A economia por Aristóteles: a cobrança de juros
Que estranho fenômeno teria ocorrido, no mundo ocidental, naquele réveillon de 1º/1/1300? Teriam chegado ao planeta Terra seres de outro mundo, como descreve o escritor e inventor britânico Arthur C. Clarke (1917-2008) no romance Childhood’s End (1953)? Ou a Terra teria submergido em The Poison Belt (1913), do também britânico e escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930)?
Vamos buscar a origem desta transformação quase 400 anos antes da Era Cristã, em Aristóteles, grande pensador da antiguidade, nascido em 384 a.C., em Estagira, na Grécia, aluno de Platão e professor de Alexandre III, o Grande, da Macedônia, e falecido em Atenas, em 322 a.C.
Ainda que menos conhecida, a obra sobre economia de Aristóteles cobre todas as transformações, físicas e espirituais, que a propriedade, a produção, a circulação, o comércio e a especulação com bens e sua expressão monetária provocam nas pessoas e nas sociedades. Ao contrário da moderna ciência econômica, Aristóteles não separava a economia das formas sociais concretas, tampouco entendia o agente econômico de forma distinta do ser político que constituía, no seu entender, a essência do ser humano.
Inicialmente, verifiquemos a distinção de Aristóteles da economia doméstica daquela de uma cidade, da pólis: a primeira, a administração da casa, é realizada por uma pessoa; a segunda, a administração da cidade, depende de muitos, diversos governantes. A família e a cidade são duas formas naturais de associação entre os seres humanos, inicia o Estagirita discorrendo sobre a própria semântica da oikonomia: administração da casa.
Esta noção – garantir o bem-estar – foi prevalecente até as considerações sobre a economia política, já em pleno domínio do capitalismo (século 17). Atualmente, como observamos no Dicionário Internacional da Outra Economia (Pedro Hespanha e outros, Almedina, Coimbra, 2009), a palavra economia se apresenta com nove qualificativos, ganhando significações próprias e diversas tais como: feminista, moral, plural, solidária, a par da conceituação ética, da moeda e do crédito.
Antes da Aristóteles, o ateniense Xenofonte (430 a.C.–354 a.C.), discípulo de Sócrates, elaborara, sob a designação de economia, um manual de administração para o proprietário de terra, onde discorreu, na forma de diálogos, sobre o trato com escravos, o relacionamento com a esposa e qualidades administrativas.
Aristóteles apresenta quatro tipos de transações que podemos entender como estágios da economia, que passa de subsidiária ao bem comum para impositiva, com poder absoluto, excludente e totalmente divorciada da casa e da cidade.
O primeiro tipo é a permuta pura e simples, do bem que falta para um e sobra de outro, sem qualquer ônus ou bônus intermediário. Entretanto este tipo ou estágio não permite o crescimento permanente da sociedade, fica restrito a poucas famílias. Porém o filósofo adverte que seu objetivo não é contrário à natureza, qual seja da satisfação das “necessidades naturais”.
O segundo tipo traz a moeda, “uma artificialidade”, que permite ampliar as trocas. Ele entende ser uma necessidade (anánke), da qual deriva esta convenção entre as partes, porém não se distancia do estágio anterior. Até aqui, a civilização romana vivenciou durante a Realeza e a República. Os sestércios vigoraram até a reforma monetária de Augusto, no Império, cuja nova moeda, de bronze, perdurará até o século 3.
O terceiro tipo já envolve um uso que traz nova concepção. Vimos que a comercialização era a maneira de prover a todos, não constituía uma atividade produtiva nem mesmo econômica. O que poderia existir era um serviço, o de transporte. Neste estágio surge a figura do atravessador, procura comprar, estocar, com fito de ter ganho que não está vinculado à manutenção da casa, mas ao enriquecimento sem produção. Como assinala Aristóteles: ganho a expensas dos outros e ilimitadamente, que não é para satisfazer uma necessidade natural.
Pior ainda é o quarto tipo, que usará a moeda para criar moeda; a cobrança de juros. Aristóteles diz ser contrário à natureza. É neste estágio exacerbado que nos encontramos, neste século 21, no Ocidente.
Se, até a Idade Média, os Estados Nacionais eram constituídos de acordo com o poder administrativo e militar, pessoais ou coletivos, centralizados ou descentralizados, com máxima participação de todos ou por algum semideus, a sociedade, a partir do século 14, se guiará mais pela economia do que pela política, ou seja, não mais pela administração da cidade, nem pelo âmbito geográfico, ou mesmo pela força ou pela origem étnica ou da família ou local de nascimento. O Estado será capitalista, isto é, o Estado que se move pelo capital, pelo dinheiro; não mais pelo trabalho ou pelas pessoas.
Evidentemente este fenômeno não ocorreu no dia 1º de janeiro de ano algum. A profunda transformação que ocorre nos derradeiros momentos da Baixa Idade Média foi sendo construída por circunstâncias e diversos eventos desde o Império Romano, como o triunfo do catolicismo, a fome, a peste, as gestões territoriais centralizadas e descentralizadas e um agente que vai ocupando e consolidando nova e estratégica atividade.
Para compreensão do capitalismo é muito importante acompanhar a dispersão da população que, no tempo dos impérios egípcio, sumério, meda e babilônico, ocupou a terra de Canaã: os judeus.
Um dos eventos foi a entrada de minerais, especialmente o cobre, em Canaã, que Isaac Asimov (The land of Canaan, 1971) afirma ter ocorrido 4.500 anos antes de Cristo, porém só ter sido efetivamente usado 2.500 anos depois. Outro evento foi a descoberta do deslocamento pela água ser muito melhor para o comércio do que pela terra, e o desenvolvimento das cidades próximas aos rios e mares: Megido, Siquem, Betel, Hebrón, Jerusalém.
Ainda com fatos mais longínquos, temos a discrição do desenvolvimento da religião judaica, na interpretação de Ernesto Renan (L’Église Chrétienne, 1879), onde “uma seita enclausurada em múltiplas prescrições” influenciada pelo dominador árabe, conquistador e negociante, buscou a razão popular ao invés do estudo da Lei maior (halaka) para sobreviver e se impor. Também as derrotas dos anos 70 e 134, levando o Imperador Adriano a impedir a restauração judaica em Jerusalém, favoreceu a diáspora que será importante para as relações comerciais-financeiras.
Mais proximamente, a circunstância mais significativa foi o amplo domínio do islã do entorno do Mar Mediterrâneo, as Cruzadas, a centralização administrativa, com a formação de reinos combatentes necessitados de financiamentos, e a riqueza que o renascimento artístico promoveu, em vários locais da Europa, em especial nas cidades mais prósperas, pelo comércio, na Itália, na Holanda, na Espanha. De igual importância, o grande cisma de Martinho Lutero (1483–1546) atingindo profundamente o psicossocial europeu e a Igreja Católica e promovendo a contrarreforma de Ignácio de Loyola (1491–1556), com a aguerrida Companhia de Jesus.
Em conclusão, foram eventos positivos e derrotas que colocaram os judeus, pelo século 13, na condição de importantes gestores usurários da moeda, atividade tão mal avaliada por Aristóteles.
Porém devemos ter a compreensão que grandes mudanças, como a constituição do Império Romano, como será dos impérios capitalistas, exigem um tipo de adesão ideológica da população para cuja construção, instintiva ou consciente, convergem diversos fatores.
Vivemos hoje a crise do capitalismo, já identificada há mais de um século. Os tempos cibernéticos são menores do que os mecânicos do renascimento. Se computamos a mudança da Idade Média para Idade do Capital ter levado cerca de 300 anos, a do Capital Financeiro para o Participativo Nacional Trabalhismo pode necessitar menos do que a metade do tempo.
No campo do pensamento que denominaríamos liberal, embora não se confunda com o radicalismo neoliberal de hoje, contribuíram as oposições e reações à servidão, ao absolutismo, à intolerância e ao estado aristocrático, como oposto ao democrático, que se impõe pela legislação, pela disciplina de comportamentos públicos e pessoais, efetivamente comum a todos, para o qual todos, como cidadãos, contribuem com participação direta, efetiva, pessoal.
Nas análises dos Impérios teremos oportunidade de voltar detalhadamente a estes temas. Por agora, fiquemos na enunciação desta significativa mudança da concepção de Estado.
O historiador neozelandês John G. A. Pocock (1924), na comunicação “O pré-capitalismo, a percepção augustana” (em Cidadania, Historiografia e Res Publica Contextos do Pensamento Político, Almedina, 2013, Coimbra), assegura que “Maquiavel foi o principal transmissor dos ideais e da teoria técnica do que pode ser designado por humanismo cívico ou republicanismo clássico” e “se as relações sociais mudassem de tal sorte que ele ficasse dependente de outrem, então as relações entre cidadãos, que constituíam a república, ter-se-iam tornado corruptas”.
Sem surpresa para quem acompanha a sociedade e o Estado, da Realeza Romana à Baixa Idade Média e conhece o que virá em seguida e prosseguirá até o século 21: os imperialismos.
O capitalismo colocará a corrupção, muito mais ampla do que o embolsar valores ilegalmente, dentro do Estado, que a Realeza e a República Romana (753 a.C.–27 a.C.) construíram com o Estado e o Direito (Corpus Juris Civilis) para evitar; com patrícios e plebeus (populus romanus) na base do poder sem vínculo de dependência (por exemplo: o intercessio, do tribuno da plebe). Como sempre, no correr do tempo, no amadurecimento dos processos constitutivos e na humildade das revogações (vide casamentos interclasses).
Entendendo o Estado como criação mais elevada do amadurecimento político da sociedade, onde a economia e a tecnologia são suportes para a vida digna e segura, o que encontramos a partir do Império, sem que seja uma linha única, contínua e irreversível, é a decadência. E para este Estado, a crítica de Aristóteles da economia financeira ser contrária à natureza é perfeitamente correta.
Como reflexão para os tempos modernos, não é conveniente deixar se levar pelas nomenclaturas, sem entender seus significados na história e os contextos em que foram aplicados: ditadores, reis, cúrias, ganham significados muito diferentes. Ao se defrontarem com emissários de tribo africana, verdadeiro par entre iguais, os invasores europeus, por absoluta falta de correspondência na sociedade hierarquizada, os chamaram “reis”, e, com sentido semelhante, entre nossas populações originárias, os “caciques”, muito embora eles trabalhassem e vivessem como todos demais nas aldeias e tribos que os faziam delegados.
O moderno Estado Nacional, como atestam historiadores e sociólogos do quilate de Werner Sombart (The Quintessence of Capitalism, 1913), Max Weber (Economia e Sociedade, 1922) e Fernand Braudel (Civilização e Capitalismo, 1979), foi dos fatores-chave para a formação do capitalismo ocidental. A aliança entre os reis, detentores monopolistas do poder político, e os banqueiros, detentores monopolistas do poder econômico, foi crucial para a centralização territorial e monetária que constituiu as nações contemporâneas.
Essa coalizão, porém, não foi isenta de tensões e contradições, pois, da mesma forma que os reis, em vários momentos, procuraram expropriar os banqueiros do poder econômico, esses últimos não se furtaram a buscar expropriar os reis do poder político.
A disputa pelo poder total caracteriza, até hoje, a dinâmica do capitalismo, que, na atual quadra histórica, define-se pela supremacia das finanças sobre a nação, pela incorporação do poder político aos ditames do poder econômico privado. Desses embates dependerão o futuro das sociedades capitalistas, constrangidas pela ascensão do neossocialismo chinês, onde a economia aparece claramente como um instrumento da política estatal.
Felipe Maruf Quintas é doutorando em ciência política.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.