Depois do anúncio de que a Eletrobrás privatizada mudou de nome, o debate público ganhou contornos mais nítidos: se a principal companhia do setor assume, de vez, a identidade e a lógica de uma corporação privada, quem ocupa — com critério, metas e transparência — o espaço da execução de políticas de Estado em energia elétrica?
Minha resposta é direta: o Brasil deve recriar uma estatal de energia sob a forma de sociedade de economia mista, com missão pública explícita e governança de mercado. Trata-se de recompor uma capacidade nacional de execução — planejamento mais entrega — voltada à segurança do suprimento, à universalização do acesso e à eficiência energética, sobretudo onde o mercado não chega ou não tem incentivo para chegar.
A mudança de marca da antiga Eletrobrás é um fato simbólico e empresarial. Não altera, por si, contratos ou obrigações já estabelecidos; tampouco precisa ser demonizada. Mas cristaliza um processo: a empresa hoje é orientada pela racionalidade privada, com foco em retorno ao acionista e disciplina financeira.
Não se pode confundir essa racionalidade com a totalidade do interesse público, que precisa incluir famílias em regiões remotas, reforçar sistemas isolados, acelerar a eficiência energética, servir como braço executor de políticas de universalização — como o Luz para Todos — e o atendimento às populações da Amazônia, que exigem um agente cujo estatuto diga, estrategicamente, que sua razão de existir é atender ao público, com métricas, custo-efetividade e transparência.
Uma sociedade de economia mista controlada pela União permite exatamente esse equilíbrio: missão pública explícita e governança de alta exigência (Lei nº 13.303/2016 e Lei nº 6.404/1976).
Para dar consequência prática à missão pública, proponho, inclusive, a criação, por lei específica, da “nova” Eletrobrás S.A., sociedade de economia mista controlada pela União, com mandato explícito de segurança do suprimento, universalização e eficiência energética.
Para que a nova estatal não seja um rótulo, mas um motor de entrega, proponho dois eixos complementares. O primeiro é um Plano Nacional de Segurança Energética e de Fornecimento (PNSEF), com metas plurianuais verificáveis, orçamento vinculado e governança interministerial, para orientar reforços de rede, interligações estratégicas, armazenamento, resposta a eventos climáticos extremos e integração ordenada de renováveis.
O segundo é um Plano Nacional de Sustentabilidade Econômica (PNSE), para garantir que universalização, eficiência e transição energética caminhem com equilíbrio fiscal e modicidade tarifária: funding estável, contratos de desempenho que paguem por entrega verificada, captação no mercado (debêntures verdes, FIDCs de eficiência), coordenação com bancos públicos e multilaterais e um teto claro para a participação direta da empresa em projetos competitivos. É a arquitetura que venho defendendo — corrigir a rota das renováveis sem punir o consumidor.
A engrenagem que conecta plano e realidade é o contrato de gestão/desempenho. A nova estatal — que pode se chamar Eletrobrás Energia Pública ou, simplesmente, “a nova Eletrobrás” — deve celebrar anualmente contrato de gestão com o Ministério de Minas e Energia, amarrando indicadores de saída e de resultado: unidades consumidoras conectadas, quilômetros de rede e linhas, subestações e usinas construídas ou modernizadas, MWh economizados por projetos de eficiência, capacidade instalada em armazenamento e geração de respaldo em áreas críticas e prazos de recomposição após eventos extremos — com repasses condicionados a verificação independente e painéis públicos de acompanhamento.
Poderão ser emitidas debêntures verdes com metas verificáveis definidas no PNSEF, com verificação independente e transparência de indicadores.
Há, ainda, uma dimensão estratégica inadiável: garantir energia firme, resiliente e segura para a infraestrutura digital do Estado e da economia — centros de nuvem do governo, data centers de missão crítica, backbones e pontos de troca de tráfego. A demanda elétrica desses ativos vai crescer fortemente até 2030, puxada por IA e digitalização; se o planejamento não antecipar essa onda, a pressão recairá sobre redes locais, com risco de gargalos, custos e interrupções.
Ao mesmo tempo, a boa notícia é que esse crescimento pode ser organizado com contratos 24/7 (entrega contínua, todas as horas), armazenamento, gestão de demanda e fontes firmes de baixo carbono, desde que haja coordenação público-privada e previsibilidade.
A nova estatal deve liderar, com as distribuidoras e operadores, um programa de arranjos elétricos sob medida para “zonas críticas digitais”: redundância de alimentação, padrões de confiabilidade, microrredes com armazenamento, testes de recomposição e contratos de resposta rápida.
No Brasil, a expansão de data centers vem acompanhada de um recado claro de analistas de risco: acesso confiável à energia é determinante para a viabilidade e o crédito do setor. Uma estatal estratégica pode organizar, com critérios técnicos, a fila das obras habilitantes — subestações, linhas, reforços urbanos — e viabilizar contratos de longo prazo que reduzam custo de capital e risco de atraso. Resultado: mais nuvens soberanas e privadas, com segurança energética, e menos improviso tarifário.
A estatal proposta não substituirá o mercado; ela vai preencher lacunas e organizar a missão pública. Atuará diretamente em geração, transmissão, distribuição pontual e soluções de suprimento apenas quando necessário para a segurança do sistema, a modicidade tarifária e a inclusão — sobretudo em regiões e usos onde a lógica estrita de risco-retorno não fecha (Amazônia profunda, redes rurais dispendiosas, reforços de confiabilidade para serviços públicos e data centers críticos).
Nas demais frentes, contrata o setor privado por critérios competitivos, paga por resultado e sai quando houver oferta privada suficiente. É a diferença entre estatizar por princípio e agir por finalidade.
O desenho de governança tem de aprender com o passado e com as melhores práticas: Conselho de Administração técnico, com maioria indicada pela União; comitês de auditoria, riscos e pessoas; regras rígidas de integridade e de transações com partes relacionadas; relatórios integrados que combinem demonstrações financeiras a metas e entregas de política pública; dados abertos sobre obras, contratos e desempenho.
Se o legislador considerar útil, pode-se adotar ação de classe especial para proteger matérias sensíveis do estatuto — missão pública, alienação de ativos estratégicos, guarda de dados críticos e protocolos de resposta — sem engessar a gestão cotidiana. O objetivo é um só: profissionalismo com escrutínio.
No ecossistema institucional, vejo três rotas possíveis e compatíveis com a urgência:
- i) transformar a ENBPar e ampliar seu objeto para execução setorial plena;
- ii) criar uma holding pública de energia, mantendo a ENBPar focada em nucleares e binacionais; ou
- iii) instituir, por lei específica (art. 37, XIX, da Constituição), uma nova companhia aberta sob controle da União, que assuma, por contrato, programas como Luz para Todos, Procel e Proinfa — e lidere, com estados e municípios, as “zonas críticas digitais” para data centers e serviços públicos.
Haverá quem diga que isso custará caro. Mais caro é o apagão de oportunidades e a perpetuação do mapa da exclusão — inclusive a exclusão digital e elétrica. O PNSE dá previsibilidade às fontes de recursos e limita aventuras; o PNSEF prioriza o que salva vidas e destrava crescimento; o contrato de gestão trava repasses a entregas verificadas; e a governança da Lei das Estatais impõe disciplina e responsabiliza gestores.
Com isso, a estatal pode mobilizar capital privado com segurança jurídica, acelerar a universalização, fortalecer a transição energética e garantir energia firme para a economia de dados — sem capturar o Estado, sem onerar indevidamente a tarifa e sem o uso político de empregos.
A discussão não é nostálgica; é estratégica. Energia elétrica não é só um ticker, é soberania, reindustrialização, cidadania e espinha dorsal da vida digital.
Privatizaram a marca; a missão é do Estado. Recriar a Eletrobrás como sociedade de economia mista — ancorada no PNSEF e no PNSE, comprometida com contratos de desempenho, preferência ao atendimento do poder público, foco em data centers e serviços digitais críticos e protocolos de resposta a crises — é uma decisão de maturidade institucional.
Ela devolve ao país a capacidade de articular planejamento com execução, integra políticas de universalização e eficiência, atende à expansão da economia de dados com segurança energética e coloca o povo — e não apenas o acionista — no centro do sistema elétrico brasileiro.
Israel Fernando de Carvalho Bayma é engenheiro eletricista e advogado.
















