Recuperação da renda é 1º passo para resolver endividamento das famílias

Paula Sarno, da UFF, analisa causas do endividamento das famílias, que voltou a dar sinais de piora após alívio em 2023 e 2024. Por Andrea Penna.

636
Dinheiro (foto de Marcello Casal Jr., ABr)
Dinheiro (foto de Marcello Casal Jr., ABr)

Após uma melhora em 2023 e 2024, os indicadores de endividamento das famílias brasileiras sinalizam um retorno à trajetória de piora das condições de endividamento. Destaca-se a elevação do comprometimento da renda com o pagamento das dívidas e da inadimplência, afirma Paula Sarno, pós-doutoranda de Economia da UFF, pesquisadora dos grupos de pesquisa Finde–UFF e OSF–IE–UFRJ.

Nesta entrevista ao Monitor Mercantil, Paula Sarno explica que a solução para esse problema passa primeiramente pela sustentação de uma trajetória de recuperação da renda dessas famílias. Ela fala também sobre o Programa Desenrola e sobre a participação das bets no endividamento das famílias.

Estudos mostram que grande contingente da população brasileira continua endividada. Mesmo com índices crescentes de empregabilidade o trabalho remunera pouco para as necessidades básicas?

É verdade, o nível de endividamento das famílias hoje no Brasil se encontra elevado. Temos estudado a trajetória desse processo desde 2021, em especial, a trajetória dos indicadores de endividamento divulgados pelo Banco Central relativos aos créditos contraídos junto às instituições financeiras.

Temos divulgado uma análise desses dados desde 2021por meio do Boletim Retrospectiva do grupo OSF – Observatório do Setor Financeiro, do Instituto de Economia da UFRJ. Conseguimos observar, nos anos mais recentes, uma trajetória de piora dos indicadores de endividamento até o primeiro semestre de 2023.

Espaço Publicitáriocnseg

O comprometimento da renda das famílias com o pagamento do serviço das dívidas ultrapassa os 30%, e o comprometimento é maior para as faixas salariais mais baixas.

Além disso, observou-se uma elevação da inadimplência e um aumento da participação dos créditos de alto custo e menor prazo, que são o que denominamos de créditos rotativos, demonstrando assim que as dívidas contraídas se tornam realmente um peso muito grande no orçamento das famílias, em especial as famílias mais vulneráveis e está associado a uma elevação da fragilidade financeira das famílias.

É a partir do segundo semestre de 2023 que foi possível observar uma melhora, ainda que tímida, ou seja, uma redução desse comprometimento da renda com o pagamento de serviços das dívidas pelas famílias. Tal fato pode ser associado à recuperação da renda, resultado da recuperação da economia, do emprego, dos novos valores e dos adicionais do Programa Bolsa Família, da recuperação do valor do salário-mínimo etc. Todos esses fatores, certamente, contribuíram para que as famílias se desafogassem um pouco.

Entramos em 2024 numa situação de melhora se observamos alguns indicadores, em especial, ocorreu uma redução da inadimplência, para as famílias inseridas nas faixas de renda mais baixas, e quanto às concessões de crédito, uma redução da participação dos créditos rotativos e um aumento da participação dos créditos associados ao financiamento de compra de bens, em geral veículos, motos etc. que costumam acompanhar o aquecimento da atividade econômica. Assim, é possível verificar que a recuperação da renda ajuda a melhorar os indicadores.

Para 2025, alguns indicadores sinalizam um retorno à trajetória de piora das condições de endividamento. Nesse sentido, destaca-se a elevação do comprometimento da renda com o pagamento das dívidas e da inadimplência. E de fato os indicadores ainda estão muito elevados!

Eu vejo alguns fatores explicativos: o peso das dívidas passadas, as taxas de juros extraordinariamente altas e que ainda sofreram um aumento a partir do segundo semestre de 2024 e a própria expansão do crédito.

Então, ainda que tenhamos observado uma melhora na qualidade dos créditos em 2024, e os créditos associados a financiamento de bens, por exemplo, cobram taxas de juros relativamente menores que os créditos rotativos, a verdade é que a subida na taxa de juros acaba impactando todas as modalidades, inclusive essa.

Então é ruim que famílias busquem crédito?

É importante dizer que o crédito é ele não é necessariamente ruim e não é necessariamente bom, depende! É preciso analisar sua motivação. O crédito pode viabilizar a compra de um determinado bem que seja de alto valor relativamente a renda corrente da família. Isso pode trazer um benefício para o padrão de vida das famílias. Pode ser também um crédito que responda a alguma situação específica emergencial não prevista.

O crédito pode dinamizar à economia ao criar condições para a expansão do consumo acima da renda corrente; esse novo consumo pode estimular um novo ciclo de expansão da renda e emprego. Necessário lembrar, porém que, ainda assim, no caso de uma elevada dependência do crédito, frente a uma reversão da trajetória da economia e da adoção de políticas monetárias contracionistas, as famílias devedoras adimplentes poderão se tornar inadimplentes.

Por outro lado, se a demanda por crédito visa compensar uma renda que se mostra insuficiente para os gastos básicos de sobrevivência, e muitas vezes resulta no uso dos créditos mais caros e de prazo mais curto, pode trazer uma alívio imediato, mas vai acabar pressionando ainda mais o orçamento da família, que provavelmente vai ter dificuldades em honrar os compromissos decorrentes. Nesses casos, as dívidas contraídas podem se tornar fator de desestímulo ao consumo.

O Desenrola foi um bom programa para equacionar o endividamento das famílias ou ficou aquém do necessário?

O governo demonstrou uma sensibilidade com relação a esse problema do endividamento das famílias e editou, em 2023, a Medida Provisória 1176, que lançou o Programa Desenrola, direcionado aos devedores que estivessem no cadastro de inadimplentes. O Programa sofreu algumas prorrogações e foi encerrado em maio de 2024.

A faixa 1 era direcionada aos devedores que tivessem renda até dois salários-mínimos ou participantes do Cadastro Único. Observamos que os que se escreveram para essa faixa no programa se beneficiaram das condições que foram oferecidas como a redução no valor das dívidas, a redução nos juros em comparação aos cobrados no crédito original, a possibilidade de renegociar conjuntamente as dívidas que existiam, e o fato de que deixariam de ter o seu nome negativado.

Na nossa avaliação, se, por um lado, o programa beneficiou os participantes, por outro, o número de pessoas que se inscreveram se revelou bem aquém do que o próprio governo previa. Frente um total de cerca de 30 milhões de pessoas com créditos negativados na faixa 1, o Programa encerra com 5 milhões de pessoas beneficiadas.

Ao avaliar esses resultados, entendemos que é importante destacar que o Programa foi desenhado para renegociação de dívidas negativadas. Essas são dívidas que já não estão sendo pagas. Então, ao se inscrever no Desenrola, a família reintroduziria aquele pagamento renegociado no orçamento dela.

Ao que parece, para muitas famílias mais vulneráveis ocorreu uma impossibilidade ou desinteresse de assumir esse novo fluxo de saída de recursos. E aí o programa realmente não conseguiu ter um papel decisivo para, de fato, abaixar o nível de endividamento das famílias. Os resultados seriam provavelmente diferentes se as renegociações envolvessem os créditos ativos.

Podemos ressaltar que, diante do curso mais recente dos indicadores de endividamento das famílias, a solução para esse problema passa primeiramente pela sustentação de uma trajetória de recuperação da renda dessas famílias. Qualquer tentativa que não inclua isso parece que não deverá trazer bons resultados.

E criando a possibilidade de essas famílias se desfazerem das dívidas antigas e assumirem créditos que sejam capazes de gerar renda e de serem um fator dinamizador de um novo consumo para a economia. Esse seria um caminho básico.

Além disso, apesar de observamos melhora nos indicadores, o que é um fator positivo, existem vários fatores de preocupação que vão na contramão de uma redução na fragilidade financeira das famílias: os juros elevados, o peso das dívidas passadas, e além disso, as iniciativas que podem estimular a contração acelerada de crédito.

Quanto a esse último ponto, frente a indicadores de endividamento ainda elevados, se tornam preocupantes iniciativas que podem estimular significativamente a contração do crédito, como a reforma no consignado ao setor privado e o Pix parcelado. Tais iniciativas podem criar uma nova onda de incentivo ao crédito para uma população que ainda está com nível de renda baixo numa economia com taxas de juros extremamente altas.

Bets

As plataformas de apostas, as Bets, são responsáveis por este endividamento das famílias?

Diante do processo vivenciado no nosso país de crescimento do endividamento das famílias acompanhado de um aprofundamento da fragilidade financeira dessas famílias, a gente pode dizer que a enorme expansão da participação nas plataformas de apostas é um fator muito preocupante.

A gente tem alguns dados levantados pelo Banco Central, que apontam como inclusive preliminares e subestimados, que os valores para 2024 demonstravam uma média mensal de valor de aposta em torno de R$ 20 bilhões em empresas de jogos e de azar, considerando somente aquelas feitas pela plataforma Pix. E tais montantes envolvem a participação de 24 milhões de pessoas físicas.

Em especial quanto à participação dos beneficiários do programa Bolsa Família, calculou-se que 5 milhões de pessoas pertencentes às famílias beneficiárias deste programa chegaram a enviar R$ 3 bilhões às empresas de apostas pela plataforma Pix. E desses 5 milhões de participantes, 4 milhões são os chefes de família diretamente beneficiados. Significa que 17% dos beneficiários do programa Bolsa Família estão nessas plataformas de apostas. A situação realmente, se revela preocupante!

É importante ressaltar que os programas sociais visam assegurar, por meio da transferência de recursos públicos, uma renda mínima às famílias que se encontram em situações de vulnerabilidade financeira. A utilização desses recursos em jogos de azar pode exatamente comprometer que se assegure essa renda mínima. E como as apostas são, na verdade, atividades de alto risco, podem também mesmo agravar a situação de vulnerabilidade dessas famílias, elevando, portanto, o endividamento.

Agora, em setembro de 2025, tivemos uma normativa expedida pelo Ministério da Fazenda que regulamentou o bloqueio do acesso à plataforma de apostas pelos beneficiários do Programa Bolsa Família e também, do Benefício de Prestação Continuada (BPC), em atendimento a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Eu entendo que a decisão tomada pelo governo foi não somente acertada, mas realmente necessária.

Por Andrea Penna, para o Monitor Mercantil

Siga o canal \"Monitor Mercantil\" no WhatsApp:cnseg