Reflexões para Teoria do Estado Nacional: necessária reorientação nacionalista

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Bandeira do Brasil e Congresso (foto Marcello Casal Jr, ABr)
Bandeira do Brasil e Congresso (foto Marcello Casal Jr, ABr)

A partir de 64, questão democrática substitui a questão nacional

 

O nacionalismo foi a nota dominante do ideal político brasileiro em quase todo século 20. Como toda força dominante, desdobrava-se em frentes e vertentes de distintas colorações, como analisamos em artigos anteriores.

A política transpirava nacionalismo, de modo que era impossível qualquer força política se legitimar sem recorrer ao nacionalismo e sem trabalhar para a construção do Estado Nacional. Mesmo liberais, cosmopolitas ideológicos como Roberto Campos, tinham que se mostrar em alguma medida antenados aos interesses nacionais.

Isso tudo, no entanto, começou a mudar a partir de 1964, quando a solução militar de força, para o impasse institucional que se arrastava desde a renúncia de Jânio Quadros, proscreveu o nacionalismo de esquerda, atirado ao balaio comunista. Ideologia que, desde 1935, servia de espantalho para preservar as posições de poder das classes dominantes.

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O regime instituído a partir de então, liderado pelo Alto-Comando das Forças Armadas, impôs o monopólio da representação nacionalista. Efetivamente, o nacionalismo do período foi muito mais do que iconográfico, e, para desconcerto dos analistas amarrados às aparências, realizou, com empenho e vontade, praticamente todas as “reformas de base” propugnadas pelo nacionalismo de esquerda.

Todavia, a natureza autoritária do regime e o ressentimento despertado, no lado perdedor, pela truculência da repressão modificaram os termos do debate público, que deixou de se pautar pela questão nacional e passou a se orientar pela questão democrática.

A ideia de Nação e até mesmo a de Estado, hegemonizada pelos militares, tornou-se cada vez menos atrativa para os setores oposicionistas, cuja viabilidade política dependia da retirada dos militares da máquina estatal.

Ao mesmo tempo, a rápida modernização social, decorrente do acelerado desenvolvimento das décadas 1960 e 70, fortaleceu a classe média que, tendo contato com um setor universitário em franca expansão, absorveu visões e ideais inclinados à renovação política. Esta ocorre no sentido de maior absorção dos padrões institucionais existentes nos países que, então, se configuravam como referências de progresso e desenvolvimento, notadamente os do Atlântico Norte. Quando tem início o processo de redemocratização, o mote das oposições era o culto à sociedade civil.

Os militares, desgastados pela incontornável crise econômica e social, advinda da deterioração do cenário externo a partir de 1979, ficaram acuados e trataram de negociar sua saída sem a chance de revanchismo. Porém, no debate público, ganhava força a ideia de que o Estado, entidade nacional por excelência, burocrático e monocrático, seria autoritário e monocrático, enquanto a sociedade civil, cosmopolita e pluralista, seria o abrigo dos cidadãos livres e o modelo para a reconstrução democrática das instituições estatais.

As greves do ABC, que lançaram Luiz Inácio da Silva como liderança popular brasileira, e as mobilizações pró-abertura encetadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e pelos setores progressistas da Igreja Católica, congregados nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), fortificaram a esperança da sociedade civil como instância regeneradora da política nacional.

No plano acadêmico, a Universidade de São Paulo (USP) e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em particular, se tornaram celeiros da voga “civilista”, que ressuscitava e atualizava, décadas depois, o liberalismo idealista de Ruy Barbosa. Muito importante, para isso, foi a atuação dos “brasilianistas”, pesquisadores em geral estadunidenses que se dedicavam ao estudo dos assuntos brasileiros sob o prisma da contradição entre democracia e autoritarismo, entendendo por democracia as práticas e relações político-institucionais existentes nos países do Atlântico Norte.

O jurista gaúcho Raymundo Faoro, autor da tese de que a história do Brasil havia sido sempre a história da perpetuação do “patrimonialismo ibérico” contra as forças espontâneas da sociedade civil, conseguiu, na redemocratização, o sucesso que não havia obtido quando da primeira edição da sua obra Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro, 1958.

Nesse mesmo momento, como se articulados, ganhavam força as releituras pró-sociedade civil do marxista Antonio Gramsci e a disseminação de traduções de autores como o historiador fenomenologista Claude Lefort, o antropólogo Pierre Clastres (sociedade “contra o Estado”) e o cientista político polonês, atuante na Universidade de Nova York, Adam Przeworski, que tendiam a posicionar o pluralismo societal como agente de governabilidade democrática, sedimentando teoricamente o afã democratizante da época, buscando conciliar as análises macroestruturais com um individualismo metodológico.

Particularmente importantes, como compêndios do espírito do tempo, foram as coletâneas “Brasil, Sociedade Democrática”, organizada em 1985 por Helio Jaguaribe, Francisco Iglésias, Wanderley Guilherme dos Santos, Vamireh Chacon e Fábio Comparato, e “Democratizando o Brasil”, organizada em 1988 por Alfred Stepan. Surge, em particular, Fernando Henrique Cardoso, proclamado “Príncipe da Sociologia” pela Folha de São Paulo, que se destaca como a eminência parda da corrente intelectual para a qual a missão do Brasil não era mais a de se constituir como Nação, mas de se tornar democrático, segundo o padrão dos países capitalistas mais desenvolvidos.

Não mais se buscava a solução própria para os problemas e questões nacionais, pois essa concepção, típica dos regimes autoritários e nacionalistas anteriores, se afigurava perigosa para a sociedade civil “universal” que se pretendia empoderar.

Também entre os antigos aliados do regime militar o nacionalismo saiu de moda. A “velha guarda” castrense, formada no tenentismo da década de 1920 e imbuída de valores nacionalistas e estatistas, já não conseguia referenciar as gerações mais recentes de politicões e tecnocratas, seduzidas pelas oportunidades douradas oferecidas pelo sistema financeiro emergente em todo o mundo ocidental.

Não sendo mais legítimo defender o regime militar, as credenciais democráticas, daqueles que até então administravam a máquina estatal ditatorial, passaram a se dar pela defesa do “mercado”, instância privada de alocação de recursos que, assim como a sociedade civil do campo oposicionista, visava descentralizar e remodelar o poder estatal num sentido claramente antiestatal.

Os mesmos que, pouco antes, arregaçavam as mangas para construir poderosas empresas estatais e autarquias públicas, de repente, tornaram-se paladinos da sua privatização, em nome da “modernização”. É verdade que, pelo menos inicialmente, muitos expoentes liberais ou recém-convertidos ao liberalismo ainda não tinham em mente se desfazer da totalidade do Estado nacional.

Assim, não soava contraditório o liberalíssimo José Guilherme Merquior defender, como um neodesenvolvimentista de hoje, o papel indutor do desenvolvimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e mesmo acentuar a importância de uma teoria do Estado, em vez de romantizar as instâncias não estatais da sociedade civil e do mercado, assim como não era esdrúxulo o ex-ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso advogar o liberalismo, enquanto defendia a manutenção da estatalidade da Telebrás e da Vale do Rio Doce.

De modo geral, porém, o privatismo tornou-se a tônica dominante da direita, e teve em Roberto Campos um dos seus mais proeminentes advogados. O antigo Roberto Campos, protagonista do BNDE (agora BNDES), do Plano de Metas e do Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) do Marechal Castelo Branco, converteu-se em acalorado defensor de tudo que dissesse respeito à desregulamentação e privatização.

O liberalismo infiltrou-se até mesmo no antiliberal campo militar. Enquanto “velhos estatistas” como Geisel e Médici eram ostracizados, consumidos pelo ressentimento de verem sua obra reduzida a torturas e desaparecimentos, os novos militares recebiam transfusões venais de ultraliberalismo, como atesta a publicação pela Biblioteca do Exército de O Caminho da Servidão, de Friedrich von Hayek, ainda no início da década de 1990, bem como as palestras de célebres expoentes liberais, como Donald Stewart Jr., na Escola Superior de Guerra (ESG) a partir dessa época.

Curiosamente, a tese faoriana do “patrimonialismo ibérico” como mal de origem do Estado brasileiro foi assimilada também pelos circuitos liberais e militares, que passaram a ver na privatização e na abertura de mercado os meios para ajustar o Estado ao seu delineamento “ideal” e “anglo-saxão” de “Estado enxuto” e “pró-empresário”.

Desde então, a apologia esquerdista da sociedade civil e a apologia direitista do mercado se radicalizaram a ponto de negarem ostensivamente a própria existência do Brasil. O furor privatista do governo Bolsonaro, que não poupa sequer as praias, tem sua contraparte no furor niilista de setores expressivos da esquerda, cujo ativismo consiste em depredar monumentos históricos e distorcer a língua pátria, enquanto movimentos e discursos separatistas colaterais ganham dia após dia mais visibilidade.

A Questão Nacional praticamente desapareceu do temário político brasileiro, com gravíssimas consequências psicossociais que aumentam cada vez mais a vulnerabilidade do país à demagogia de falsas lideranças inescrupulosas ligadas a operações externas de desestabilização interna para facilitar a pilhagem dos vastos recursos naturais brasileiros.

O estado geral de desorientação e de fragmentação da sociedade brasileira decorre da perda do sentido de nacionalidade, de todo o patrimônio físico, histórico e cultural que une e irmana os brasileiros.

De certa forma, a “modernização” sociocultural reflexa entronizada no Brasil, sobretudo nas elites intelectuais, juntamente ao processo de industrialização do século 20, mesmo nos governos mais nacionalistas, arrastou o Brasil para o progresso geral de decadência e autodestruição vivenciado pelos centros ocidentais.

A única solução para isso passa pelo resgate do nacionalismo e da questão nacional, faróis para a redescoberta do Brasil e do que há de singular e específico à civilização miscigenada brasileira à qual pertencemos.

 

Felipe Maruf Quintas é mestre e doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.

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