Discutir o Estado, atualmente, é se revoltar contra sua extinção
“Os esquemas de poder se estabelecem a cada nível da organização social, a partir da família” (Tania Jamardo Faillace, Beco da Velha – Peças para Montar, romance inédito).
Iniciamos com estas “Condições Estruturantes” nova parte da série de “Reflexões para Teoria do Estado Nacional”, que desde 2 de março de 2022 publicamos no Monitor Mercantil, agora voltadas para os termos e as condições que usaremos para o projeto de Estado Nacional Brasileiro.
Há palavras, muito aquém de conceitos, que correm na linguagem das pessoas, em textos acadêmicos e, principalmente, nos veículos de comunicação de massa, que perdem qualquer contato com sua origem etimológica, com o significado técnico da ciência em que surgiram, e, algumas vezes, até distorcem para o que se pretendeu, um dia, serem aplicadas.
Vamos, por agora, nos limitar a duas destas palavras, porém fundamentais para o tema que tratamos: “nação” e “democracia”.
No prefácio ao livro de Maria Eugênia Bunchaft, professora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Patriotismo Constitucional (2010), o professor Delmar José Volpato Dutra, da Universidade Federal de Santa Catarina, expõe cinco qualificações para patriotismo, dando sentidos próprios a cada uma das expressões.
Impossível não associar os variados patriotismos do professor de filosofia às palavras do ex-presidente general João Batista Figueiredo, reproduzidas na Folha de S.Paulo, em 5/4/1978: “Nós temos a laranja-lima, a laranja-pera, a laranja-baía, que têm sabores diferentes, mas nem por isso deixam de ser laranjas. Assim também há democracias diferenciadas.”
E, demonstrando sua perspicácia política, continua: “Agora, o liberalismo morreu mesmo. É o (liberalismo) da Constituição de 1946, uma Constituição feita para responder ao nazifascismo, e que por seu excesso de liberalismo deu no que deu.” (O Livro dos Pensamentos do General Figueiredo, Editora Alfa-Omega, SP, 1978).
Dicionários de ciência política, jurídica e do pensamento social não têm verbetes para “pátria” ou “patriotismo”; os têm para “nação” e “nacionalismo”. Nacionalismo é definido como doutrina ou ideologia. Porém o que seria patriotismo? Uma virtude! Uma virtude cívica, fundamento estruturante da República, nas concepções de Maquiavel e Montesquieu.
No Dicionário do Pensamento Social do Século XX (1993), editado por William Outhwaite e Tom Bottomore (na versão brasileira de Renato Lessa e Wanderley Guilherme dos Santos para Jorge Zahar Editor, RJ, 1996) lê-se: “Existe nos seres humanos um impulso instintivo atávico que os leva a querer estar perto de outros do mesmo ‘sangue’ ou cultura (ou ambos) e a ocupar território juntos, e que também os leva a detestar os que consideram estranhos, a se ressentir de sua proximidade (especialmente em grandes números) e ainda mais fortemente do governo de estrangeiros.”
Em nosso entender há diversas falhas nesta enunciação que levam exatamente à desconstrução do nacionalismo; a associá-lo aos racismos e ao fascismo.
A nação é definida por um sentimento agregador e eivado de continuidade e permanência, conferindo um caráter de longo prazo alheio e superior ao curtoprazismo das especulações financeiras. A nação, portanto, é irredutível ao mercado, que, no máximo, quando se apresenta, constitui um momento específico da vida nacional, subsumido a relações de ordem não-mercantil, sejam elas morais, consuetudinárias, jurídicas, políticas etc., que lhe dão uma conformação singular, de modo que não existe um mercado em abstrato, mas distintas instituições econômicas que não podem ser compreendidas sem referência aos conjuntos nacionais em que estão inseridas.
O mais simples e primitivo sentimento nacional provém de um conjunto de famílias vizinhas, uma tribo, que ainda vigorava, no século 20, em populações ditas primitivas, estudadas por antropólogos. Como vimos na formação de Roma, nesta série de “Reflexões”, os latinos não buscaram construir a nação a partir da sua identidade tribal. Não no Lácio (Latium), mas em Roma, onde ocorreu o primeiro e mais notável surgimento de nação miscigenada: volscos, équos, sabinos, etruscos constituíram com os latinos a Nação Romana. Não foi a origem étnica, mas o sentimento da cidadania compartilhada que criou este magnífico exemplo de sucesso político que se espalhou por todo ocidente conhecido.
E a constituição do Estado Romano, por um código civil e processual, trouxe o direito, a norma de conduta e organização social formal, para todos, estabelecendo o modo de convivência das famílias, com hábitos e deuses distintos. E colocou a máxima que garantiria o Estado, a independência e a liberdade individual: “Salus publica suprema lex esto” (o interesse comum está acima do interesse privado).
Observe o prezado leitor a sabedoria dos patrícios e dos plebeus que construíram a Realeza e a reformaram instituindo a República Romana, com todas as funções do Estado, democraticamente preenchidas pelos critérios da competência e da representatividade: comícios, assembleias, tribunas e senado.
Outro verbete bastante controvertido é a democracia, como já vimos nas palavras do general Figueiredo. Jürgen Habermas, Joseph Bessette, Giovanni Sartori, Stuart Hall, Domingo García Marzá e José Luis Martí, entre muitos outros, têm se debruçado com ou sem adjetivos a refletir sobre a democracia nesta contemporaneidade capitalista e neoliberal.
O dicionário de Filosofia, realizado por André Noiray para o Centre d’Étude et de Promotion de la Lecture (La Philosophie, Lille, 1969), consigna que “democracia é um sistema político pelo qual o povo deve dispor de meios para determinar soberanamente seu destino, não se confunde, na história das ideias políticas, com a eleição, o sufrágio universal”. E acrescenta: “O sorteio, processo para escolha de jurados no Tribunal do Júri, por seu turno, é considerado democrático”.
José Luis Martí, professor de Direito e Filosofia Política na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona (Espanha), considera “enfermidade” o “extremo individualismo das sociedades capitalistas, promovido pelo modelo liberal, não intervencionista”, e a “democracia que ele nos oferece é mercantilizada” (J.L. Martí, La Republica Deliberativa – Una teoria de la democracia, Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, Madrid, 2006).
O terceiro verbete é “Estado”. O professor de Filosofia do Direito Reinhold Zippelius, da Universidade de Erlangen-Nuremberg (Alemanha), em sua obra Allgemeine Staatslehre (Teoria Geral do Estado, 1969), ressalta que o Estado é a urdidura, a densidade do “entrelaçamento do convívio humano”, nenhuma alusão à economia ou ao “mercado”.
E não se atribua ao professor Zippelius qualquer socialismo ou esquerdismo (seja lá que entendimento se dê a esta palavra), pois ele trabalhou com ideias de Karl Popper, cofundador da Sociedade Mont Pèlerin, organização fundada na Suíça, em 1947, para promoção do liberalismo.
O professor Zippelius, ao contornar a definição institucionalista de Estado dada pelo eminente sociólogo Max Weber – como sendo o complexo institucional que detém o monopólio da violência física legítima em dado território – enfatiza o caráter social do Estado, geralmente menos abordado, mas fundamental para se entender o Estado não como um avassalador Leviatã, mas como a forma por excelência moderna de organizar politicamente a vida coletiva das nações.
O Estado não está acima dos cidadãos, ele é a própria cidadania coletivamente organizada. Quando tal não ocorre, não estamos mais diante de um Estado nacional, mas de um “comitê executivo da burguesia”, para utilizar a definição marxista de Estado, cada vez mais adequada em tempos de neoliberalismo global.
Tratando o Estado do relacionamento das pessoas na vida em sociedade, cuidam-se como fundamentais duas questões: sua constituição e sua operacionalidade.
A população em seu território desenvolve uma cultura, ou seja, um conjunto de práticas e crenças resultantes da relação com o meio ambiente e os demais humanos. Esta cultura é única, pois não se repetem as mesmas formações humanas nem os desafios do ambiente são os mesmos em todas as regiões. Vem daí o primado do nacionalismo sobre a globalização, dos Estados, necessariamente Nacionais, opostos aos Estados Colônias, inevitavelmente ideológicos.
Tem-se aí a democracia, indispensavelmente participante como no Dicionário de André Noiray. “O eu é uma relação”, dispõe o professor e ministro Hermes Lima no sempre reeditado Introdução à Ciência do Direito (1933), pois “o ‘eu’ é como um sino: se houvesse o vácuo social em torno dele, nada se ouviria”, ao que acrescentamos, e se não houvesse a interação com o ambiente nada teríamos para satisfação das necessidades humanas.
Assim definidas as condições estruturantes: nação, Estado e democracia, vamos brevemente desenvolver alguns conceitos já tratados ao longo da história dos Estados Nacionais.
Democracia implica cidadania. Gaetano Sciascia, italiano, veio em 1947 para o Brasil, lecionando Direito Romano na Universidade de São Paulo (USP) e publicado, em 1949, o Manual de Direito Romano, de onde retiramos alguns conceitos. Não por serem melhores ou mais profundos, mas pela forma sintética, embora ampla, adotada por este autor.
Cidadania é a condição de quem goza a “ius civile”. De início, pela Lei Júlia (90 a.C.), abrigava apenas os habitantes do Lácio, em 89 a.C., sob a Lei Plautia Papira, os demais “romanos”, e, em 212 d.C., com Caracala, a todos homens livres habitantes do Império. À alforria, sob Justiniano, seguia-se sem exceção a cidadania, o “ius civile”.
Nesta progressão vê-se claramente que a cidadania é uma condição atribuída pelo Estado que, para tal, coloca atributos: naturalidade e independência em face aos outros homens. Nos artigos que seguirão pretendemos mostrar os requisitos e as obrigações do Estado para que a população sob sua proteção seja cidadã e, ainda mais, a estreita relação da cidadania com a democracia.
Ou, na expressão igualmente sintética de Nancy Fraser: “Ser cidadão e ser um par”, “estar no mesmo nível que os outros, estar em pé de igualdade” (em “Reconhecimento sem ética?”, do ensaio “Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition and Participation”, 1996, publicado por Annablume editora, SP, 2007, em Jessé Souza e Patrícia Mattos (organizadores), Teoria Crítica no século XXI).
Sem território e sem povo, não existe País. Mas o que determinará o país é o Estado. E discutir o Estado, atualmente, é se revoltar contra sua extinção como é o desejo neoliberal. Este tema será fundamental nas reflexões que pretendem formular uma Teoria para o Estado Nacional Brasileiro. E nada melhor do que concluir estas Condições Estruturantes com as palavras de quem foi, até agora, o último político brasileiro que defendeu o Estado Nacional e o trabalho como alicerces para um País, soberano, democrático e progressista, o ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Leonel de Moura Brizola (1922-2004):
“São ameaças que pesam sobre nós, porque estamos nos desarraigando, estamos nos desprendendo de algumas virtudes, de algumas questões que foram básicas, foram o cimento que mal ou bem construiu esta nação. Este movimento neoliberal quer abrir o país e transferir patrimônio público para bolsos particulares a partir deste eufemismo chamado ‘privatizar’. Naqueles pequenos países da América Central, onde coisas assim sempre foram possíveis, não deu certo. A população continua pobre, miserável, atrasada. Um povo só sai de suas dificuldades por si próprio. Um povo só consegue sair da crise com suas energias, com os seus valores. E também com o seu orgulho! E é isso que precisamos recuperar, é isso que precisa voltar a influir em nossos movimentos, em nossas decisões, em nossas preocupações. Precisamos retomar o nosso destino. E tudo que está aí é contrário a que isso aconteça” (Leonel Brizola – A legalidade e outros pensamentos conclusivos, organizado por Osvaldo Maneschy, Ápio Gomes, Paulo Becker e Madalena Sapucaia, NITPRESS, Niterói, 2011).
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.