Se funcionários armados do Estado, os militares custaram a encontrar receptividade nas elites e no povo, imaginem-se os civis. Apenas um grupo pequeno deles, atuando na área da justiça, obteve relativo destaque no Brasil, da Colônia à República. Após a independência, e aos poucos, também se impuseram os diplomatas, representantes do Brasil pelo mundo.
O Brasil sempre foi liberal e, hoje, neoliberal. Assim, não valorizou o Estado e suas funções, no máximo, colocou-o como guarda territorial, além de sentinela dos poderosos. Era o país dos latifúndios, da propriedade territorial, rural e urbana, e se atribuía muito mais importância a ser proprietário do que ao exercício profissional de qualquer função pública.
Políticos eram representantes destas classes proprietárias, alguns pouquíssimos intelectuais eram profissionais do jornalismo, e complementavam os legislativos nacionais representantes de interesses estrangeiros. Foram poucos os legislativos locais que contaram com defensores de interesses alóctones.
Os liberais não são, no geral, adeptos da educação dos povos. A educação se destina, no entender das elites liberais, a mantê-las no poder diferenciadas da população.
Manuel Bergström Lourenço Filho (1897-1970), pedagogo, professor na antiga Universidade do Brasil, elaborou minucioso trabalho sobre a educação básica, descrevendo-a em dez países, da Europa, Américas e Ásia, publicado, em 1961, com título Educação Comparada.
Buscava diversas respostas, principalmente para a relação entre a educação e o espírito nacional, da sociedade com as pessoas e o Estado, e no que consistiria a liberdade, observando, nos diversos países, os graus, os ramos do ensino e os sistemas administrativo-escolares.
Foram realizados levantamentos na Inglaterra, França, República Federal Alemã (RFA) e na Itália, nos Estados Unidos da América (EUA), México e Argentina, no Japão e na Índia e na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Quatro europeus, três americanos, dois asiáticos e, apenas, um socialista.
Lourenço Filho alerta para dois movimentos que acompanham estes estudos comparativos. Um acadêmico, de interesse histórico, objetivando a formulação da “sociologia da educação”. Outro para fins políticos, programáticos. Este último foi aquele que se desenvolveu com a Igreja Católica e teve grande influência, não só no Brasil mas por toda parte, onde se considera ser a pedagogia formada por princípios universais.
As diretrizes educacionais, como frequentes no Brasil, inclusive atualmente, sob o domínio neoliberal, filiam-se ao mesmo movimento onde se encontram a Igreja Católica e outras designações confessionais e ideológicas, como o marxismo.
Pode-se considerar que a educação, como instrumento de construção da cidadania e de transformação da sociedade, chega ao Brasil com o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), com o já citado Lourenço Filho, Anísio Teixeira (1900-1971), Fernando de Azevedo (1894-1974), Cecília Meireles (1901-1964), Delgado de Carvalho (1884-1980), Armanda Álvaro Alberto (1892-1974) e outros.
Eles terão a oposição da Igreja Católica, ainda poderosa no Brasil, mas trazem as dimensões do ensino, que promove a inserção de interesses privados e mesmo estrangeiros para implantar um modelo nacional. Na dimensão vertical da estrutura do ensino se imprime o trabalho pelas idades, nos graus ascendentes da escolarização, e pela destinação dos ramos do ensino. Na dimensão horizontal se correlacionam as questões geográficas (regionais) com os modelos político-administrativos, de forma a se obter um todo coeso.
O Brasil continental necessitava dessa flexibilidade horizontal, como igualmente os EUA.
Também excluída das funções do Estado, no Regimento Régio de D. João III para Tomé de Sousa (dezembro de 1548), estava a saúde, outra ação civil de importantíssima necessidade para a construção da cidadania. E sua ausência respondeu por grande número de mortes dos que aqui habitavam quando da chegada dos portugueses.
Portanto, da descoberta à República, as únicas ações civis aceitas para o Estado Colônia e Independente, já no Império, foram das finanças e da justiça, pois aos proprietários também se atribuía a manutenção da ordem.
O Estado Nacional Brasileiro nasce para ser ignorante, doente e liberal. Notável portanto que tenha se alargado e mantido uno.
Prolegômenos republicanos
Os desmembramentos do Vice-Reino do Rio da Prata (1816), do Vice-Reino de Nova Granada (1819), do Vice-Reino de Nova Espanha (1821), certamente impressionaram o Patriarca de nossa independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, para propugnar pela manutenção da monarquia dos Braganças no Brasil Independente, em 1822. E a fragmentação do Vice-Reino do Peru, dois anos após nossa Independência, lhe solidificariam a decisão.
No Brasil, todavia, concorriam fatores ausentes da Hispano-América: a geografia integradora, com grandes rios voltados ao interior e sem grandes cadeias montanhosas, a maior homogeneidade linguística, social e cultural, a despeito da escravidão, e, acima de tudo, a presença da estrutura político-administrativa metropolitana desde 1808, o que permitiu a formação de lideranças talhadas na realpolitik europeia.
Observemos as datas em que surgem alguns países latino-americanos:
- 1810 – Argentina e início das lutas na Colômbia (independente em 1819), no México (independente em 1821), no Chile (independente em 1826);
- 1811 – Venezuela, Paraguai, início das lutas no Peru (independente em 1824); e
- 1821 – Nicarágua.
Porém, em provisórias uniões, como Honduras e Costa Rica, ou isoladamente, por toda a América Latina lutava-se pela independência. Mas não seguiam os ideais de Francisco de Miranda (1750-1816) e Simón Bolívar (1783-1830) para quem a independência das colônias latino-americanas era inseparável da ideia de integração.
Desde 1788 este notável estadista e militar venezuelano, Sebastián Francisco de Miranda Rodríguez y Espinoza, propunha que, uma vez alcançada a independência, se trabalhasse para nação unificada, o que contrariaria a Doutrina Monroe (1823).
Produzido e editado pela Fundação Alexandre de Gusmão, sobre a Primeira Reunião de Chefes de Estado da Comunidade Sul-Americana de Nações, que representa metade da América Latina, Darc Antonio da Luz Costa, doutor em engenharia da produção, vice-presidente (2003-2004) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), apresentou o trabalho “Infraestrutura e Integração na América do Sul” (em América do Sul, Brasília, 2005), onde aponta como desafios para nossos desenvolvimentos:
- “a) criar ligação econômica permanente entre diversos setores da economia, que produza adequada alocação do excedente econômico entre os centros urbanos e a área rural; e
- b) proporcionar emprego produtivo para o grande número de desempregados já existentes e atender, anualmente, a grande massa de jovens que ingressa no mercado de trabalho”.
Há dois pressupostos que Darc Costa já apontara em entrevista (frentenacionaltrabalhista/videos/darc-costa-expoente-do-pensamento-nacional/571233476692592): a estrutura organizacional adequada a nossa cultura e a formação dos brasileiros, como já discorremos, brevemente, neste artigo.
John Armitage (1807-1856), inglês, comerciante e historiador, deixou-nos uma História do Brasil (1831), reeditada, em 1981, pelas editora Itatiaia e da Universidade de São Paulo (USP), onde se lê: “uma das mais belas e férteis regiões do Globo, havia sido privada de toda comunicação e comércio com as outras nações da Europa, a ponto que a residência e admissão dos estrangeiros era(m) ali vedada(s)”.
Em nota se esclarece que os negócios com Brasil eram encargo do Conselho Ultramarino, sediado em Lisboa, até o século 18.
No artigo referido, Darc Costa recomenda a proteção do segmento industrial brasileiro, e justifica seu sucesso com o tamanho do mercado.
A integração proposta pelo Estado não parece encontrar ressonância na população, ainda que esta seja permanente e intensamente mantida ignorante e desinformada para elaborar qualquer juízo.
Ousamos apontar a judicialização da vida brasileira que se observa, sobretudo depois do golpe de 2016, como a resposta mais compreensível do país que passou a ter, nos militares a imagem de ditadores, a descrer em sua capacidade produtiva, pelas campanhas de privatização, e assim só restou o “Poder” Judiciário para representar o interesse nacional.
Seria, porém, o Judiciário, tal como existe hoje, eivado de privilégios e desprovido de visão genuinamente nacional, capaz de exercer função moderadora em um país tão complexo e desigual? Qual outro poder, aliás, o teria hoje?
O isolamento e a desinformação são condições históricas que dificultam a constituição de um modelo institucional para o Brasil. Modelo surgido de nossa própria compreensão e aceitação do Estado Nacional.
O único modelo não colonial que teve alguma ressonância na política brasileira foi a versão gaúcha do positivismo de Auguste Comte (1798-1857). Este pensador francês foi secretário do conde Henri de Saint-Simon (1817-1824), teórico do socialismo utópico, ideia interveniente na obra de Comte. Esta influência não ocorreu apenas na constituição castilhista de 1891, para o Rio Grande do Sul, mas a encontramos na formulação do Estado Brasileiro por Getúlio Vargas.
Mikhail Bakunin (1814-1876), filósofo e revolucionário russo, apresentava a questão de que nenhum Estado, por mais republicano, popular que fosse, poderia dar ao povo o que ele realmente desejasse, sem alguma violência, imposta de cima para baixo. E a elite tendia sempre a ser mesquinha e preguiçosa.
Porém ainda persistimos, observando alguns sucessos na formatação do Estado Nacional, que deverá ser exclusivo para as condições materiais e culturais do território onde vigorará.
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado