o povo brasileiro sejam privados? Talvez a menção não detalhada dos direitos e garantias individuais. A forma federativa é a imitação estadunidense que garante os “coronéis”, sejam essas figuras da política brasileira, os proprietários de terra, os donos de votos, ou de pequenas economias regionais.
O voto como rito periódico nada significa em termos de cidadania e democracia. Muito mais adequado seria estabelecer o processo de efetiva participação do povo nas decisões que lhes afetam; porém do povo esta Constituição foge.
Os importantíssimos princípios à autodeterminação, à soberania do Estado, à paz não encontram guarida entre os intocáveis. Até porque a “redemocratização” se fez para abrigar a globalização, a ausência do Estado, a governança do mercado.
E vê-se a que chegamos em apenas 35 anos desta “Constituição Cidadã”: à escravidão dos ubers, dos MEIs e as constantes ameaças à garantia de aposentadoria e pensão. O Sistema Único de Saúde (SUS) sobrevive à custa de terceirizações e do patriotismo e do zelo e da ética profissional de seus servidores.
No debate que se estabeleceu, em 2008, entre o ex-vice-presidente boliviano Álvaro Linera e o filósofo e sociólogo boliviano Raúl Prada, eles analisam a crise de 2000/2001 em seu país.
As forças com capacidade de decisão entravam em colapso. O grupo vinculado aos capitais estrangeiros, os agroexportadores, os bancos e elite política formada a seu redor perdiam apoio e capacidade de solucionar os problemas econômicos e sociais que suas governanças conduziram à Bolívia. Porém a crise de um Estado não conduz necessariamente à solução de estabilidade e resolução dos conflitos.
Daí surge a Constituinte como projeto social com a mais ampla representatividade. Os indígenas deixam de ser um núcleo para ter a representatividade de sua população, da penetração de sua cultura, de sua importância na economia do país. Isso, no entanto, não eliminava os mestiços, as classes média e empresarial.
As riquezas nacionais surgem como bens a serem protegidos, tanto as minerais quanto as águas e os bosques.
Prada caracteriza a pluralidade como o fundamento do Estado e a forma de sua soberania e democracia, com a participação de todos. O Estado renuncia ao Federalismo e constrói um modelo unitário e popular.
O Brasil de 2023
Nosso país vive a grave crise da legitimidade. Não foi o Centrão que o povo elegeu, muito menos um Supremo Tribunal Federal (STF), cujo atual presidente entende que o valor do direito não recorre a categorias metafísicas, mas é inspirado por uma teoria da justiça (Luís Roberto Barroso, “Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito”, em Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, nº 9, março/maio 2007).
Estaria o presidente Barroso se vinculando ao “Direito Justo”, de Karl Larenz, mas liberal e socialmente excludente que os neoliberais da Escola de Viena? E quem, senão abastados financistas, aprovariam essas considerações se não surgissem fantasiadas e mistificadas nos hegemônicos veículos de comunicação?
Não radicalizamos. Apresentamos uma formulação da estadunidense Martha Louise Minow, decana da Harvard Law School, que foi considerada para a Suprema Corte na época da aposentadoria de John Paul Stevens:
Antes de propor a nova Constituição, os partidos políticos, com iguais tempos nas redes de comunicação, inclusive nas virtuais de relacionamento, por todo um ano, explicariam aos brasileiros quais poderes estão governando o país, que princípios políticos, econômicos, sociais eles representam, o que significa o patrimônio natural brasileiro ser explorado somente por brasileiros, e que a democracia só é efetiva quando existe a participação do povo nas decisões.
As falácias da transição energética, das questões climáticas, e a realidade da energia nuclear, a verdadeira energia da transição para o futuro, impediria este vexame que nos fazem passar os titulares de órgãos públicos no campo da energia.
E não podemos esquecer que os Cieps, na concepção de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, deveriam ser considerados prioritários nos orçamentos federal, estadual e municipal para que em todos os distritos do Brasil houvesse ao menos um, com toda equipe necessária para seu funcionamento, em horário integral, com salários dignos e treinamento permanente. Sem eles, o Brasil não deixará sua posição de colônia, de países ou de capitais apátridas.
Gostaria de concluir estas reflexões, sobre nosso momento difícil político e moral, com as palavras do grande constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, encontradas na 7ª edição de sua preciosa obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (Almedina, Coimbra, 2003):
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.