Reflexões para Teoria do Estado Nacional: miscigenação, segregação

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Itens de tortura da escravidão (foto de Rodrigo Argenton, Wikimedia CC4)
Itens de tortura da escravidão (foto de Rodrigo Argenton, Wikimedia CC4)

A cidadania nacional está hoje afogada, submersa pelos movimentos identitários

 

“O que foi que você criou, Mundoca? Nada. Nunca se apegou a coisa nenhuma. Nunca tive um cachorrinho porque minha mãe não queria, sujava a casa. Não criei um cachorro, mas criei um bacorim até ela resolver dar um banquete. Você não criou nada mesmo, nem uma filha, que era mais fácil, como eu, como minha mãe, como minha avó, como sabe lá quem. Nada, hein, Mundoca?” (Assis de Almeida Brasil, Beira Rio Beira Vida, Edições O Cruzeiro, RJ, 1965).

 

Quatrocentos anos de escravidão legal fizeram imenso mal ao Brasil. Ainda hoje, passados mais de um século que formalmente se aboliu a escravidão, ela persiste no País em todo conjunto das relações sociais, em especial as econômicas, sociais e policiais. Embora seja até numerosa a bibliografia sobre o assunto, em romances, reportagens, estudos, ensaios e teses acadêmicas, ainda há grande incógnita sobre as formas e as relações e reações que naqueles quatro séculos se desenvolveram, especialmente pela diversidade colonizadora no Norte, Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil.

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Também pelos registros de épocas, fortemente impregnados de preconceitos e de interesses particulares, como se lê, como exemplo, nas cartas de Manoel da Nóbrega, que chega com Tomé de Souza para cuidar da “educação” dos gentios e das famílias dos colonizadores.

“O Colégio da Bahia seja de Vossa Alteza para o favorecer porque está já bem principiado e haverá nele vinte meninos pouco mais ou menos, e mande ao Governador que faça casas para meninos, porque as que têm são feitas por nossas mãos e são de pouca duração e mande dar alguns escravos da Guiné a casa para fazerem mantimentos e vestirem os meninos, se tiverem alguns escravos que façam roça de mantimentos e algodão…” (Carta de Manoel da Nóbrega a El-Rei Dom João III, 1551, em Cartas do Brasil 1549-1560, publicações da Academia Brasileira de Letras, Oficina Industrial Gráfica, RJ, 1931).

Dos registros mais fidedignos, podemos deduzir que no tratamento dado aos escravos havia um misto de medo de revolta, de incentivo à desunião e da mais profunda desconsideração como seres humanos. Por outro lado, as diversidades regionais, os recursos naturais, a existência e quantidade de população nativa, africana, portuguesa e outros europeus, além dos propósitos da colonização, irão apresentar condições diferenciadas da escravidão.

Há copiosa literatura produzida no Brasil e no exterior que trata da escravidão como processo da ação do poder socioeconômico naquela fase da transição do mundo medieval para o moderno, o capitalista. Para não interromper excessivamente o texto, apenas quando houver transcrição faremos menção à obra. De início há a ideia de que os comerciantes de escravos os traziam de tribos ou de etnias distintas para evitar a união e a revolta nos países escravistas.

Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, dois grandes estudiosos da África e da diáspora africana, principalmente em Filosofias Africanas uma introdução (2020), demonstram no pensamento ancestral africano, “uma ética fundante”. “Na praxe africana, o mal é o que prejudica os outros, o que ameaça a paz e a sobrevida do grupo”. Esta compreensão, como é óbvio para todos, encontra suas variações conforme as condições específicas da natureza: floresta cerrada, desertos, muita ou pouca água doce, estepes etc.

“No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo está ligado, tudo é solidário; e o comportamento do ser humano em relação a si mesmo e ao mundo que o cerca é objeto de regras extremamente precisas”. Cai por terra a ideia da diferença decorrente das variadas origens dos africanos escravizados. Também os ramos linguísticos nas regiões de onde vinham os escravos não eram muitos, pois estavam, em geral, no entorno do golfo da Guiné, como se verifica na carta de Manoel da Nóbrega. Tem-se de norte para sul: mandinga, akan, igbo/iorubá, fang e kongo.

Existe a questão da competição, introduzida pelo próprio comportamento dos senhores e pelo sistema de recompensas e punições. Há certa sagacidade dos escravistas que se evidencia, por exemplo, em Sheila de Castro Faria (Mulheres forras – Riqueza e estigma social) e Robert W. Slenes (Na Senzala, uma Flor, capítulo I, Histórias da família escrava). Escravos libertos que tomam negros como eles para escravos. Tem-se, portanto, o próprio modelo capitalista como um dos elementos fundantes da segregação.

“A quinta razão foi o grande desejo que havia de acrescentar em a santa fé do nosso senhor Jesus Cristo, o trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo foi obrado a este fim, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho, conhecendo que se não podia ao Senhor fazer maior oferta…” (Gomes Eanes de Zurara, Crônica do Descobrimento e Conquista de Guiné, 1453)”. Resquício medieval, e sabemos da dificuldade de Portugal entrar na idade moderna (vide a Inquisição), a questão religiosa também constitui elemento para escravidão e suas consequências, como a segregação.

Registros do tráfico escravista em Maurício Goulart (A Escravidão Africana no Brasil, 1965) para a década 1798–1807, apontam o desembarque de 27.744, vindos da “Costa da Mina”, e 11.049, de “Angola e Benguela”, ou seja, akans, iorubás e igbos majoritários, e kongos, da atual Angola. E nos conduz para outra questão: a morte dos escravos. Autores como Jackson Ferreira, Manolo Florentino, Rafael de Bivar Marquese, Robert Slenes, Ronaldo Vainfas e outros chamam a atenção para a quantidade de mortes entre escravos, necessitando a cada três anos de repor seus quantitativos, além das novas ocupações para as quais se faziam necessários.

Morriam não só pelos maus tratos, mas por enfermidades, má alimentação e exaustão física. Os escravistas, como dissemos, não os viam como pessoas, mas como objetos a serem usados e depreciados, ou seja, substituídos por critérios econômicos. Manter escravo doente era inteiramente fora de propósito.

Na estatística que o médico Roberto Jorge Haddock Lobo apresentou, em 1850, de parte da zona central da capital, Freguesia da Candelária, Município Neutro, Rio de Janeiro, para Eusébio de Queiroz Matoso Câmara, então ministro da Justiça do Império, constam 41,2% de escravos africanos, 26,2% de estrangeiros livres (quase integralmente portugueses), 18,3% de brasileiros livres, 13,5% de escravos brasileiros e 0,8% de libertos.

O senador gaúcho Cândido Batista de Oliveira (1801–1865) estimou a população brasileira, em 1850, em 8 milhões de habitantes, cerca de 3 milhões a mais do que no ano da Independência. Não seria razoável aplicar estes percentuais para o Brasil, mas se pode estimar que cerca da metade da população nacional fosse composta, no século 19, por escravos africanos. Aos quais de agregavam mais 10% de mestiços ou mesmo negros já nascidos no Brasil.

Na excelente história de Décio Freitas, Palmares A Guerra dos Escravos (1978), aquele historiador inicia criticando que as revoltas dos escravos no Brasil não encontraram “direito à história”. Mesmo os melhores autores sobre o estudo do negro em nossa Pátria, como o médico antropólogo Artur Ramos (1903–1949), incorrem nessa marginalização histórica.

Podemos entender que o medo, uma das razões da segregação, sempre esteve presente. Palmares foi um evento que nasceu ainda no século 16 (em Pernambuco) e perdura por toda nossa história, a ponto de Abdias Nascimento (1914–2011) conceituar quilombo como uma vivência cultural coletiva, o encontro de solidariedade, convivência e comunhão espiritual.

Professor João Oscar, na excepcional obra Escravidão & Engenhos (1985), não apenas se refere a este “desinteresse” dos historiadores sobre a escravidão, como é dos poucos que a coloca na questão fundiária brasileira, “unidos, já do início de nossa formação histórica, o latifúndio e a monocultura”. Em sua pesquisa sobre o Norte-Fluminense (Campos, São João da Barra, Macaé e São Fidelis), João Oscar identificou etnias e tribos do oeste africano naquela região fluminense, e, também, os originários de Moçambique, os makondes, ainda que em menor número. Para o município de São João da Barra, criado em 1677, enumera nominalmente 30 proprietários produtores de açúcar, empregando 1.065 escravos, no ano de 1851. Em 2021, este município contava com 37 mil habitantes (IBGE).

A pesquisa do professor João Oscar nos permite fazer algumas reflexões. Os índios goitacazes eram os habitantes originais de toda aquela região da foz do rio Paraíba do Sul. No censo do IBGE, de 2010, a população de São João da Barra era formada por 20.779 brancos (63,43%), 10.264 pardos (31,34%), 1.588 pretos (4,85%), 89 amarelos (0,3%) e 27 indígenas (0,08%). Com base nas experiências pessoais e pelas próprias estatísticas do IBGE, podemos avaliar que alguns classificados como “brancos” fossem miscigenados. Pois, no 1º trimestre de 2021, os brasileiros maiores de 14 anos, no total de 176,9 milhões, 44,8% se declararam de cor parda; 45,0% de cor branca e 9,0% de cor preta.

É o que se espera, fora alguns casos particulares como: de imigração recente, que se dirigiu para mesma localidade e ainda não passou da segunda geração; de regiões do Brasil com forte presença de índios ou de negros; a expectativa é de encontrarmos a maioria absoluta de miscigenados, nem sempre identificados pela cor de pele, mas por junções culturais de etnias de pele semelhante, árabes-lusitanos, por exemplo.

O curto período da Era Vargas, um décimo da existência histórica brasileira, não foi suficiente para alterar preconceitos surgidos com a escravidão e a educação não cidadã, ou seja, para reafirmar e até punir quando não havia a aceitação das diferenças. E o incrível, numa população majoritariamente miscigenada. Parte dessa situação pode ser entendida na própria formação do Estado. O Estado Nacional Brasileiro não foi constituído a partir das realidades físicas e culturais da nação, mas de ideologias alienígenas e conceitos gerais, ditos universais, de democracia, liberdade, representatividade, sem observar suas compreensões e relevâncias para as nações, para os grupos sociais mais plurais, menos homogêneos.

Exemplificando, têm-se nas análises de Luiz Roberto Pecoits Targa (Gaúchos e Paulistas na Construção do Brasil Moderno, 2020 – Coleção Estudos Rio-Grandenses nº 1) os seguintes trechos:

“O caso do Rio Grande do Sul foi sensivelmente diferente: fazia muito tempo que a imigração contribuía para minar as bases da antiga ordem social, pois nesta Província ela havia precedido de muito a abolição da escravidão”. Targa demonstra que o Governo Provincial impedia o uso de imigrantes como escravos, como empregados, formando núcleos de pequenos proprietários, responsáveis por “seus meios de produção e de subsistência”.

Diferentemente de São Paulo que, na fase de expansão da produção de café (1850) “incitou e acelerou a redistribuição do estoque de escravos nas diversas regiões do Brasil, dada a suspensão do abastecimento do País”. “O Nordeste começou a exportar escravos para a região do café. Um escravo em Rio Claro (SP) valia duas vezes mais que um escravo em Salvador (BA)”. “O Rio Grande do Sul foi a Província que exportou o maior número de escravos proporcionalmente ao seu rebanho”.

Em relação às populações originárias, os colonizadores europeus (espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses e franceses) promoveram nas Américas o maior holocausto que se tem notícia na História. Além da matança direta, pelo maior conhecimento de armas, as doenças trazidas pelos europeus provocavam pandemias que eliminavam etnias inteiras.

A religião dava sua contribuição obrigando os indígenas a renegarem suas culturas, até mesmo seus nomes. Em 1669, em Salvador, as homilias abençoavam a matança de índios pois estes bárbaros impediam a expansão do progresso civilizador. A tentativa do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865–1958), com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a criação do Parque Nacional do Xingu, de manter as populações e as culturas pré-cabralianas, teve curta duração e não resistiu a seu falecimento e à ganância das empresas e empreendedores individuais.

A cidadania nacional está hoje afogada, submersa pelos movimentos identitários que não favorecem negros, índios, condições sexuais, mas ajudam extraordinariamente ao desenvolvimento de segregações. É o neoliberalismo destruindo as nacionalidades.

 

Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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