Reflexões para Teoria do Estado Nacional: momento de transformação

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Bandeiras dos Brics (Foto: Marcelo Camargo/ABr)
Bandeiras dos Brics (Foto: Marcelo Camargo/ABr)

Parece surgir o fim desta era colonial

 

Nos 12 artigos, já publicados no Monitor Mercantil, desta série de “Reflexões para Teoria do Estado Nacional”, fizemos uma revisão crítica da organização das sociedades ocidentais deste a formação de Roma (século 8 a.C.) até esta segunda década do século 21.

Embora tenhamos afirmado tratar nesta série apenas do mundo ocidental, este século trouxe a emergência da República Popular da China (RPC) (China). E com tal intensidade que torna impossível imaginar os padrões civilizatórios do extremo Oriente continuarem ignorados pelo Ocidente.

Fica indubitavelmente difícil para os Impérios Ocidentais aceitarem a supremacia da antiga colônia oriental. Mas desconhecê-la significará imperdoável alienação e verdadeira incapacidade de convivência no mundo que está sendo construído.

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Mas, contrariamente aos Impérios Ocidentais, a presença chinesa não está impondo idioma, religião, hábitos pessoais e comportamentos sociais. Não pretende, pelo que até agora nos foi dado conhecer, impor a democracia de uns poucos, nem a escravização de muitos, ou um sistema de poder hereditário, seja formal, seja cultural ou econômico.

Efetivamente, a emergência da China põe-nos a refletir sobre o momento de transformação de uma sociedade que foi se transformando em concentradora de capital e de renda, belicosa e excludente, por razões até incompreensíveis, como a sexual, se pudéssemos ser transformados em hermafroditas!

Mas o Oriente não fez parte da cultura de massa que nos dominou por todo século 20. E então, como um homem primitivo, passamos a temer ou adorar o sol, a chuva e os fenômenos naturais que não compreendemos.

Chega a ser ridículo dirigentes de países ocidentais irem à China como se fossem a um messias ou, contrariamente, colocarem sanções e embargos no relacionamento com a maior potência econômica e populacional do planeta.

Neste curto sumário de nossa visão crítica da transformação da sociedade ocidental, vamos confrontá-la com algumas características de eventos históricos da China. A China não é uma sociedade miscigenada, como também não são, de modo geral, as europeias e atlânticas, exceto a brasileira.

As três mais numerosas etnias da população chinesa são os han, com 1 bilhão 300 milhões (91%), os zhuang (16 milhões) e os manchus (11 milhões). As demais 53 etnias têm menos de 10 milhões.

A lei chinesa garante a todas as etnias igualdade, o Estado protege seus direitos e interesses e aplica os direitos de igualdade, unidade, ajuda mútua e prosperidade comum nas relações entre os diversos grupos étnicos.

O mandarim é o idioma predominante, falado por quase toda população. Ele é ensinado em todas as escolas. Há seis principais dialetos, sendo principal o cantonês (yue), falado no sul. Línguas não chinesas também faladas no território da RPC são mongol, tibetano e uigur, algumas turcas e o coreano (na região da Manchúria).

O Produto Interno Bruto da China, em 2020, foi estimado em US$ 14,72 trilhões. Para simples percepção, o dos Estados Unidos da América (EUA) foi US$ 21 trilhões, da Alemanha, US$ 4 trilhões, do Reino Unido, US$ 3 trilhões, da Índia e da França, US$ 2,5 trilhões, e da Itália, menos de US$ 2 trilhões.

Porém, de acordo com o Instituto Schiller, repercutido pelo Monitor Mercantil, em 2/3/2022, na coluna Fatos e Comentários, “há a bolha de US$ 2 quadrilhões, em dívidas e derivativos, pronta para estourar”. Não só atingindo os EUA, mas todo Ocidente, sendo bastante significativo o elevado montante do Reino Unido, pelos documentos de crédito sem lastro, ou seja, papéis podres, emitidos por organizações financeiras da área do Atlântico Norte. O que significa que o PIB ocidental é, na verdade, imensa dívida a descoberto.

O Instituto Schiller é um think tank político e econômico, com sede na Alemanha, fundado em 1984 por Helga Zepp-LaRouche, com membros declarados em 50 países, que estuda, analisa e denuncia as instituições financeiras internacionais e órgãos supranacionais, pelas falácias de suas informações e por causar verdadeiro estado de tirania no mundo, especialmente entre as nações em desenvolvimento.

A guerra que se trava na Ucrânia é, por conseguinte, guerra geopolítica e financeira, não apenas nem sobretudo militar. O presidente Putin sabe deste imenso furo nas finanças da área da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), e a guerra foi desencadeada com a certeza destas fragilidades ocidentais, tanto na economia quanto na tecnologia.

Do final de 1884 até fevereiro de 1885, sob a presidência do chanceler Otto von Bismarck (1815–1898), reuniram-se na Conferência de Berlim 15 nações colonizadoras para dividir “amistosamente” o Continente Africano: os Impérios Alemão, Austro-Húngaro, Britânico, Russo, Turco-Otomano, a Bélgica, França, Holanda, Itália, Espanha e Portugal, a Dinamarca, Noruega e Suécia e os EUA.

Setenta anos depois (abril de 1955), em Bandung, cidade da Indonésia, 29 países da África e da Ásia se reuniam para condenar o colonialismo, todas as práticas de segregação e discriminação racial e emitir a seguinte Declaração de Bandung:

1) Respeito dos direitos humanos fundamentais, em conformidade com as finalidades e os princípios da Carta das Nações Unidas;

2) Respeito à soberania e à integridade territorial de todas as nações;

3) Reconhecimento da igualdade de todas as raças e de todas as nações, pequenas e grandes.

4) Não intervenção e não ingerência nas questões internas de outros países;

5) Respeito ao direito de cada nação se defender individualmente ou coletivamente, conforme a Carta das Nações Unidas;

6) Abstenção de uso de arranjos de defesa coletiva destinados a servir aos interesses particulares de alguma das grandes potências; abstenção de um país exercer pressões sobre outros;

7) Abstenção de atos ou ameaças de agressão ou de uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de um país;

8) Tratamento de todas as disputas internacionais por meios pacíficos, tais como a negociação, a conciliação, a arbitragem ou a mediação de tribunais ou ainda outros meios pacíficos de escolha das partes, conforme a Carta das Nações Unidas;

9) Promoção dos interesses mútuos e da cooperação; e

10) Respeito à justiça e às obrigações internacionais.

A Declaração de Bandung, criando o mundo multipolar, desagradou as potências que usufruíam da bipolaridade então existente: EUA e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Diversos líderes participantes de Bandung encontraram, pouco tempo depois, levantes nos países que governavam e seus assassinatos. Foi a resposta dos Impérios.

Em junho de 2006, formalizou-se a existência de um grupo de nações – os Brics – unindo o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul. O acrônimo “Bric” foi formulado, em 2001, pelo economista Jim O’Neill, do banco Goldman Sachs, em estudo com prognósticos sobre o crescimento das economias de Brasil, Rússia, Índia e China – por representarem, então, em seu conjunto, parcela significativa do produto e da população mundial. Posteriormente foi incorporada a África do Sul (S).

Observemos que desde o mundo unipolar do domínio financeiro inglês, no século 19, a sociedade humana viu a reação europeia na Conferência de Berlim, que culminou na I Grande Guerra, a Revolução Comunista no Império Russo, em 1918, que, após a II Grande Guerra, acarretou o mundo bipolar, ao qual se insurgiu a Conferência de Bandung, sem sucesso, mas deixando sementes, que as finanças, agora unindo os capitais anglo-sionistas aos estadunidenses, promoveram o Fim da História, 1991, e o mundo novamente unipolar sob o capital financeiro, no qual encontramo-nos atualmente.

Sob esta perspectiva, poderemos interpretar os Brics como o Bandung do século 21, porém mais forte, como a guerra na Ucrânia está demonstrando, malgrado toda a mídia ocidental apenas apresentar inverdades e farsas, e levando o mundo Otan ao caos e à falência econômica.

A emergência asiática, sob a condução da RPC, com apoio da Federação Russa, da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), de muitos países africanos e latino-americanos, propugnando pelo mundo multipolar tem robusta e consistente condição de se firmar e se impor ao decadente mundo ocidental.

 

O que esperar deste novo tempo?

O revolucionário e dirigente da URSS Vladimir Ilyich Ulianov, Lenin (1870–1924), em seu conhecido livro O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo (1916) escreveu: “O imperialismo é um capitalismo na fase de desenvolvimento, quando tomou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, quando ganhou significativa importância a exportação de capitais, quando se iniciou a partilha do mundo pelos conglomerados internacionais e terminou a repartição de toda a Terra entre os países capitalistas mais importantes.”

Conde George Grey (1851–1917), em Hubert Hervey, Student and Imperialist: A Memoir (1899), afirma que o homem branco, particularmente o inglês, “é o único que sabe governar”, nesta biografia de um gerente da British South African Charteres Co.

Criticando ou enaltecendo o imperialismo, as razões quase sempre se limitam ao domínio da economia, suas consequências políticas, às ações militares; poucas vezes, como no livro do Conde inglês, adentram nas questões psicossociais.

Entretanto, são estas últimas as mais profundas, mais difíceis de conseguir a independência, a libertação. É onde reside a pedagogia colonial. Com os impérios iam as religiões – católica, islâmica, protestantes de diversas designações – as ideologias do desenvolvimento, do mercado, do estado repressor e, nestas últimas décadas, a neoliberal.

O histórico do povo “han” não é de dominação. Na Ásia, os povos que buscaram colonizar foram os mongóis e os japoneses. A Nova Rota da Seda, ou Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século 21, tem levado desenvolvimento a 145 países integrantes, sendo 44 da África, 42 da Ásia, 29 da Europa, 20 da América Latina e Caribe e 10 da Oceania. A mais recente inclusão foi a da Argentina.

O que parece estar surgindo, e as reações financistas dos EUA, do Reino Unido, de Israel, e de parte da Europa continental demonstram, é o fim desta era colonial. O que poderá fazer surgirem Estados Nacionais, formados pelas culturas de suas populações e com apoios recíprocos para os desenvolvimentos locais.

 

Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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