Quando tivemos a aristocracia, a burguesia e o povo?
“Bicho-papão, mateus de reisado e meganha eram os mais alucinantes personagens de minha infância. Essas medonhas figuras, folclóricas ou reais, me provocavam delirantes pesadelos. Mas, na pré-adolescência, final dos anos 1950, outros seres abomináveis passaram a ocupar meu terrificante imaginário. Foi quando assisti aos primeiros faroestes cujos enredos enfocavam a campanha do lendário General Custer contra os índios sioux. A partir de então, Cavalo Louco, o chefe sioux, e seus pavorosos selvagens invadiram minhas oníricas aventuras, ameaçando rasgar meu peito e rachar meu crânio com suas apavorantes machadinhas. Felizmente, na hora agá, sempre aparecia a Sétima Cavalaria, tendo à frente um bravo corneteiro executando o toque de avançar, e a tropa me salvava daquelas desalmadas criaturas” (Fernando Soares Campos, Sioux, tupiniquins e caetés, em Fronteiras da Realidade, 2018).
Todo modelo de poder se faz presente por uma forma de dominação. Há, no entanto, uma condição que todos os poderes buscam controlar: a mente dos que lhe estão sujeitos. Quando o poder é de ordem ideológica, mais forte ainda se dá a pedagogia colonial. A Idade Média europeia, como vimos no início desta série, embora com ações até antagônicas, um manto teísta deu unidade ao período, quer no mundo católico quer no islâmico, contrastando com o “materialista” do chinês confuciano e mesmo com o mitológico greco-romano.
A pedagogia colonial não se limita ao ensinamento, mas aos comportamentos e hábitos que as pessoas passam a considerar corretas e naturais. Os cheiros, os sabores, as afeições são os primeiros passos da pedagogia colonial que se seguem com as imitações e os aprendizados, formais escolares ou pelas mídias, pela publicidade e pelas modas.
Fomos educados para enaltecer o estrangeiro, o colonizador, e depreciar o nacional. Quatro séculos de escravidão no Brasil muito contribuíram para a pedagogia colonial, criando a separação entre os que podem e os que não podem, os que têm e os que não têm, levando ao ponto culminante da pedagogia colonial: pensar como os que detêm o poder, mesmo com imensos prejuízos materiais, morais e psicológicos.
A questão nacional após 1822, isto é, no Brasil Independente, defende e luta pelo Brasil soberano, pela autonomia da administração brasileira: a estrutura e o modo de gestão condizente com o interesse nacional. Daí decorre a prioridade da questão nacional sobre todas as demais que, sendo importantes, não sobrevivem no país colônia, como as denominadas identitárias, e nem mesmo as com mínimo atendimento do social, como a manutenção do poder de compra dos salários.
Barbosa Lima Sobrinho constata que a preocupação de Adam Smith a respeito da riqueza das nações “foi de certo modo afastada quando a Economia Política passou a interessar-se pela política dos ricos” e “foi então que se começou a pensar que o desenvolvimento econômico, em vez de ser uma etapa inevitável no caminho de qualquer nação, era antes uma exceção”.
E este grande homem público brasileiro, citando Benjamin Higgins (Economic Development, 1924) diz que “a estagnação é a regra, e o desenvolvimento econômico, a exceção” (Barbosa Lima Sobrinho, “O enfoque histórico do desenvolvimento econômico”, em Em Defesa do Interesse Nacional – Desinformação e Alienação do Patrimônio Público, Paz e Terra, RJ, 1994).
Porém, no mundo após a II Grande Guerra, o espaço de colonização política foi se estreitando enquanto avançava a colonização econômica, tecnológica, sempre ampliando a pedagogia colonial, a colonização do conhecimento, dos entendimentos.
Engenheiro e gerente da Petróleo Brasileiro S.A. – Petrobrás, José Fantini (“Abertura ou fechamento do setor petrolífero”, também em Em Defesa do Interesse Nacional – Desinformação e Alienação do Patrimônio Público) demonstra a vulnerabilidade das empresas privadas de petróleo, a começar pelas poucas reservas de hidrocarbonetos que disponham, em 1992. Enquanto as mais modestas, as de menor volume de reservas, entre as empresas estatais de petróleo, tinham reservas para 12 ou 13 anos de consumo, estes 11 e 12 anos eram os melhores desempenhos entre as maiores companhias privadas. E, acentuava o superintendente de Planejamento da Petrobrás, “não existe, no mundo, qualquer grande empresa de petróleo que não seja verticalizada, com atuação em todos os segmentos do negócio e de forma integrada”.
Buscou-se entender que, entre a aristocracia, os verdadeiros donos do poder, desvinculados da necessidade dos povos, e o próprio povo, surgia a burguesia, com características nacionais, onde desenvolver-se-ia a cultura própria – formas e estruturas de governo e de administração – e este fenômeno, comum a todas as sociedades, constituiria o padrão dos países ocidentais.
Vejamos o Brasil Independente. Quem era a elite, esta aristocracia no poder? A mesma do Brasil Colônia, com os mesmos olhos e interesses no exterior, devedora de banqueiros ingleses, ruralistas, donos de terras, rentistas, que conduziam as ações do Estado apenas para seus interesses. Tinham mais argúcia do que conhecimento, e este, quando existia, tinha formação em realidades distintas da brasileira, prevaleciam o eruditismo, no lugar do saber, e a alienação, até o desprezo, quiçá escárnio pelo País.
Assim viveu-se no Império, tendo o único movimento nacionalista se constituído com pensamento estrangeiro, francês, localizado no Rio Grande do Sul, o positivismo gaúcho.
Porém, embora tivesse vida mais longa do que outras manifestações, graças aos governos de Getúlio Vargas e dos generais gaúchos, Emilio Médici e Ernesto Geisel, no período dos governos militares, não chegou a formar um partido político que tivesse esta ideologia como seu ideal de poder e fosse objeto de divulgação, de campanha eleitoral, para formar a classe que lutasse pelo triunfo e manutenção deste poder.
Luiz Roberto Pecoits Targa (Gaúchos e Paulistas na Construção do Brasil Moderno, Mottironi Editore, Torres, 2020) analisa que “a trajetória histórica particular do Rio Grande do Sul se deve a um longo período de autonomia que a formação meridional teve no passado em relação à formação histórica do Brasil e, por extensão, à de São Paulo. Esta hipótese constitui um questionamento da tese defendida por uma parte importante da historiografia econômica brasileira que situa a integração do mercado interno brasileiro nos anos 1930”. “Nós pensamos, ao contrário, que, do ponto de vista da economia gaúcha, a verdadeira unificação da história econômica e política do Brasil teve lugar somente após a integração de seu mercado interno, capitalista e industrial, na segunda metade de 1960”.
Sempre houve o cuidado de impedir a fragmentação do território brasileiro como ocorreu nas antigas colônias sul-americanas espanholas. Daí surgiu a ideia político-histórica do centro-periferia, que apagou as histórias regionais sempre que desconvinham deste embate.
Pecoits Targa alinha cinco “hipóteses de trabalho” para sua análise da especificidade gaúcha:
“1. No período de transição para o capitalismo, diferentemente da sociedade paulista, a sociedade meridional abrigava uma terceira camada social. Sua existência levou à cisão da classe dominante e à formação de dois projetos antagônicos para o futuro do Rio Grande do Sul.
2. Os grupos políticos que apoiavam estes dois projetos se enfrentaram numa Guerra Civil que foi o momento mais violento da revolução burguesa no Rio Grande do Sul (e no Brasil).
3. Para se consolidar e se reproduzir no poder, o grupo vitorioso precisou mudar sua forma de dominação (de Estado) sobre a sociedade então em vigor. De uma forma tradicional, ela assumiu uma forma racional-legal. Isso não ocorreu em São Paulo.
4. A diversidade de formações socioeconômicas em São Paulo e no Rio Grande do Sul levou à criação de duas economias capitalistas muito diversas entre si no período de transição do sistema escravista para o sistema capitalista (1889-1930).
5. A forma adquirida pelo Estado no Sul e suas relações com a sociedade meridional durante os 37 anos que o grupo político de positivistas esteve no poder lançaram as bases do Estado Desenvolvimentista Brasileiro (1930-1990).”
Usando expressão do também historiador gaúcho Luiz Carlos Barbosa Lessa (Nova História do Brasil, 1967), o sistema burguês ocorre quando a “economia de consumo” salta para “economia de produção”. Há a tendência de entender a transformação da sociedade pós 1789 de aristocrática, presa à descendência, resquício da medieval, para burguesa, voltada então para a nacionalidade.
Porém quando tivemos a aristocracia, a burguesia e o povo? Certamente não foram nos anos da escravidão legal, e, arriscamos a compreensão que nunca antes do trabalho participar do interesse do Estado Nacional Brasileiro, que se dá em novembro de 1930, com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Houve um modelo apaziguador das contradições, encontrado pelo clero católico, a Encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII, em 15 de maio de 1891, apenas dois anos após a Proclamação da República.
Mas que poder prevalecia no Brasil? Barbosa Lessa trata do poder que se instala entre a renúncia de Pedro I e a antecipada maioridade de Pedro II. No Maranhão e Pará buscavam as melhores condições para as “drogas amazônicas”, em Pernambuco e Alagoas para o açúcar, no Rio de Janeiro e São Paulo, o café, e no Rio Grande do Sul, a pastoril e para a cultura de cereais, ou seja, repetindo a tendência do subcontinente a fragmentação em republiquetas. No entanto, independentemente da área de produção econômica, o poder é o da aristocracia rural. E no fim do século, com a República, o mesmo, apenas com a representação paulista de Campos Sales.
Maria Auxiliadora Guzzo de Decca (Indústria, Trabalho e Cotidiano Brasil – 1889 a 1930, 1991) é adepta da expansão “dos lucros obtidos com o café permitirem a aplicação do capital não só na agricultura, mas no comércio, na indústria e nas finanças”.
Para sustentar este entendimento, apresenta a estatística de meados da década de 1920, quando o “mundo do trabalho”, na cidade de São Paulo, contava com 203.736 operários e 55 mil trabalhadores autônomos: “pedreiros, carpinteiros, pintores, eletricistas, motoristas, carroceiros e condutores de veículos de tração animal e jornaleiros em geral”. E conclui que, “como na Europa”, apenas defasada no tempo, a industrialização no Brasil “representou a transformação do processo de trabalho por relações capitalistas de produção”, “o trabalho e o trabalhador passaram a estar mais sujeitos ao capital e ao capitalista”.
A complexidade da Questão Nacional no Brasil, ao longo do século 20, e as permanentes contestações à construção do País Soberano exigirão artigo específico, que seguir-se-á a este.
Felipe Maruf Quintas é cientista político.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.