O ex-reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor de Direito Internacional, Antonio Celso Alves Pereira, no artigo “Globalização e Soberania”, incluído na obra organizada por Darc Costa e Francisco Carlos Teixeira da Silva (Mundo Latino e Mundialização, Faperj e Mauad Editora, RJ, 2004), relembra que “na passagem da hegemonia holandesa para a britânica, as Cidades-Estados que, até então, eram vistas como potências europeias e, ao lado delas, alguns protoestados nacionais, como a própria potência hegemônica holandesa, foram desalojados, espirrados da política europeia pela emergência de poderosos Estados Nacionais, construtores de impérios”.
O mestre Alves Pereira cita os autores Giovanni Arrighi e Beverly Silver (Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial, Editoras Contraponto/Uerj, RJ, 2001), que entendem ter a maioria dos Estados perdido soberania sob a hegemonia britânica e, “sob a hegemonia norte-americana, (esta) foi descartada até mesmo como ficção”.
Entre 1903 e 1907, em série de artigos, o diplomata Manuel de Oliveira Lima discorreu sobre um tipo de hegemonia, construído sobre a Doutrina Monroe (1823) e o Destino Manifesto (1845), que era objeto da III Conferência Pan-Americana, em 1906, no Rio de Janeiro, quando Theodore Roosevelt presidiu os Estados Unidos da América (EUA). Estes artigos foram republicados sob o título Pan-Americanismo (Monroe, Bolívar, Roosevelt) (Senado Federal, Fundação Casa de Rui Barbosa, Brasília-RJ, 1980). Oliveira Lima considerava Theodore Roosevelt “ousado e opressor” e se opunha a reconhecer o direito dos EUA intervirem livremente na América Latina, que à época (1907, governo Afonso Pena) não era posição majoritária no Ministério das Relações Exteriores.
Marcos Coimbra, economista, professor universitário, membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra (ESG), onde exerceu de 1986 a 1994 a chefia da Divisão de Assuntos Econômicos, escreveu Brasil Soberano (Editora do Autor, RJ, 2009). Lá se encontra o artigo “O Governo Mundial” (publicado em 7/6/2001, no Monitor Mercantil):
“Existe, claramente, em ação, a estratégia imposta pelos ‘donos do mundo’, os detentores do capital transnacional, líderes do sistema financeiro internacional, para, progressivamente, implantar um governo mundial, em especial, na nossa Pátria. As etapas do processo estão claramente delimitadas, em linhas gerais. De início, a adoção da ‘globalização’, nova denominação do ‘neocolonialismo’, partindo dos países centrais para a periferia, com domínio da expressão econômica do Poder Nacional, através da imposição dos ditames dos organismos internacionais: FMI, OMC, Banco Mundial, BID e outros”, que incluímos o Fórum Econômico de Davos (Suíça).
Prossegue Mestre Coimbra: “A seguir, o total controle dos meios de comunicação de massa, seja pela colocação de pessoas de confiança, os ‘testas de ferro’, até a participação via indireta do comando das empresas de jornalismo, seja emprestando moeda para mantê-los dependentes, ou, simplesmente, remunerando regiamente os principais formadores de opinião e jornalistas famosos, montando a chamada mídia amestrada”.
Poderíamos prosseguir com análises de mestres e profissionais que acentuaram a vocação ocidental pela hegemonia absoluta, pela unicidade da governança, pela unipolaridade. É apresentada como solução universal e suas mazelas, que são constantes e abundantes, como disfunções a serem facilmente corrigidas.
Não é o que demonstra Carmen Soriano Puig, em O Rosto Moderno da Pobreza Global (Editora Vozes, Petrópolis, 1995). Esta jurista, doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), atuou como profissional e consultora na Organização Mundial de Comércio (OMC) e na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Na introdução da obra referida, escreve: “Concebida em plena era Reagan/Thatcher como projeto por excelência da ofensiva neoliberal que se espalhou pelo mundo, a Rodada Uruguai teve sua imagem desde logo vinculada na mídia à ideia de dinamismo, abrangência universal e apoteótica modernidade”. “Resguardou-se, contudo, certo toque esotérico de assunto ‘técnico e complexo’, que impediria ao grande público a clara percepção de seus prováveis efeitos. Ficaram assim obscurecidas as implicações que o exercício negociador, conduzido em Genebra, poderia vir a ter – tal como o insidioso ajuste estrutural, administrado no interior dos países – para a vida mais imediata de boa parte da humanidade”.
A unipolaridade trabalha com dois vetores: o controle da economia pelas finanças, daí a importância de um “Banco Central independente”, e o domínio da informação, pelo ensino convencional e pela comunicação de massa.
Porém, se esta situação unipolar é encontrada no Ocidente, o mesmo não ocorre no Oriente, onde se observa a multipolaridade e a ausência de fóruns universais, entidades representativas da globalidade.
Origem da perspectiva multipolar
Para nós, brasileiros, Rota da Seda pode lembrar contos fantasiosos das Mil e Uma Noites. No entanto, esta criação da Dinastia Han, no século 2 a.C., foi muito mais do que o conjunto de estradas e rotas comerciais aberto entre a China e o Mar Mediterrâneo. As caravanas que o cruzavam levavam idiomas, escritas, religiões, tecnologias, políticas, ajudavam a construir uma sociedade mais complexa e plural, enfim, integravam culturas. Durou até o século 16, findou quando a Reforma Protestante, o capitalismo e os Estados Nacionais dominaram a Europa.
Muitas invenções usadas pelos europeus foram originadas na China e lhes chegaram às mãos pela Rota da Seda.
Um pouco dos Han. Seu governo vai de 202 a.C. a 220 d.C.; estes quatro séculos são considerados época de ouro. Além das ciências, tecnologias, engenharia e administração, foi neste período que surgiu o confucionismo.
O que ocorreu no Ocidente com a vinda de Jesus Cristo, inaugurando uma nova era da cronologia da história ocidental, imposta ao resto do mundo pela colonização, ocorreu bem antes, cinco séculos antes de Cristo, na China.
Escreve a filósofa francesa Anne Cheng: “Confúcio (551 a.C.–479 a.C.) é um dos raros nomes que sobreviveram na cultura geral concernente à China” (História do Pensamento Chinês, tradução de Gentil Avelino Titton, do original francês [1997] para Editora Vozes, Petrópolis, 2008). Compara, em seguida, com Siddhartha Gautama, o Buda (563 a.C.–483 a.C.), Sócrates (470 a.C.–399 a.C.), Cristo (4 a.C.–33 d.C.) e Karl Marx (1818–1883), pois com Confúcio “produz-se um salto qualitativo, não apenas na história da cultura chinesa, mas na reflexão do homem sobre o homem”.
E prossegue Anne Cheng:
Confúcio assinala o grande desenvolvimento filosófico que se nota nas três outras grandes civilizações da ‘Idade Axial’, que é o primeiro milênio antes da era cristã: os mundos hebraico, grego e indiano.
Porém Confúcio nem é um filósofo, quanto a dar origem a um sistema de pensamento, nem um fundador de uma espiritualidade a criar uma religião. Indaga Cheng: “A que se deve, pois, sua estatura excepcional? Sem dúvida ao fato de ter moldado o homem chinês durante mais de dois milênios, porém, mais ainda, ao fato de ter proposto pela primeira vez uma concepção ética do homem em sua integralidade e em sua universalidade”.
Este homem chinês, que já fazia diferença na Rota da Seda da dinastia Han, é a alternativa humanista para o século 21, com a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), criada sobre o modelo de uma nova Rota da Seda, por Xi Jinping, em 2013.
A ICR abandona os modelos globalizantes, as instituições universais, o domínio unitário, para construir relações entre dois ou três interessados, com iguais autoridades sobre os fins e os meios. A ICR poderia ser descrita como a Rota da Seda do mundo digital.
No entanto, há permanente doutrinação por parte do poder ocidental, como já descrito neste artigo, que frauda inclusive fatos facilmente confirmados e compreensivos, no sentido de desmerecer qualquer antagonismo ou diferença, que minimize o poder colonizador ocidental.
A consulta à Wikipédia sobre a Iniciativa do Cinturão e Rota já tem início com uma restrição: “A tradução deste artigo está abaixo da qualidade média aceitável. Talvez tenha sido feita por um tradutor automático ou alguém que não conhece bem o português ou a língua original”. Óbvio que o consulente já ficará desconfiado do que lerá. Mas não para aí. Já no primeiro parágrafo qualifica erroneamente a ICR, como segue:
“Iniciativa do Cinturão e Rota (em inglês: Belt and Road Initiative), também conhecida como Um Cinturão, Uma Rota (em inglês: One Belt One Road) ou Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século 21, ou Nova Rota da Seda, é uma estratégia de desenvolvimento adotada pelo governo chinês envolvendo desenvolvimento de infraestrutura e investimentos em países da Europa, Ásia e África”.
E acrescenta: “O governo chinês chama à iniciativa ‘tentativa de melhorar a conectividade regional e abraçar um futuro mais brilhante’. Observadores, no entanto, veem isso como um impulso para o domínio chinês nos assuntos globais com uma rede comercial centrada na China”.
É razoável que um sistema que se construiu na dominação colonial, por guerras, pela ocupação territorial por séculos, no mínimo os cinco últimos, sendo a financeira a mais recente, não imagine outra forma de relacionamento senão a de senhor e escravo.
E, na sequência, revela toda sua estratégia, imputando-a à China, como transcrevemos: “Os defensores elogiam o BRI por seu potencial de impulsionar o PIB mundial, particularmente nos países sem desenvolvimento. No entanto, também houve críticas sobre violações de direitos humanos e impacto ambiental, bem como preocupações com a diplomacia da armadilha da dívida, resultando em neocolonialismo e imperialismo econômico”.
Participam da ICR 149 países, incluída a China, sendo da Europa: Albânia, Armênia, Áustria, Belarus, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, Chipre, República Checa, Grécia, Hungria, Luxemburgo, Macedônia do Norte, Malta, Moldávia, Montenegro e Portugal (conforme Christoph Nedopil, “Countries of the Belt and Road Initiative (BRI)”, Green Finance & Development Center).
Institucionalização brasileira
O primeiro “Brasil” não vingou. Deixou-se por conta da iniciativa privada das “Capitanias Hereditárias”. Na verdade, todos os países que se constituíram no Ocidente tiveram a mão do Estado. Donde se identifica o surgimento dos Estados Nacionais com o fim da Idade Média, o Renascimento, os séculos 15/16.
O segundo Brasil foi o do Governo-Geral de Tomé de Sousa, com três funções: a defesa externa, o controle interno da sociedade e as finanças. Todas as demais atividades estavam entregues ao mundo privado, especialmente a ordens religiosas. E foi deste modo que atravessou o Brasil Colônia, o Brasil Unido aos Reinos de Portugal e Algarve, ao Brasil Monárquico de 1822, à República de 1889, até a presidência de Getúlio Vargas, no Governo Provisório da Revolução de 1930, em 4/11/1930.
As maiores influências da institucionalização do Brasil vieram das ideias liberais e iluministas dos séculos 17 e 18. Getúlio Vargas trouxe os ideais sociais do século 19, de onde surgiram o Trabalho, como obrigação do Estado, e os sindicatos, como organização dos trabalhadores.
Profundas mudanças ocorreram no século 20, inclusive duas grandes guerras, envolvendo, de algum modo, todos os continentes, o surgimento de nova fonte de energia, a nuclear, e, provocando verdadeira revolução social, o tratamento da informação.
A respeito do tratamento da informação, o sábio brasileiro, laureado pelo governo chinês, Miguel Nicolelis, escreveu magnífico livro – O Verdadeiro Criador de Tudo, como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos (Editora Planeta, SP, 2020) – onde discorre sobre a informação. Esta é apresentada na forma quantitativa, binária e digital, devida ao engenheiro estadunidense Claude Shannon, que Nicolelis denomina S-info, e na forma contínua e analógica, devida ao lógico e matemático tcheco Kurt Gödel, G-info.
Com estas ferramentas auxiliando a formulação de estruturas organizacionais, o Brasil pode apresentar nova e contemporânea institucionalização, que não só marcará nova era, como se despirá dos constrangimentos hoje existentes com as disputas dos “poderes”: executivo, legislativo, judiciário e das procuradorias e corregedorias nacionais ou federais.